Ruth
Manus*
É muito mais fácil chamar uma mulher pelo nome.
Ou de você. Ou de tu. Ou de senhora. Reserve seus tratamentos “carinhosos” para
quem esteja com alguma vontade de recebê-los.
Não conheço muitas mulheres que tenham vocação
para ser anjo. Nem muitos homens, na verdade. Acho que só os anjos têm vocação
para ser anjo. Ainda assim, alguns não têm uma performance muito boa, sobretudo
na área dos anjos da guarda, que têm deixado muito a desejar no século XXI.
Vez ou outra as nossas mães ainda nos chamam de
meu anjo. Não é frequente, talvez nossa cara já tenha mudado demais, mas às
vezes ainda acontece. Ocorre que os únicos que têm permissão para isso seguem
sendo elas, nossos avós e nossos pais- que raramente o fazem- melhor assim.
Na mesma linha do “meu anjo” temos também o “meu
bem” e a “minha linda”. “Minha querida” e “minha filha” não ficam muito atrás.
Todas essas formas de tratamento têm o péssimo hábito de nos aparecer em
momentos inoportunos, vindos da boca de pessoas com quem não temos nenhuma tipo
de relação que autorize esse tipo de discurso.
A questão é: só chame de seu bem, de sua linda,
de sua querida ou de sua filha aquelas mulheres que sejam efetivamente o seu
bem, a sua linda, a sua querida e a sua filha. As outras não, porque elas não o
são e provavelmente não o querem ser. É uma lógica bastante simples.
Acredito que homem nenhum saiba qual é a sensação
de estar trabalhando, de estar dando seu melhor como advogada, médica,
camareira, enfermeira, chef de cozinha, economista, garçonete,
motorista, engenheira, escritora, vendedora e ser rebaixada a meu anjo- com
todo o respeito que os anjos merecem.
Nós ouvimos “meu anjo” no mestrado, do colega que
julga, naturalmente, saber muito mais do que uma mulher. Ouvimos “meu anjo” do
manobrista na garagem, com medo que não saibamos estacionar nosso carro na vaga
sem arrancar o retrovisor do vizinho. Escutamos “meu anjo” quando lidamos com
clientes que não sabem- ou pior, que sabem- o quão agressiva essa forma
carinhosa de tratamento pode ser.
Voltamos, mais uma vez, ao famoso machismo
carinhoso. Que, por se considerar inofensivo, bem humorado ou quase afetuoso,
ultrapassa serenamente as linhas da cordialidade, passando a criar um
desconforto absolutamente evidente para as mulheres que se veem nessas
condições.
É muito mais fácil chamar uma mulher pelo nome.
Ou de você. Ou de tu. Ou de senhora. Seja o que for, chamá-la daquilo que é
normal e minimamente aceitável, sem querer criar a sensação de uma proximidade
não autorizada. Reserve seus tratamentos “carinhosos” para quem esteja com
alguma vontade de recebe-los. E garanto que essas pessoas não são mulheres
desconhecidas, sobretudo aquelas que estão nos seus postos de trabalho.
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* Nasci em São Paulo em 1988, sou
advogada, professora universitária e escritora. Casada com um
português, vivo em Lisboa desde 2015. Me formei em Direito na Pontifícia
Universidade de São Paulo, onde me pós graduei em Processo do Trabalho e
cursei meu mestrado. Vivi em Paris e em Roma, onde cursei minha pós
graduação em Direito Sindical. Em Portugal, fiz
uma pós graduação em Direito Europeu e agora curso o doutoramento em
Direito Internacional, ambos na Clássica. Sou professora de Direito do
Trabalho e Direito Internacional. Escrevo no Estadão, jornal de São
Paulo, desde 2014 e no Observador desde 2016. Tenho dois livros de
crônicas publicados no Brasil. Apaixonada por Portugal e pelo Brasil
desde sempre.
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