Lya Luft*
Dizem alguns que Deus está nos detalhes. Outros, que é o Capeta que está
lá metido. Há quem afirme que o Diabo não existe, outros ainda que quem não
existe é Deus, ou que, se um não existe, o outro também não haveria, pois só
temos o Bem pelo Mal em contraposição.
Simplifiquei as coisas hoje aqui: a vida está nos detalhes, nas coisas
pequenas, miúdas, que muitas vezes esquecemos porque nos impingem (ou nos
impingimos) o grandioso. O máximo. O super, o tri, a suprema utopia. Um amor
como nenhum outro, prazeres indescritíveis e obrigatórios, sucessos inevitáveis
e objetivos maravilhosos alcançados, alcançáveis - a não ser que sejamos muito
incompetentes.
A esta altura da vida, talvez eu tenha aprendido, depois de muita
rasteira e engano, que na verdade, para mim ao menos, graças a Deus o
importante quase sempre está no pequeno, no detalhe.
A vida está no simples.
Um jornalista me enviou um poema meu que encontrou num recorte de jornal
de 1968. Não me lembrava dele, sou meio negligente com minhas coisas, mas
quando li e reli fui recordando. Devia ter me acontecido, em 1968, algo bem
doloroso, porque eu falava numa enorme pedra que tinha caído sobre mim. E
terminei dizendo que peguei um cinzel e esculpi num fino traço na dura
superfície um rosto de anjo, e, por fim, acrescentei uma lágrima. Essa ideia da
lágrima devia ter me consolado, porque a botei ali. Não foi uma tragédia, ou eu
não a teria esquecido. E foi num tempo de muitas alegrias, sem maiores perdas:
elas me estavam reservadas, como a todos nós, um pouco mais adiante.
O detalhe da carinha de anjo, e da lágrima final, deve ter me concedido
uma sensação de alívio, transformando a chateação ou dor em um pequeno elegante
desenho. E com uma lágrima simbolizando as minhas - que, repito, esqueci.
Fui entendendo, com o passar dos muitos anos, ou aprendendo com
dificuldade, o valor do pequeno, do simples, do mínimo. Não é ganhando a
loteria, fazendo uma viagem sensacional, arranjando um namorado, perdendo 20
quilos, fazendo a mais fabulosa plástica ou comprando um carrão mais
sensacional que a gente se recupera - até onde dá - de um grande sofrimento. É
nesse dia a dia: a janela se abrindo sobre uma paisagem tranquila; o amigo
telefonando com afeto e interesse; família vindo almoçar, ou nos chamando,
netos, netas, com alguma carinhosa brincadeira. Marido chegando em casa com uma
boa notícia do seu trabalho ou com um ar de especial cuidado porque hoje não
estamos de cara muito boa.
Alguém mandando um vaso de lindas flores, que boto na minha frente, na
mesa de centro da sala, e toda a casa fica iluminada: pela cor, pela beleza,
pelo gesto. Nos detalhes está o amor. Nos detalhes estão os afetos, a paz, a
harmonia - isto é, na simplicidade. Mas é preciso acalmar-se o suficiente para
poder enxergar. O que nestes tempos, em que fora de nós nos atropelam
empobrecimento e preocupações, é dura labuta.
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* Escritora. Tradutora
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