Catherine Larrère*
Sem que nos déssemos verdadeiramente conta, o termo tornou-se quase banal: o Antropoceno é
essa nova era que vê o Homem imprimir sua
marca sobre a evolução geológica do planeta.
No entanto, por trás
da aparência de simplicidade da mensagem — o que assegurou
sua
eficácia — persiste uma ambiguidade importante: na verdade,
estamos falando de quê?
Com base no corpo de dados científicos coletados sobre o conjunto do planeta, uma coisa é evidente: os impactos das atividades humanas fizeram da humanidade, no seu conjunto, uma força geológica capaz de transformar o Sistema Terra a ponto de comprometer o planeta todo num novo período de sua história geológica. Daí a proposta de usar o nome de Antropoceno para esse novo período (aparecida em 2000 na Newsletter do International Geosphere-Biosphere Program e, depois, em 2002, num artigo publicado na Nature, do geólogo e biólogo estadunidente Eugene Stoermer e do geoquímico e Nobel de química holandês Paul Crutzen). O antropoceno seria acrescentado aos outros períodos até então distinguidos dentro do Quaternário: o pleistoceno (marcado pelos ciclos glaciares) e o holoceno (no qual o recuo das glaciações foi acompanhado, por parte dos humanos, do desenvolvimento da agricultura e da pecuária).
Essa proposta, é certo, ainda não foi adotada oficialmente, pois isso depende de um voto da União Internacional das Ciências Geológicas, em um de seus próximos congressos, após consideração de relatórios feitos por um subcomitê nomeado para esse fim. Para os cientistas, portanto, o antropoceno continua sendo apenas uma hipótese. No entanto, ele já encontrou um grande sucesso, muito além dos meios científicos conclamados a aceitá-lo ou a rejeitá-lo: o antropoceno tornou-se uma receita, colóquios são feitos, livros são publicados.
Tal sucesso deve-se, sem sombra de dúvidas, ao seu nome: orgulha-nos o fato de uma era geológica (nada menos!) levar o nome dos humanos. Viagem ao antropoceno, essa nova era na qual todos somos os heróis, anunciou um dos primeiros livros em francês sobre a questão [https://www.actes-sud.fr/catalogue/societe/voyage-dans-lanthropocene].
Todavia, seus autores, Claude Lorius e Laurent Carpentier, mostraram-se no meio do livro menos fanfarrões do que no título, ao declarar: “O antropoceno não é ‘a era dos humanos’, é a era de uma crise”. O termo crise, porém, não é conveniente. Ele leva a pensar que se trata de problemas passageiros que desaparecerão depois de um retorno à normalidade. Mas quando falamos de antropoceno nomeamos uma época geológica, uma coisa que dura.
Nos anos de 1970, a visão da “crise ambiental” exprimia-se em termos de reservatórios que se esvaziavam (recursos naturais não renováveis) ou se redobravam (poluições que se acumulam). Falando de antropoceno, não fazemos mais referência a estoques, mas a processos, a ciclos globais. Trata-se, agora, do ciclo do carbono, a ponto do antropoceno ter se tornado praticamente sinônimo da mudança climática, sem, contudo, reduzir-se a ela, segundo seus promotores.
O antropoceno é também uma questão de ciclos do nitrogênio e do fósforo, de acidificação dos oceanos, de regime de águas, e, sobretudo, de biodiversidade: o desaparecimento acelerado de certas espécies e a rarefação das populações de muitas outras fazem parte dos fenômenos globais particularmente inquietantes que caracterizam o antropoceno.
As atividades humanas afetam, assim, o conjunto dos processos terrestres, e isso surte efeito nas sociedades, em retorno: crescimento das desigualdades sociais, modificações de políticas econômicas, migrações de populações, exacerbação de conflitos...: todas as dimensões da vida social são atingidas. Isso exige uma requalificação global da situação, o que permite usar o nome antropoceno.
Não estamos numa crise passageira, não enfrentamos um problema setorial, nós nos encontramos numa situação que se modificou globalmente, que modifica, até no mais íntimo, nossas condições de vida. A mudança é maciça, durável e, talvez, ao menos em escala humana, irreversível.
