José de Souza Martins*
Na
opinião do general Mourão, candidato a vice-presidente da República na chapa do
capitão Bolsonaro, em discurso num almoço na Câmara de Indústria e Comércio de
Caxias do Sul (RS), o Brasil herdou a "indolência" dos indígenas, a
"malandragem" dos africanos e o afã de "privilégios" dos
ibéricos. Um negro e brancos ouviram essa fala em silêncio.
Na atual composição do povo brasileiro, isso nos diz que um eventual governo do capitão e do general minimizará uns 75% desse povo, pois no ver do general estamos aquém do que deveríamos ser. Sobram-lhe só 25% para governar, aqueles que o candidato não estigmatiza com os defeitos que nos atribui..
Na atual composição do povo brasileiro, isso nos diz que um eventual governo do capitão e do general minimizará uns 75% desse povo, pois no ver do general estamos aquém do que deveríamos ser. Sobram-lhe só 25% para governar, aqueles que o candidato não estigmatiza com os defeitos que nos atribui..
O general
se reconhece pardo. Mas a "antropologia" do general é pobre e nada
antropológica. Ele repete os estereótipos estigmatizantes que nos vêm desde o
período colonial, o que era uma técnica de degradação para dominação da pessoa
do cativo. Já desmentidos por nossa realidade histórica. Questionado, disse que
sua concepção dos brasileiros não é preconceituosa. Mas não disse que é
desconhecimento da história social do Brasil.
Muita
coisa ficou fora do elenco de suas concepções sobre o nosso povo. Para não
parecer preconceituoso, ele poderia ter dito que no rol dos denunciados e
processados no escândalo do mensalão não há pardos nem negros. E que foi um
culto magistrado negro que levou o processo até o fim, o ministro do STF,
Joaquim Barbosa. Como não há nem pardos nem negros entre investigados,
processados e condenados da Lava-Jato.
É uma
pena que ele não lembre que numerosos negros lutaram pelo Brasil na Guerra do
Paraguai. Oferecidos pelos brancos senhores de escravos no lugar de seus filhos
brancos, convocados. Escravos não podiam ser soldados. Eram, então, alforriados
para lutar pela pátria no lugar de sinhozinhos privilegiados. Nessa iniquidade,
a Guerra do Paraguai criou no Brasil a equivalência de branco e negro: um negro
valia um branco. A única malandragem do negro, nessa guerra, foi a de lutar e
até a de morrer em lugar de filhos de senhores de escravos. O general tampouco
disse qual era a malandragem nos canaviais e no eito dos cafezais em que o
tronco e a chibata misturavam suor e sangue para produzir a doçura do açúcar e
o ouro do café.
Só
chegamos à agricultura e à indústria modernas graças ao legado do ranger de
dentes de seres humanos transformados em coisas e em semoventes, arrolados nas listas
de população como equivalentes de animais de trabalho. Ainda nos restam
senzalas, em exíguos quartos de empregadas domésticas negras e mulatas que
dormem o sono cansado de vítimas históricas da cruel malandragem do escravismo.
Durante
dois séculos e meio, milhares de índios capturados no sertão foram reduzidos ao
cativeiro. Pagaram em servidão vitalícia o preço de sua conversão forçada ao
cristianismo. Qual preguiça, cara-pálida? Nossa literatura do século XIX
reconheceu-lhes a paternidade simbólica da pátria. Durante esse longo tempo,
nossos índios carregaram nas costas o pesado Brasil da preguiça branca.
Um dos
maiores nomes do Exército brasileiro, o marechal Candido Mariano da Silva
Rondon, era de ascendência bororo. Um dos nossos maiores jogadores de futebol,
Garrincha, era um índio fulniô. O xavante Juruna foi a consciência étnica da
nação na Câmara dos Deputados.
O general
não falou no legado dos mulatos do barroco mineiro, na música, na pintura, na
arquitetura. Não falou no padre José Maurício, mulato, compositor erudito que
fora professor de música de dom Pedro I. Nem nos escritores Machado de Assis,
Lima Barreto, Luís Gama e Ruth Guimarães.
O general
não poderia fazer política sem falar o português mestiço de língua nheengatu. A
língua portuguesa que o general fala e eu falo tornou-se mestiça preguiçosa com
o enxerto de palavras tupi no seu vocabulário. Mas sobretudo pela abundante
invasão de vogais que a tornaram lenta e brandas as consoantes. Os índios
forçados a falar português só o conseguiram dulcificando-o com vogais de
abrandamento. Nem pipoca o general poderia comer se não falasse o preguiçoso
nheengatu dessa palavra.
Minimizar
o índio como pessoa e como autor de cultura, reduzirá o Brasil a uma ilhota
desfigurada e sem brasilidade, a uma pátria impatriótica. Quem recortar o negro
da história, dos costumes e da identidade do brasileiro, que é antes de tudo um
mestiço, também de mestiçagem cultural, nunca se encontrará com o Brasil. A
pena de morte ideológica, a do preconceito, mata a pátria, não as iniquidades
que a crucificam. Pátria não é delegacia de polícia nem é quartel. Pátria é
sociologicamente o nós das nossas diferenças e do nosso encontro. Sem esse nós,
pode haver governo, mas não haverá a quem governar.
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* José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto).
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* José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5742761/o-brasil-do-general
Acesso 22/08/2018
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