Lya Luft*
Desde que me lembro, e lembro de coisas muito remotas, me despertava
curiosidade e fascinação o outro lado das coisas. Por exemplo, o que
havia atrás daquela porta sempre trancada, onde minha mãe guardava
coisas tão triviais como vassouras, espanador, panos de limpeza e, eu
acho, um aspirador de pó, só aberta na hora de arrumar a casa? Por que
eu não podia abrir, me esconder naquele quase-quartinho minúsculo, onde
aumentava minha curiosidade uma série de degraus de ferro presos na
parede de fundo, por onde se subia sabe Deus para onde?
Subia-se
para o sótão, diziam, que nós, crianças, chamávamos "sótio", e que para
inveja minha só havia na casa das outras crianças. Lugar de tesouros,
medos, encantamentos, como tudo o que "não era pra criança". Ali, na
nossa, havia um vão assustador entre telhado e teto, me segredou alguém:
lugar de morcegos e gambás, que eventualmente faziam barulho de noite,
como de pessoas se arrastando. Eu, sempre medrosa, puxava os lençóis e
cobertas sobre a cabeça - coisa que faço até hoje. Que espantalhos
afugento inconscientemente, a esta altura de uma longa vida?
Outro lado de uma porta também me fascinava: portinha muito baixa, meu
pai tinha de se curvar um pouco para passar. Levava ao porão e se abria
com uma chave grande, velhíssima, de ferro preto, pendurada na cozinha,
muito alto, para que pequenos não pudessem pegar.
Por quê? Isso
sempre me atormentou: o proibido e inexplicado. No porão em si, havia
velhas coisas com cheiro de velhas coisas, algumas ferramentas, cadeiras
meio desconjuntadas, grandes tachos de cobre com que minha avó
preparava geleias indizíveis no fundo do pátio.
E ali estava o
mistério maior de todos: outra porta, menor ainda, portinha. Ali só
consegui entrar poucas vezes, porque insisti demais e meu pai perdeu a
paciência, ou porque me comportei tanto, que ele teve paciência. Era
absolutamente apavorante: um porãozinho dentro do porão, muito pequeno,
talvez adega, palavra que eu desconhecia. Prateleiras com muitas
garrafas empoeiradas, vinhos que meu pai apreciava, me disse a mãe, e eu
não podia nem tocar. Mas havia muito mais: um bercinho de madeira com
ar de velhice irremediável, caixas de papelão contendo sabe-se lá que
sustos. Restos de duas bonecas feito bebês decapitados, as cabecinhas ao
lado. E num canto, meio escondido atrás de uns panos enormes e puídos,
cortinas ou lençóis de um tempo perdido, a coisa mais preciosa: um
cavalinho de madeira, cores empalidecidas, faltando uma orelha. Suas
patas ficavam sobre apoios de cadeira de balanço. Que criança teria se
embalado ali, aquela que ninguém queria mencionar se eu indagasse, mas
viravam o rosto mudando de assunto?
Em todos os romances que
escrevi depois de adulta, há sótãos e porões, guardando aquilo que o rio
da vida esqueceu - ele que leva quase tudo, o ruim e o bom, os amores e
as dores, nós, náufragos ou sobreviventes sem muita glória.
Tudo carregado de roldão para um outro lado que intuímos mal, tememos
quase sempre, nutrimos como ilusão, ou com este ardente desejo de que
seja eterno, que continue real, vivo, e presente, como foi em vida, do
lado de cá.
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* Escritora
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=32b63dd70d870580128d83e930199e1c
ZH impressa, 25 e 26 de agosto de 2018,p. 7
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