segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Neymar, o fracasso sobe à cabeça

Frei Betto*

Neymar de­cep­ci­onou na Copa da Rússia. Nem se­quer fi­gurou entre os 10 jo­ga­dores con­si­de­rados pela FIFA os me­lhores do mundo. E guardou si­lêncio. Ob­se­quioso ou rai­voso? E, no úl­timo do­mingo, pediu des­culpas, não ao con­vocar uma co­le­tiva de im­prensa, e sim ao fazer um de­sas­troso co­mer­cial de lâ­mina de bar­bear.
     
Desde os 18 anos, ao ini­ciar sua car­reira no Santos, Neymar é re­belde. Já de­mons­trava não en­trar em campo apenas para jogar. Entra para lutar, xingar o téc­nico e os ad­ver­sá­rios, pro­testar junto ao juiz. Neymar tem pavio curto e ego longo. Não se con­forma quando a bola não é só dele.
    
Em 2010, Neymar xingou o téc­nico do Santos, Do­rival Jú­nior, por tê-lo pre­te­rido na co­brança de um pê­nalti. Por falta de ética do jo­gador, o téc­nico o sus­pendeu de uma par­tida im­por­tante, contra o Co­rinthians. A di­re­toria do Santos, em vez de apoiar o téc­nico, de­cidiu apoiar Neymar. Foi como se a es­cola ex­pul­sasse o pro­fessor ofen­dido pelo aluno.
    
Do­rival Jú­nior foi de­mi­tido pela di­re­toria do Santos “por in­su­bor­di­nação”, e Neymar, es­ca­lado para o jogo contra o Co­rinthians. Adi­antou pouco. Neymar não fez gol e o Co­rinthians ga­nhou por 3 x 2.
    
Mano Me­nezes, téc­nico da se­leção bra­si­leira entre 2010 e 2012, fez o que o Santos de­veria ter feito: puniu o jovem atleta. Mos­trou-lhe os li­mites. Se Neymar queria ver seu ta­lento bri­lhando nos jogos, teria que aprender a do­minar sua fúria. Aprender a saber perder. E ad­mitir que ele pode muito. Mas não pode tudo.
    
O fu­tebol já foi es­porte. Hoje, é com­pe­tição. Já foi arte. Hoje, é vi­o­lência. Já foi fator de in­te­gração so­cial. Hoje, acirra dis­putas entre tor­cidas en­fu­re­cidas. Os es­tá­dios, em dia de jogo, pa­recem pe­ni­ten­ciá­rias em dia de vi­sitas. Po­li­ciais por todos os lados, tor­ce­dores re­vis­tados, armas apre­en­didas.
    
Os jo­ga­dores mais se pa­recem atletas de luta livre. En­tram em campo para tru­cidar o ad­ver­sário. Pre­do­mina a agressão verbal e fí­sica. As faltas não re­sultam da dis­puta de bola. São pre­me­di­tadas e visam a imo­bi­lizar o ad­ver­sário, de pre­fe­rência mandá-lo para fora de campo ou mesmo para o hos­pital.
    
Os va­lores de­mo­crá­ticos são ne­gados pelo ethos guer­reiro do fu­tebol que se pra­tica hoje. Os times en­tram em campo im­buídos de es­pí­rito re­van­chista. Por trás de cada jo­gador há o jogo de poder dos car­tolas. Os atletas valem pelo que re­pre­sentam mo­ne­ta­ri­a­mente. São tra­tados como pro­dutos de ex­por­tação. E, em um mundo ca­rente de he­róis al­truístas, eles ocupam o vácuo. São ido­la­trados, in­ve­jados, imi­tados.
    
Na ca­beça de mi­lhares de cri­anças e jo­vens, eis um modo de se tornar rico e fa­moso sem pre­cisar dar duro nos es­tudos. Basta ter a ha­bi­li­dade de fazer a bola obe­decer a von­tade que se ma­ni­festa nos pés.
    
Gi­gante ador­me­cido não é apenas o Brasil. É também a nossa se­leção, desde a con­quista do pen­ta­cam­pe­o­nato e do fra­casso nas úl­timas copas. Hoje, o que pa­rece uma sim­ples par­tida entre dois times é, para car­tolas e in­ves­ti­dores, um la­bo­ra­tório des­ti­nado a trans­formar gatos em leões.
    
Na Copa de 1950, no jogo final, em pleno Ma­ra­canã, o Uru­guai ga­nhou do Brasil por 2 x 1. Na­quela época, o fu­tebol ainda era es­porte. Os es­tá­dios não se pa­re­ciam a co­li­seus, nem os atletas a gla­di­a­dores. E os car­tolas tor­ciam mais por seus times que por suas contas ban­cá­rias.
    
Bons jo­ga­dores não brotam de um dia para o outro. São pre­pa­rados desde a in­fância. Os clubes mantêm es­co­li­nhas de fu­tebol. Muitas exigem dos alunos frequência à es­cola formal e boas notas. Isso é bom. Mas não su­fi­ci­ente. Essas cri­anças de­ve­riam também aprender o que sig­ni­fica ética nos es­portes. Va­lores e di­reitos hu­manos. Para que, mais tarde, alu­ci­nadas por fama e for­tuna, não se trans­formem em mons­tros sus­peitos de cum­pli­ci­dade com tra­fi­cantes ou de ho­mi­cí­dios he­di­ondos.
    
Em que me­dida o bullying, que tanto as­susta as es­colas, é re­flexo do que se passa em nossos es­tá­dios? Onde falta edu­cação cam­peia a per­versão. Se a lei do mais forte é o que pre­do­mina aos olhos da mul­tidão, como es­perar uma ati­tude di­fe­rente de cri­anças e jo­vens ca­rentes de exem­plos de ge­ne­ro­si­dade e so­li­da­ri­e­dade?
    
Nosso fu­tebol, tra­di­ci­o­nal­mente tão bom de bola, não es­taria ruim da ca­beça? Não teria se trans­for­mado em imenso cas­sino mo­ni­to­rado por quem an­garia for­tunas? Faz sen­tido, num país ci­vi­li­zado, atletas, sím­bolos de vida sau­dável, po­sarem de ga­rotos-pro­pa­ganda de be­bidas al­coó­licas?
    
Há que es­co­lher entre Olímpia e Roma, ma­ra­tona e co­liseu. E co­nhecer a di­fe­rença entre os verbos dis­putar e ani­quilar.
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* Frei Betto é es­critor, autor de “Al­fa­betto – au­to­bi­o­grafia es­colar” (Ática), entre ou­tros li­vros. 
Fonte:  http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13390-neymar-o-fracasso-sobe-a-cabeca

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