Uma vez que o antropoceno é resultado das ações humanas e que elas também são afetadas por ele, ele faz parte da história delas. O antropoceno é a grande narrativa do encontro entre a história social dos homens e a história natural do planeta. Essa narrativa é contada no passado: como chegamos a esse ponto, como nos apercebemos disso? Mas ela também é contada no futuro. Os impactos de nossas ações fazem-se sentir sobre escalas de tempo mais longas (séculos e / ou milênios): o antropoceno, na sua maior parte, ainda está por vir.
Não se trata apenas de dar sentido ao nosso passado, mas de desenhar nosso futuro fornecendo referências globais às nossas ações. A narrativa, ou melhor, as narrativas do antropoceno são, portanto, ainda mais que os dados científicos invocados pela hipótese, o que explica seu sucesso, mas também e sobretudo as controvérsias por ele engendradas.
O antropoceno é, de fato, o objeto de duas narrativas opostas, entre o poder e a perda de controle.
A primeira narrativa é a da geoengenharia planetária. Ela versa sobre as intervenções técnicas aplicadas em grande escala, seja em vista de absorver ou de capturar grandes quantidades de carbono, como, por exemplo, a “fertilização" dos oceanos com a ajuda de partículas de ferro. A finalidade disso é bloquear os raios do sol, e, assim, agir sobre o balanço radiativo da atmosfera e contrabalançar o efeito estufa, recorrendo especialmente ao borrifamento de enxofre na estratosfera.
Essa visão otimista das coisas vê na crise climática a ocasião de assumir o controle do sistema Terra, criando, dessa forma, as condições de um “bom antropoceno”. É o que promovem os ecomodernistas do Breakthrough Institute [https://thebreakthrough.org/], criado em 2010 por Nordhaus e Schellenberg, depois do fracasso da conferência de Copenhague.
A narrativa oposta é a do catastrofismo. Bem longe de abrir a possibilidade de um controle global do planeta pelas tecnologias apropriadas, o antropoceno marca, ao contrário, o fim dessa ambição: o planeta escapa ao nosso controle, iremos na direção de uma catástrofe. O tempo do antropoceno, nessa perspectiva, é o das causalidades não lineares, ciclos de retroação e “pontos singulares” que provocam o vaivém numa situação completamente nova.
O antropoceno é, portanto, a era das catástrofes no sentido de um futuro muito instável, não linear, cujas grandes perturbações — internas e externas — serão a norma. É também a era dos colapsos [http://www.seuil.com/ouvrage/comment-tout-peut-s-effondrer-pablo-servigne/9782021223316] que pode também ser lenta, como, por exemplo, o fim do crescimento, tão brutal quanto o risco de colapso sistêmico global.
Por mais antagônicas que sejam essas duas narrativas, elas estão associadas. A mesma visão global que levou à formulação da hipótese do antropoceno sustenta o projeto de controle técnico do clima em escala planetária. Paul Crutzen, um dos autores da proposta de nomear o novo período geológico de antropoceno, é ele também um defensor da geoengenharia global.
Mas, nos dois casos, temos narrativas globais, que tratam da humanidade de maneira unificada. Ora, é exatamente sobre esse ponto que ocorreram alguns dos mais vivos debates em torno do nome. Para Chakrabarty, historiador estadunidense especialista em história pós-colonial, a lição a ser tirada da mudança climática é a do esfacelamento da fronteira entre história humana e história natural. A humanidade deve agora considerar-se em sua unidade, a de uma espécie biológica. Outros historiadores denunciaram essa naturalização da humanidade [https://pt.scribd.com/document/60420504/Le-climat-de-l-histoire-quatre-theses].
Ao falar de “antropoceno" fazemos da humanidade toda, na sua profundidade histórica e na sua dispersão espacial, o sujeito unificado da história da alteração da Terra. E, de um só golpe, atribuímos a ela a responsabilidade de maneira indiferenciada. Ora, esse não é o caso: as diferentes populações do mundo não participaram de maneira igual no processo que resultou na situação presente. Ela é o resultado de um desenvolvimento industrial e comercial que começou no Ocidente, desenvolvimento este do qual o Ocidente ainda é em grande medida o motor e que levou a certo tipo de organização social e econômica.
A história que leva à degradação atual do planeta é a da busca do lucro [https://www.versobooks.com/books/1924-capitalism-in-the-web-of-life], a da exploração dos trabalhadores, a da dominação das colônias e a do fatiamento regulado de uma natureza que tende a ser destruída pela sua própria apropriação. Mais que antropoceno, valeria a pena falar melhor de capitaloceno.
