Derek Parfit
Pesquisadores mostram que comportamentos individuais
podem ser inofensivos quando aparecem de forma isolada, mas muito
perigosos quando repetidos por diversas pessoas. A reflexão se aplica
especialmente ao caso de linchamentos nas redes sociais.
Há um botão na sua frente; se você
girá-lo, um estranho que está sentindo uma dor tolerável causada por um
choque vai receber uma voltagem mais forte, mas tão leve que nem ele
mesmo vai perceber. Você gira o botão e vai embora. Só que centenas de
pessoas passam por ali e fazem a mesma coisa, até que a vítima começa a
gritar de agonia.
Você fez alguma coisa errada? Derek Parfit,
o influente filósofo britânico que morreu em janeiro de 2017, definiu
esse caso como o do “Torturador Inofensivo”. A princípio, ele pensou num
cenário mais simples, no qual mil torturadores girariam o botão mil
vezes cada um em suas próprias vítimas. Obviamente, isso é terrível.
Então Parfit explora um outro caso, em
que cada um dos mil torturadores gira o botão mil vezes, só que, a cada
volta, eletrocutando uma das mil vítimas diferentes. O resultado é o
mesmo: mil pessoas em agonia. No entanto, moralmente, a impressão é
diversa, já que ninguém, de modo individual, causou mal real a um
indivíduo específico.
Esse parece o tipo de exemplo técnico bem
bolado que os filósofos adoram —entre outras coisas, é um desafio a uma
visão utilitarista que analisa a incorreção de um ato apenas por suas
consequências—, mas sem relevância no mundo real.
Só que o mundo mudou desde que Parfit
publicou esse cenário, em 1986. Hoje, em 2018, os dois autores deste
artigo são Torturadores Inofensivos, e você —independentemente da
posição que você assuma diante de qualquer questão específica—
provavelmente também é.
Esse enredo de Parfit se repete a todo
momento nas redes sociais. Alguém escreve algo ruim sobre você no
Facebook; dependendo da relação que tiver com tal pessoa, você pode
chegar a se magoar pessoalmente ou não, mas, como ninguém percebe, não é
lá grande coisa. Porém, se no dia seguinte houver mil curtidas e
inúmeros comentários irônicos, é bem provável que você fique arrasado.
Embora cada um dos comentários em particular tenha causado pouca ou
nenhuma mágoa, o efeito agregado é muito mais grave.
No livro “So You’ve Been Publicly Shamed”
[Então você foi humilhado em público], de 2015, Jon Ronson explorou os
efeitos do linchamento digital, incluindo a história de uma mulher cujo
tuíte irônico sobre o privilégio dos brancos deu muito errado, gerando
dezenas de milhares de respostas enfurecidas, levando-a a perder o
emprego e ter que se esconder.
Desde então, a turba tem andado ocupada:
sua atenção se voltou para um dentista que matou um leão, uma série de
mulheres brancas que, sem motivo aparente, chamaram a polícia por causa
de negros, uma professora esquerdista que pediu a amigos que expulsassem
um jornalista de um protesto e vários outros.
Quando pensamos na selvageria das redes
sociais, em geral temos em mente um comportamento individual péssimo:
ameaças de morte e de estupro, divulgação de informações pessoais,
inclusive endereços e locais frequentados pelos filhos das vítimas ou
mentiras maldosas, por exemplo. O Torturador Inofensivo, contudo, nunca
vai tão longe. Ele apenas curte, retuíta e acrescenta aquele comentário
inteligente ocasional. O problema é que somos milhões, todos girando o
botão.
Parfit não nos diz, em momento algum,
qual é a motivação dos torturadores de seu experimento mental, mas há
diversas considerações no dia a dia. Afinal, somos animais morais. Há
inúmeras evidências em estudos de laboratório e na vida real de que
queremos ver os agentes imorais recebendo o castigo merecido. Isso está
baseado na lógica evolucionista: se não estivéssemos sempre dispostos a
punir ou excluir os malvados, não haveria ônus nenhum em ser bandido, e
as sociedades cooperativas não decolariam.
Há também uma espécie de crédito social
que acompanha o fato de ser visto como punidor moralista: queremos
mostrar aos outros que somos bons, exibir nossa virtude. Quando alguém
está olhando, é maior a tendência de agirmos como punidores, e há provas
de que terceiros têm em mais alta conta —e mais chances de depois
considerar de confiança— quem pune os bandidos, e não aqueles que ficam
parados sem fazer nada.
