Um nome, mistral, que designa um vento e uma poetisa, Gabriela,
chilena, prêmio Nobel da literatura de 1945. Por que perdemos tempo com
a prosa se a poesia diz tudo de maneira tão concentrada e precisa?
Mistral é nome de vento de outono, vento de alta densidade descendo
encosta, vento magistral, frio, seco, cortante. Gabriela Mistral
chamava-se menos ventosamente Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy
Alcayaga. A poesia venta por dizer e não dizer. Há sons que zunem como
um vento forte e nos enfeitiçam sem revelar seus sentidos.
Vai-se de ti meu corpo gota a gota.
Vai-se minha faca em um óleo surdo;
Vão-se minhas mãos em azougue solto;
Vão-se meus pés em dois tempos de polvo.
Vai-se minha faca em um óleo surdo;
Vão-se minhas mãos em azougue solto;
Vão-se meus pés em dois tempos de polvo.
Vai-te tudo, se nos vai tudo!
Vai-se minha voz, que era para ti um sino
fechada a quanto não somos nós mesmos.
Vão-se meus gestos que se enrolavam
em lançadeiras, sob teus olhos.
E te vai o olhar que entrega,
quando te vê, o medronheiro e o olmo.
fechada a quanto não somos nós mesmos.
Vão-se meus gestos que se enrolavam
em lançadeiras, sob teus olhos.
E te vai o olhar que entrega,
quando te vê, o medronheiro e o olmo.
Vou-me de ti com teus mesmos alentos:
como umidade de teu corpo evaporo.
Vou-me de ti com vigília e com sonho,
e em tua lembrança mais fiel já me apago.
E em tua memória me torno como esses
não descendentes de planícies ou de bosques.
como umidade de teu corpo evaporo.
Vou-me de ti com vigília e com sonho,
e em tua lembrança mais fiel já me apago.
E em tua memória me torno como esses
não descendentes de planícies ou de bosques.
Sangue seria e me fora nas palmas
de teu labor, e em tua boca de mosto.
Tua entranha fosse, e seria queimada
em tuas marchas que nunca mais ouço,
e em tua paixão que retumba na noite
como demência de solitários mares!
de teu labor, e em tua boca de mosto.
Tua entranha fosse, e seria queimada
em tuas marchas que nunca mais ouço,
e em tua paixão que retumba na noite
como demência de solitários mares!
Vai-se-nos tudo, vai-se-nos tudo!
Como pode ser bom um mundo que já não se interessa por poesia? Como
pode ser delicioso um mundo sem metáforas ventosas? Gabriela amava os
humildes, os esquecidos da sorte, as crianças, os deserdados e as
palavras que escondiam segredos entre tantos significados possíveis e
impossíveis. Quem não se vê em algum momento evaporando de si e dos
outros, numa “demência de solitários mares”, tudo se indo por força do
tempo? Um leitor reclama que estou falando pouco de política. Que posso
fazer se vejo a poesia tão abandonada e ela revela meus sentimentos mais
profundos sobre a passagem dos anos e das utopias?
Por que estou falando agora de Gabriela Mistral?
Não sei.
De repente, assim como me vem a vontade de ouvir Mercedes Sosa cantar
“todo cambia”, me surgiu o desejo de reler poemas dessa sul-americana
que ganhou o mundo e de escrever sobre eles. Não há data especial.
Nenhuma justificativa jornalística. Apenas esta paixão anacrônica pela
poesia que retumba dentro da noite como a lembrança mais fiel do que não
fui, não serei e ainda assim cultuo como a minha maior verdade.
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário. Sociólogo.
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/08/11058/sopro-de-mistral/
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