Em "Construir e Habitar", Sennett desenvolve a noção de
"cidade aberta" para conciliar desafios da vida nas metrópoles
O planejamento urbano e a arquitetura podem ser mais do que ferramentas
para fazer a cidade funcionar: podem torná-la mais aberta, receptiva a misturas
e transformações. Além da decisão técnica, está em jogo uma escolha ética que
define muito do modo como vivemos, segundo o sociólogo americano Richard
Sennett. Essa escolha será decisiva em tempos de mudança climática e tendência
a segregação.
Em "Construir e Habitar" (Record, 378 págs., R$ 59,90),
Sennett desenvolve a noção de "cidade aberta" para conciliar desafios
técnicos e éticos implicados pela vida nas cidades e o planejamento urbano. A
argumentação é conduzida por meio da distinção entre dois termos franceses que
designam a cidade: "ville" e "cité". A primeira diz
respeito à forma da cidade construída: ruas, serviços essenciais, edifícios. A
segunda remete ao espaço vivido, a relações de vizinhança e comunidade.
Distanciando-se de autores que se limitam a criticar o aspecto frio,
formal e faraônico de grandes intervenções urbanas em nome da vida local
autêntica e comunitária, Sennett adverte que o planejamento pode contornar
alguns dos piores aspectos da ênfase em comunidades. Seu principal exemplo é a
ascensão de condomínios e outras formas que favorecem a segregação, sobretudo
em bases étnicas e financeiras.
Este é o
terceiro volume da trilogia "Homo Faber", centrada na noção de ser
humano como fazedor de seu próprio mundo. O primeiro livro ("O
Artífice") tratava da produção de objetos físicos. O segundo
("Juntos") lidava com o trabalho cooperativo. O terceiro tem como
tema os ambientes da vida humana. "Estou interessado tanto nas boas quanto
nas más maneiras de fazer e produzir", diz.
Professor
de urbanismo na London School of Economics e autor do clássico "O Declínio
do Homem Público" (1977), Sennett, de 75 anos, trabalhou por três décadas
como consultor para a ONU e participou da organização da conferência Habitat
III. Pela ONU, realizou estudos e projetos em cidades ao redor do mundo,
incluindo São Paulo, onde lidou com a transformação de shopping centers em
lugares mais abertos e integrados à cidade.
"A separação entre
comércio e residência é a pior forma da cidade fechada (...) As pessoas têm que
estar
ali para outras coisas além
de dormir."
Valor: O subtítulo do livro,
"Ética para a Cidade", se refere a um savoir-faire para viver em
cidades ou se trata mais de código formal de conduta?
Richard
Sennett: Ambos.
A ética é saber como usar a cidade, mas também se baseia na noção de
"cidade aberta", concepção ética particular, tanto de como construir
cidades quanto de como viver nelas. O livro parte do princípio de que a cidade
deve ser aberta. Como fazemos isso? Há ingenuidade sobre a necessidade de
respeitar o modo como as pessoas vivem, e que o "habitar" implica uma
ética do viver comunitário óbvia por si mesma. Mas, nos EUA, há muito racismo e
pessoas que querem viver em comunidades racialmente segregadas. Isso não deve
ser respeitado. As cidades podem ser construídas de modo a desfavorecer essa
inclinação.
Valor: Há uma maneira de
construir que favorece essa postura? Penso em coisas como condomínios fechados,
com grades e seguranças...
Sennett: Condomínios fechados são a
forma de construção mais popular hoje nos EUA. Mas há um índice maior de roubos
e crimes não violentos em condomínios do que em bairros normais. É um modo de
construir fundado na fantasia do medo, a ideia de que estamos mais seguros se
nos afastamos de outras pessoas. Agora, começa a ter condomínios no Reino
Unido, mas não com sucesso. Os ingleses têm tradição de cidades misturadas.
Porém, alguns dos imigrantes recentes, que vêm do Leste Europeu, tendem a
querer viver juntos, só entre eles. Países como o Reino Unido estão procurando
meios de impor a integração.
Valor: O livro se abre com a
comparação de dois grandes escritores: Honoré de Balzac e Marcel Proust. O
primeiro está mais próximo da noção de "ville" e o segundo, da noção
de "cité"?
