José de Souza Martins*
Em países
que ficaram relativamente à margem da grande cultura, como o Brasil, é
cotidiano o embate entre o conhecimento erudito e a ignorância, o
desconhecimento que ganha corpo e poder no senso comum popular. É cada vez
maior o abismo que os separa. E é cada vez mais significativo o poder do senso
comum, multiplicado pelos recursos modernos de sua difusão.
Ainda
nesses dias, o governo brasileiro lança nova campanha de vacinação contra
sarampo e poliomielite porque milhões de crianças não foram vacinadas no devido
tempo. Os pais descuidados da vacinação, induzidos por informações sem
fundamento, difundidas pelas redes sociais e por boatos de gente de mentalidade
formada na nova ignorância pós-moderna. É a dos que acham que sabem sem saber.
Um dos
aspectos curiosos dessa mentalidade retrógrada é a facilidade na aceitação de
interpretações sobre problemas brasileiros, por este ou aquele estrangeiro mais
ousado, que agradem segmentos sociais carentes de reconhecimento de suas
aspirações, justas ou não. Gostamos mais da bajulação do que da ciência. Os de
fora nos dão a ilusão de sermos iguais a eles. Herança colonial, o herói mítico
do povo brasileiro continua sendo o estrangeiro imaginário. E brasileiro bom é
o que tem suposto reconhecimento no exterior.
Jovens
brasileiros que fizeram doutorado fora do país querem dispensa da obrigação de
voltar ao Brasil e aqui trabalhar para cumprir a obrigação contratual
decorrente da bolsa de estudos brasileira que receberam para estudar lá fora.
Seria uma honra financiar a formação de profissionais para os países ricos.
Dar-lhes o que nos falta.
Uma frase irônica escrita na porta de uma das privadas da Faculdade de Filosofia da USP nos dias seguintes ao do golpe militar de 1964 sintetizava essa mentalidade subdesenvolvida: "Em terra de cego, quem tem um olho emigra".
Uma frase irônica escrita na porta de uma das privadas da Faculdade de Filosofia da USP nos dias seguintes ao do golpe militar de 1964 sintetizava essa mentalidade subdesenvolvida: "Em terra de cego, quem tem um olho emigra".
Aqui e
ali, estrangeiros mais ou menos familiarizados com o Brasil, eventualmente
fazem afirmações sobre os nossos problemas, legitimadas pelo sotaque
estrangeiro, não raro com diagnósticos impressionistas e com soluções que nunca
ousariam propor em seus próprios países. No rol das afirmações fundadas nessa
sabedoria fora do lugar está a de que a maioria do povo brasileiro é
afrodescendente, por isso vítima de adversidades sociais graves. Seus problemas
só serão resolvidos se for adotado aqui extensamente o regime de cotas raciais.
Embora a afirmação esteja em conflito com os dados oficiais, os dos nossos
censos demográficos, de que a maioria dos brasileiros é parda (referência de
Caminha aos indígenas poucas horas após a descoberta do Brasil), em segundo
lugar, branca; em terceiro, negra, cerca de 8% da população.
Num país como este, não é necessário falar em nome dos afrodescendentes propriamente brasileiros, que podem falar em seu próprio nome e em português fluente, para justificar políticas de ação afirmativa que amenizem as adversidades associadas ao estigma racial.
Num país como este, não é necessário falar em nome dos afrodescendentes propriamente brasileiros, que podem falar em seu próprio nome e em português fluente, para justificar políticas de ação afirmativa que amenizem as adversidades associadas ao estigma racial.
Do mesmo
modo, não é necessário ser afrodescendente para justificar as ações afirmativas
que ofereçam apoio à justa e necessária aspiração de ascensão social dos
desvalidos, negros ou não, que são vitimados por largo elenco de injustiças
sociais geradas pelas funções iníquas da desigualdade em que se funda nosso
desenvolvimento econômico. Nossas escravidões continuam no fato de lamentarmos
e nos punirmos por aquilo que não fomos ou nos tiraram, em vez de lutarmos por
aquilo que podemos ser.
É verdade
que tais injustiças têm suas raízes nas duas escravidões que marcaram a
formação do Brasil: a indígena e a africana. As escravidões criaram entre nós
um modelo de injustiça social e de alienação que lhes correspondem,
culturalmente raciais, mas também sociais, sobretudo religiosas e profissionais.
Muitos
afrodescendentes se queixam de que são vistos unicamente como aptos para o
futebol ou para o samba. O que de fato rouba ao país talentos potenciais para o
desenvolvimento das ciências e das profissões técnicas. Não é o afrodescendente
o prejudicado, mas o país. Talvez fosse o caso de inverter o imaginário das
cotas para conceder ao Brasil cotas em todos os segmentos sociais que delas
careçam para expressar seus talentos nos vários campos do conhecimento.
Muitos
sentem um certo conforto em ignorar o que realmente somos, quais são nossas
carências e suas causas, em ser objeto da bajulação dos que levantam em nosso
nome bandeiras de justiça social. Em ter a consciência adormecida para a
diversidade do que somos e dos nossos problemas. A multiplicidade das causas
que abatem nossa competência para sair das limitações. Esse aquém do que
podemos ser e do que nossos jovens tem o direito de querer ser.
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* José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5724653/quem-tem-um-olho-emigra 10/08/2018
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* José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5724653/quem-tem-um-olho-emigra 10/08/2018
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