Luiz Felipe Pondé*
Escravidão, ditadura, frases sexistas ou similares:
a população não se importa
A literatura especializada tem apontado sintomas
de crise da democracia: recessão democrática, “crise de meia idade”,
ruptura entre o povo e a classe política, populismo, e por aí vai.
Gostaria de apontar um pequeno e importante detalhe dentro desse
universo: a incapacidade de grande parte da classe profissional
especializada em política (o que chamarei de inteligência pública a
seguir) de conseguir entender a política como ela é. E mais, de entender
o cidadão comum, com quem muitos desses especialistas dizem se
preocupar. Uma coisa é um “projeto de democracia”, outra coisa é o que
“o povo de fato quer”.
Tivemos recentemente o espetáculo da entrevista do Bolsonaro no Roda
Viva. Aqui não me interessa o aspecto ideológico do candidato nem dos
jornalistas (também profundamente enviesados). Nem o destino do
candidato nas eleições, nem os erros históricos cometidos por ele no
programa nem as declarações infelizes que deu nos últimos tempos.
Com isso não quero dizer que muitos desses erros não toquem temas
importantes e delicados da história brasileira. Quero apenas discutir o
fato de que muitos jornalistas e intelectuais parecem saber falar apenas
para “seus conversos”.
Talvez, se tivéssemos um populista, como o líder do partido
trabalhista inglês Jeremy Corbyn, crescendo nas pesquisas aqui no
Brasil, prometendo comida para todo mundo de graça e paga pelo Estado,
escola e saúde de qualidade para todo mundo e pagas pelo Estado,
direitos civis e humanos para todos os refugiados do mundo de graça e
pagos pelo Estado, essa inteligência pública poderia entender o que
significa ouvir o que as pessoas querem “no final do dia”.
A falha no entendimento do fenômeno Bolsonaro está no fato de que a
inteligência pública, em grande medida, não olha para a realidade.
Ela olha para seus projetos sociais e políticos, para suas concepções
de sociedade e justiça. Enfim, para o mundo como ela acha que deve ser
(não entro no mérito se esse “mundo como deve ser” está errado).
Há um impasse cognitivo aqui. Como ela fica presa nos seus “temas”,
ela ajuda pouco a população a entender por que discursos populistas
estão crescendo no mundo (Jeremy Corbyn de esquerda, Trump de direita) e
no Brasil.
Escravidão, ditadura, anistia, frases racistas, sexistas e similares,
a população não se importa. Você pode ficar irritado, irritada, a
inteligência pode espumar de raiva, gente bacana pode dizer “que
absurdo”, mas de nada adiantará.
Se algumas pessoas podem entrar em um papo de comida, escola, saúde,
direitos civis e humanos de graça, outras —a maioria— podem abraçar as
seguintes causas: bandido deve ser preso ou morto, filhas devem poder ir
à faculdade sem serem assaltadas; vamos deixar o passado para trás,
porque ele já foi e as escolas não devem mandar seus filhos meninos
brincar de boneca.
Vejamos. A ideia de consciência histórica que sustenta noções como a
de responsabilidade moral pela escravidão é quase que totalmente opaca
para quem junta trocados como salários durante a semana e tem na igreja
evangélica no fim de semana o único “programa e lazer”.
Portanto, alguém dizer “eu não tive escravo, logo, não sou
responsável pela escravidão” está mais próximo do dia a dia da imensa
maioria da população do que a ideia de que existe uma consciência
histórica que justifique essa pessoa se sentir culpada pela escravidão.
Ela não se sente racista (não estou dizendo que seja nem que não
seja) nem obrigada a pagar nada para os descendentes dos escravos.
E, se ela mesma for descendente de escravos, ela assimilará essa
consciência histórica da culpa como ganho imediato objetivo: cotas nas
universidades ou concursos públicos.
Vejamos de novo. A ideia de que a sociedade deve ser responsabilizada
pelo crime soa estranha para quem nunca cometeu o crime, vive sua
“vidinha honesta” —e sua para sobreviver. Ela entende que, sendo pobre
ou quase pobre e resistindo à opção de roubar, ela própria comprova que
aqueles que o fazem não prestam.
E, de novo, ditadura. Ninguém está nem aí para a ditadura ou para
quem morreu ou deixou de morrer. As pessoas estão preocupadas se os
filhos vão morrer na rua. Por isso querem bandido preso (não assumo que
“prender bandidos” seja “a” solução).
Não adianta ficar batendo nessas teclas. São teclas que não decidem eleições.
À medida que os cidadãos comuns vão falando, a inteligência pública vai odiando a democracia.
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