Quanto aos chamados povos do Sul, os quais pouco contribuíram para os males que nos afetam hoje, eles são muito mais afetados do que os Ocidentais: são as populações das zonas tropicais expostas às secas ou à violência dos furacões, as das zonas de deltas ou de ilhas do Pacífico ameaçadas pela elevação do nível das águas, as que mais sofrem com a mudança climática e que menos possuem os meios de enfrentá-la pelo simples fato de sua pobreza.
Que termo pode ser usado para caracterizar os habitantes da nova era? Mais que humanos, demasiado ligado à modernidade e à aspiração de um modo de vida que hoje sabemos não ser possível a todos, Bruno Latour propôs [http://www.editionsladecouverte.fr/catalogue/index-O___atterrir__-9782707197009.html] a denominação de Terranos [Terriens], mais adequada a considerar a diversidade de habitantes da Terra. Mas esses habitantes não são apenas humanos. A mudança climática e o cortejo de transformações que a segue não afetam apenas aos humanos, colocando em perigo a comunidade dos seres vivos, animais e vegetais. Falar de antropoceno e de capitaloceno é esquecer os não humanos.
Para considerá-los, Donna Haraway [https://www.dukeupress.edu/staying-with-the-trouble], filósofa estadunidense, propõe uma outra denominação, a de “chthuluceno”, neologismo que alia a referência à Terra (do grego khtlôn, terra) ao nome vernacular de uma aranha da Califórnia central, Pimoa cthulhu, um habitante não humano da Terra. É uma maneira de lembrar que a Terra não está reservada somente aos humanos, mesmo se as consequências da presença dos humanos façam-se sentir pesadamente.
Quaisquer que possam ser os méritos da denominação de chthuluceno, há muito poucas chances que venha a substituir a de antropoceno para qualificar o que nos importa, que é a situação na qual nos encontramos hoje. E muito menos a de capitaloceno. As duas denominações não propõem soluções de substituição, ambas dirigem a atenção, de maneira a encorajar o debate, para os defeitos da denominação de antropoceno. E talvez seja justamente essa ambiguidade o que explique seu sucesso.
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* Catherine Larrère é filósofa, professora emérita da Universidade Paris I — Panthéon-Sorbonne, especialista em filosofia moral e política.
Tradução: Cassiano Terra Rodrigues, colunista do Correio da Cidadania.
Originalmente publicado em 10 de Abril de 2018, em AOC [Analyse Opinion Critique] (https://aoc.media/analyse/2018/07/30/anthropocene-quest-cest-2/)
Com base no corpo de dados científicos coletados sobre o conjunto do planeta, uma coisa é evidente: os impactos das atividades humanas fizeram da humanidade, no seu conjunto, uma força geológica capaz de transformar o Sistema Terra a ponto de comprometer o planeta todo num novo período de sua história geológica. Daí a proposta de usar o nome de Antropoceno para esse novo período (aparecida em 2000 na Newsletter do International Geosphere-Biosphere Program e, depois, em 2002, num artigo publicado na Nature, do geólogo e biólogo estadunidente Eugene Stoermer e do geoquímico e Nobel de química holandês Paul Crutzen). O antropoceno seria acrescentado aos outros períodos até então distinguidos dentro do Quaternário: o pleistoceno (marcado pelos ciclos glaciares) e o holoceno (no qual o recuo das glaciações foi acompanhado, por parte dos humanos, do desenvolvimento da agricultura e da pecuária).
Essa proposta, é certo, ainda não foi adotada oficialmente, pois isso depende de um voto da União Internacional das Ciências Geológicas, em um de seus próximos congressos, após consideração de relatórios feitos por um subcomitê nomeado para esse fim. Para os cientistas, portanto, o antropoceno continua sendo apenas uma hipótese. No entanto, ele já encontrou um grande sucesso, muito além dos meios científicos conclamados a aceitá-lo ou a rejeitá-lo: o antropoceno tornou-se uma receita, colóquios são feitos, livros são publicados.
Tal sucesso deve-se, sem sombra de dúvidas, ao seu nome: orgulha-nos o fato de uma era geológica (nada menos!) levar o nome dos humanos. Viagem ao antropoceno, essa nova era na qual todos somos os heróis, anunciou um dos primeiros livros em francês sobre a questão [https://www.actes-sud.fr/catalogue/societe/voyage-dans-lanthropocene].