No mundo real, é complicado desassociar
as motivações morais das sociais. Na coluna The Stone, do New York
Times, o filósofo Bryan W. van Norden escreveu: “Como a maioria dos
americanos, vibrei espontaneamente quando vi o nacionalista branco
Richard Spencer tomando um soco durante uma entrevista”. É difícil
dizer em que medida a afirmação retrata prazer genuíno por um racista
ter recebido o que merece e em que medida reflete o desejo de ser visto
como antirracista para o público aplaudir.
Se a motivação consciente de nossa
reprovação é explícita, a ideia de fazer nossa vítima sofrer talvez
nunca nos ocorra. E a facilidade com que expressamos indignação moral
online —na maioria das vezes sem qualquer repercussão no mundo real—
torna essa condenação muito mais fácil. Como escreveu Molly Crockett,
nossa colega de Yale: “Se a revolta moral é o incêndio, então a internet é gasolina?”.
Há também um sistema de recompensa construído em cima do constrangimento online. Em artigo publicado no site Quillette, “I Was the Mob Until the Mob Came for Me”
[Eu era a turba até a turba vir atrás de mim], um autoproclamado
ex-justiceiro social, sob o pseudônimo Barrett Wilson, descreveu a
empolgação que sentia nos tempos de execração cibernética: “Toda vez que
eu chamava alguém de racista ou sexista, a adrenalina subia. E a
sensação se reafirmava e se sustentava a cada estrelinha, corações e
joinhas que constituem as esmolas da validação das redes sociais”.
Mas causar morte com milhares de facadas
não é uma coisa boa? Se fosse Hitler, não seria certo fazê-lo passar por
isso? Sim, mas o problema é que, quando estamos cheios de indignação
moral, agindo como parte da massa num mundo virtual sem nenhum sistema
fixo de avaliação, lei ou justiça, todos os inimigos viram Hitler. É
muito fácil haver, como diz Ronson, “uma dissociação entre a gravidade do crime e a selvageria eufórica da punição”.
Claro que o constrangimento público pode
ter efeitos positivos. Às vezes a massa ensandecida acerta. Entretanto,
da mesma forma, os Torturadores Inofensivos podem facilmente atingir os
fracos e indefesos; o ataque pode se basear em mentiras e confusões ou
ser encorajado pela ignorância de celebridades e políticos —incluindo e
destacando o atual presidente [dos EUA].
O efeito do Torturador Inofensivo não se
limita às redes sociais; podemos ver também as consequências da
agregação quando se trata de ações individuais de maior impacto.
Curtidas e retuítes têm uma semelhança estrutural com a execução por
apedrejamento, sobretudo se o público é grande: é difícil ver a vítima e
ninguém tem boa pontaria. Rejeição social é outro caso, uma tortura
pelo acúmulo de omissões —indivíduos evitando contato com determinada
pessoa—, e não por ações.
O escritor Julian Sanchez, membro do
libertário Instituto Cato, usou o exemplo de Parfit em uma discussão
sobre comportamentos como assobiar para uma mulher ou usar linguajar
ofensivo de brincadeira. Ele observa que a reação típica à crítica
dessas atitudes é a negação —muitos acham que não há má intenção nessas
ações e que ninguém se machuca com elas. Mas, mesmo que seja válido para
condutas individuais, a situação muda quando a consideramos em termos
agregados, repetindo-se vezes sem conta, milhares de vezes por milhares
de pessoas —e aí o impacto se torna óbvio.
É difícil mudar os tipos de comportamento
que Sanchez aborda, e talvez mais difícil até fazer as pessoas
repensarem o linchamento online, já que a sensação é muito boa quando
achamos que estamos do lado certo. Nossa mente evoluiu para levar em
consideração os efeitos de nossas ações individuais; é difícil pensar
nos efeitos agregados. Mas a lição que fica do Torturador Inofensivo de
Parfit é que, se queremos ser pessoas decentes, devemos tentar.
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*Texto publicado originalmente no jornal The New York Times.
Paul Bloom é professor
de psicologia de Yale e autor de “Against Empathy: The Case for Rational
Compassion” (contra a empatia: por uma compaixão racional).
Matthew Jordan é aluno de psicologia de Yale.Ilustrissima / Folha de S. Paulo, 17.08.2018
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