Sennett: Não diria isso. Balzac
[1799-1850] é uma figura da psicogeografia da cidade. A cidade é como uma
revelação da personalidade das pessoas. Cada protagonista está vinculado a um
lugar específico. Já em Proust [1871-1922], os lugares são algo construído na
memória. A diferença entre "ville" e "cité" se traduz melhor
na distinção entre [o poeta Charles] Baudelaire e [o prefeito Barão de]
Haussmann. Baudelaire [1821-1867] é um personagem da "cité". Não sabe
e não se interessa por como a cidade é construída. Já Haussmann [1809-1891] só
quer saber da cidade construída e tem a imaginação paupérrima de como as
pessoas vivem. [A urbanista] Jane Jacobs e eu debatemos muito esse tema. Éramos
grandes amigos, mas ela era da "cité", da vizinhança. Pensava que o
planejamento urbano era sempre uma projeção de poder. Cidades como São Paulo
não podem lidar com problemas como o acesso a água e eletricidade só graças à
consciência de bairro. É preciso construir estruturas. Ela também estava pouco
atenta ao problema da segregação, que hoje é dominante: por etnia, classe,
raça.
Valor: Podemos dizer que zonas
exclusivamente residenciais ou comerciais são segregação por função?
Sennett: Isso é uma ideia fechada
de cidade, fruto de pensá-la como máquina, com diferentes partes e cada parte
tem que funcionar segundo sua função. Para que a cidade funcione, cada lugar
tem função clara, ajustada à forma. É o contrário da ideia da cidade aberta, em
que diferenças, funcionais e humanas, interagem. Quando temos espaço morto, a função
não está funcionando. Centros vazios, porque as pessoas deixaram de morar lá,
ou entornos de viadutos. Se tudo que há num lugar são escritórios, o espaço
fica morto. Tento explorar a maneira como o planejamento urbano pode evitar
esse tipo de pensamento do sistema fechado.
Valor: Como encontrar o ponto em
que o ajuste de forma e função é suficiente, mas não excessivo?
Sennett: Numa "cidade
inteligente", o encaixe eficiente está focado sobretudo nos serviços
essenciais, como água e luz. O desencaixe surge onde você menos espera: o
transporte. Formas de transporte de massa muito encaixadas com a função tornam
a cidade fechada, afasta pessoas do espaço. Algumas formas de eficiência são
justas e boas, mas outras quebram. A separação entre comércio e residência é a
pior forma da cidade fechada. Para manter um lugar vivo, as pessoas têm que
estar ali para outras coisas além de dormir. Esse é o problema das
"cidades inteligentes" construídas segundo a separação de unções. É
como o centro do Rio, onde se abdicou de construir residências. Há partes em
Songdo, na Coreia do Sul, muito chiques e ricas, em que não tem ninguém na rua.
Valor: É uma cidade
"inteligente", mas não é "aberta"?
Sennett: O que faz com que seja uma cidade inteligente fechada é que o comportamento é administrado por algoritmos centralizados. Para ir de A a B, o algoritmo dá a melhor escolha e programa o carro. Se alguém quiser tomar outra rota, ele diz que algo está errado. O fechamento exclui coisas como a vontade de ir devagar ou flanar. É assustador em Songdo como é possível ver toda a cidade em telas de computador. Um tipo melhor de uso de tecnologia envolve formas de gestão de dados, em que a tecnologia informa as pessoas sobre alternativas. Esse é um uso aberto da alta tecnologia, que dá às pessoas o material para saber o que querem escolher, em vez de receberem prescrições.
Sennett: O que faz com que seja uma cidade inteligente fechada é que o comportamento é administrado por algoritmos centralizados. Para ir de A a B, o algoritmo dá a melhor escolha e programa o carro. Se alguém quiser tomar outra rota, ele diz que algo está errado. O fechamento exclui coisas como a vontade de ir devagar ou flanar. É assustador em Songdo como é possível ver toda a cidade em telas de computador. Um tipo melhor de uso de tecnologia envolve formas de gestão de dados, em que a tecnologia informa as pessoas sobre alternativas. Esse é um uso aberto da alta tecnologia, que dá às pessoas o material para saber o que querem escolher, em vez de receberem prescrições.
Valor: É para evitar a prescrição
que o senhor apoia projetos habitacionais em que as casas são deixadas
incompletas, para que os moradores imprimam seu jeito pessoal? Sennett: Há várias maneiras de
conseguir a abertura, e usar formas incompletas é uma. Como construir casas de
modo que suas formas possam mudar, à medida que estilos de vida vão mudando? Na
China, foram feitas residências com a premissa de que as famílias só teriam um
filho. Sem a política do filho único, vê-se como as casas são difíceis de
mudar. Pensamos em formas modulares de construir. Deve-se construir de um jeito
que a mudança nos modos de morar impliquem mudanças nos habitats. Em muitas
cidades, as universidades foram construídas em campi separados, sem conexão com
a população. O Brasil tem esse problema. Isso é ruim para os jovens e seriam
lugares melhores para viver se os alunos se misturassem com outras pessoas.
Também me interesso por maneiras de converter infraestrutura como os espaços
debaixo de viadutos, terminais de ônibus, que só vemos como terra de ninguém.
Valor: As cidades brasileiras têm muitos desses espaços vazios...