Todavia, seus autores, Claude Lorius e Laurent Carpentier, mostraram-se no meio do livro menos fanfarrões do que no título, ao declarar: “O antropoceno não é ‘a era dos humanos’, é a era de uma crise”. O termo crise, porém, não é conveniente. Ele leva a pensar que se trata de problemas passageiros que desaparecerão depois de um retorno à normalidade. Mas quando falamos de antropoceno nomeamos uma época geológica, uma coisa que dura.
Nos anos de 1970, a visão da “crise ambiental” exprimia-se em termos de reservatórios que se esvaziavam (recursos naturais não renováveis) ou se redobravam (poluições que se acumulam). Falando de antropoceno, não fazemos mais referência a estoques, mas a processos, a ciclos globais. Trata-se, agora, do ciclo do carbono, a ponto do antropoceno ter se tornado praticamente sinônimo da mudança climática, sem, contudo, reduzir-se a ela, segundo seus promotores.
O antropoceno é também uma questão de ciclos do nitrogênio e do fósforo, de acidificação dos oceanos, de regime de águas, e, sobretudo, de biodiversidade: o desaparecimento acelerado de certas espécies e a rarefação das populações de muitas outras fazem parte dos fenômenos globais particularmente inquietantes que caracterizam o antropoceno.
As atividades humanas afetam, assim, o conjunto dos processos terrestres, e isso surte efeito nas sociedades, em retorno: crescimento das desigualdades sociais, modificações de políticas econômicas, migrações de populações, exacerbação de conflitos...: todas as dimensões da vida social são atingidas. Isso exige uma requalificação global da situação, o que permite usar o nome antropoceno.
Não estamos numa crise passageira, não enfrentamos um problema setorial, nós nos encontramos numa situação que se modificou globalmente, que modifica, até no mais íntimo, nossas condições de vida. A mudança é maciça, durável e, talvez, ao menos em escala humana, irreversível.
Uma vez que o antropoceno é resultado das ações humanas e que elas também são afetadas por ele, ele faz parte da história delas. O antropoceno é a grande narrativa do encontro entre a história social dos homens e a história natural do planeta. Essa narrativa é contada no passado: como chegamos a esse ponto, como nos apercebemos disso? Mas ela também é contada no futuro. Os impactos de nossas ações fazem-se sentir sobre escalas de tempo mais longas (séculos e / ou milênios): o antropoceno, na sua maior parte, ainda está por vir.
Não se trata apenas de dar sentido ao nosso passado, mas de desenhar nosso futuro fornecendo referências globais às nossas ações. A narrativa, ou melhor, as narrativas do antropoceno são, portanto, ainda mais que os dados científicos invocados pela hipótese, o que explica seu sucesso, mas também e sobretudo as controvérsias por ele engendradas.
O antropoceno é, de fato, o objeto de duas narrativas opostas, entre o poder e a perda de controle.
A primeira narrativa é a da geoengenharia planetária. Ela versa sobre as intervenções técnicas aplicadas em grande escala, seja em vista de absorver ou de capturar grandes quantidades de carbono, como, por exemplo, a “fertilização" dos oceanos com a ajuda de partículas de ferro. A finalidade disso é bloquear os raios do sol, e, assim, agir sobre o balanço radiativo da atmosfera e contrabalançar o efeito estufa, recorrendo especialmente ao borrifamento de enxofre na estratosfera.
Essa visão otimista das coisas vê na crise climática a ocasião de assumir o controle do sistema Terra, criando, dessa forma, as condições de um “bom antropoceno”. É o que promovem os ecomodernistas do Breakthrough Institute [https://thebreakthrough.org/], criado em 2010 por Nordhaus e Schellenberg, depois do fracasso da conferência de Copenhague.
A narrativa oposta é a do catastrofismo. Bem longe de abrir a possibilidade de um controle global do planeta pelas tecnologias apropriadas, o antropoceno marca, ao contrário, o fim dessa ambição: o planeta escapa ao nosso controle, iremos na direção de uma catástrofe. O tempo do antropoceno, nessa perspectiva, é o das causalidades não lineares, ciclos de retroação e “pontos singulares” que provocam o vaivém numa situação completamente nova.
O antropoceno é, portanto, a era das catástrofes no sentido de um futuro muito instável, não linear, cujas grandes perturbações — internas e externas — serão a norma. É também a era dos colapsos [http://www.seuil.com/ouvrage/comment-tout-peut-s-effondrer-pablo-servigne/9782021223316] que pode também ser lenta, como, por exemplo, o fim do crescimento, tão brutal quanto o risco de colapso sistêmico global.