Sennett: Isso sempre me
impressionou sobre São Paulo. Há partes da cidade de que as pessoas fogem. Nova
York, por exemplo, fez um grande esforço com os espaços debaixo de viadutos,
procurando jeitos de usá-los. É questão de pensar outro jeito de incorporação
na cidade, e implica estar mais à vontade com a informalidade, a bagunça, a
abertura, a complexidade. A impureza na forma.
Valor: O senhor trabalhou nesse
tema em São Paulo pela ONU?
Sennett: Não, nosso projeto visava
quebrar o modelo do shopping center, para que não fosse só atividade comercial.
Era preciso agregar serviços públicos, clínicas de saúde, jardins de infância.
Foi um grande desafio. Os empresários não pensam que esse é um problema deles.
Mas há uma razão concreta para pensarem nisso: os shoppings estão condenados
pela internet. Eles têm que ser mais complexos, porque dá para comprar tudo
on-line. Discutimos isso em São Paulo: como fazer espaços comerciais que também
são espaços públicos... e sem seguranças?
Valor: Sem seguranças?
Sennett: Sem seguranças! Pessoas
pensam que só excluindo adolescentes de pele escura conseguem deixar os
consumidores confortáveis. Mas esse é um reforço da sensação de medo. Há coisas
simples e relevantes que afastam pessoas desses espaços. Por exemplo, idosos
precisam se sentar, e o modelo dos shoppings faz com que você esteja sempre se
movendo. Pessoas com crianças pequenas também sofrem. Discriminar jovens de
pele escura se insere numa cadeia de segregação generalizada. Nos EUA, estão
abrindo esses lugares para transformá-los em verdadeiros espaços.
Valor: O senhor fala bastante de
São Paulo nas palestras...
Sennett: A cidade me impressionou
muito. Tenho muitos amigos no Brasil, como Hélio Jaguaribe, que fugiu da
ditadura nos anos 70. Aprendi muito com ele sobre o subdesenvolvimento. Havia
muitos brasileiros que fugiram para o Norte durante a ditadura e tiveram
impacto na minha geração. Era um período triunfalista, nos EUA, em que as
teorias buscavam formas de reforçar e disseminar o modelo americano. Os jovens
receberam um contraponto importante de gente como Jaguaribe.
Valor: O voto do Brexit parece
sintomático de desconexão entre metrópoles e países que as cercam: Londres
votou contra e o interior votou a favor. Essa desconexão é inevitável?
Sennett: Em certo sentido, é
positiva. As pessoas que vivem em ambientes grandes, misturados, são mais
abertas e gostam de complexidade. O mesmo pode ser dito de Trump. Quanto mais
misturadas são as comunidades em que vivem, menos as pessoas, sobretudo nas
classes trabalhadoras, têm probabilidade de votar nele. O maior antídoto contra
trabalhadores votarem em Trump é sua experiência direta de pessoas diferentes.
Vale notar que pessoas conseguem trabalhar com gente de outra etnia e mesmo
assim serem isolacionistas, porque medem sua realidade social em termos de onde
vivem. Se formos levar a lógica de Trump ao extremo, veremos racistas
americanos se recusando a trabalhar com mexicanos. Mas elas não se recusam. O
que conta é a residência.
Valor: O senhor menciona que ter
sofrido um AVC mudou sua relação com o entorno e a cidade. Como foi essa
mudança?
Sennett: Tive que aprender a andar
de novo. Isso me deu uma percepção do espaço muito diferente. Perto, longe,
estar de pé, tudo isso mudou de sentido e me tornou sensível à experiência da
mobilidade na cidade. Nas cidades feitas para carros, você se move pelo espaço,
mas não o habita. E quanto mais rápido você avança, menos você incorpora onde
está. Isso me impressionou: eu andava tão devagar que olhava para tudo. Tudo
era um risco - carros, pessoas que esbarravam em mim-, e eu caía de vez em
quando. Mas me tornou consciente do quanto precisamos absorver, quando estamos
na escala da caminhada na cidade.
Valor: Nossa relação com as
cidades passa também pela saúde?
Sennett: O grande problema de saúde
nas cidades, hoje, é a poluição. O automóvel criou esse monstro. Trabalhei
muito em Xangai. Tinha dias em que não podíamos sair pela cidade. O nível de
poluentes no ar chegava a 50 vezes acima do máximo seguro. Isso só vai piorar
com a mudança climática. Novamente, a questão da construção aberta ou fechada
ganha proeminência. Podemos construir uma cidade que consiga se proteger
completamente da mudança climática ou temos que trabalhar com esse problema de
modos mais abertos? Isso é o que a sua geração vai ter que enfrentar.
Reportagem
por Por Diego Viana | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5707491/cidades-da-etica 03/08/2018
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5707491/cidades-da-etica 03/08/2018
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