Por mais antagônicas que sejam essas duas narrativas, elas estão associadas. A mesma visão global que levou à formulação da hipótese do antropoceno sustenta o projeto de controle técnico do clima em escala planetária. Paul Crutzen, um dos autores da proposta de nomear o novo período geológico de antropoceno, é ele também um defensor da geoengenharia global.
Mas, nos dois casos, temos narrativas globais, que tratam da humanidade de maneira unificada. Ora, é exatamente sobre esse ponto que ocorreram alguns dos mais vivos debates em torno do nome. Para Chakrabarty, historiador estadunidense especialista em história pós-colonial, a lição a ser tirada da mudança climática é a do esfacelamento da fronteira entre história humana e história natural. A humanidade deve agora considerar-se em sua unidade, a de uma espécie biológica. Outros historiadores denunciaram essa naturalização da humanidade [https://pt.scribd.com/document/60420504/Le-climat-de-l-histoire-quatre-theses].
Ao falar de “antropoceno" fazemos da humanidade toda, na sua profundidade histórica e na sua dispersão espacial, o sujeito unificado da história da alteração da Terra. E, de um só golpe, atribuímos a ela a responsabilidade de maneira indiferenciada. Ora, esse não é o caso: as diferentes populações do mundo não participaram de maneira igual no processo que resultou na situação presente. Ela é o resultado de um desenvolvimento industrial e comercial que começou no Ocidente, desenvolvimento este do qual o Ocidente ainda é em grande medida o motor e que levou a certo tipo de organização social e econômica.
A história que leva à degradação atual do planeta é a da busca do lucro [https://www.versobooks.com/books/1924-capitalism-in-the-web-of-life], a da exploração dos trabalhadores, a da dominação das colônias e a do fatiamento regulado de uma natureza que tende a ser destruída pela sua própria apropriação. Mais que antropoceno, valeria a pena falar melhor de capitaloceno.
Quanto aos chamados povos do Sul, os quais pouco contribuíram para os males que nos afetam hoje, eles são muito mais afetados do que os Ocidentais: são as populações das zonas tropicais expostas às secas ou à violência dos furacões, as das zonas de deltas ou de ilhas do Pacífico ameaçadas pela elevação do nível das águas, as que mais sofrem com a mudança climática e que menos possuem os meios de enfrentá-la pelo simples fato de sua pobreza.
Que termo pode ser usado para caracterizar os habitantes da nova era? Mais que humanos, demasiado ligado à modernidade e à aspiração de um modo de vida que hoje sabemos não ser possível a todos, Bruno Latour propôs [http://www.editionsladecouverte.fr/catalogue/index-O___atterrir__-9782707197009.html] a denominação de Terranos [Terriens], mais adequada a considerar a diversidade de habitantes da Terra. Mas esses habitantes não são apenas humanos. A mudança climática e o cortejo de transformações que a segue não afetam apenas aos humanos, colocando em perigo a comunidade dos seres vivos, animais e vegetais. Falar de antropoceno e de capitaloceno é esquecer os não humanos.
Para considerá-los, Donna Haraway [https://www.dukeupress.edu/staying-with-the-trouble], filósofa estadunidense, propõe uma outra denominação, a de “chthuluceno”, neologismo que alia a referência à Terra (do grego khtlôn, terra) ao nome vernacular de uma aranha da Califórnia central, Pimoa cthulhu, um habitante não humano da Terra. É uma maneira de lembrar que a Terra não está reservada somente aos humanos, mesmo se as consequências da presença dos humanos façam-se sentir pesadamente.
Quaisquer que possam ser os méritos da denominação de chthuluceno, há muito poucas chances que venha a substituir a de antropoceno para qualificar o que nos importa, que é a situação na qual nos encontramos hoje. E muito menos a de capitaloceno. As duas denominações não propõem soluções de substituição, ambas dirigem a atenção, de maneira a encorajar o debate, para os defeitos da denominação de antropoceno. E talvez seja justamente essa ambiguidade o que explique seu sucesso.
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* Catherine Larrère é filósofa, professora emérita da Universidade Paris I — Panthéon-Sorbonne, especialista em filosofia moral e política.
Tradução: Cassiano Terra Rodrigues, colunista do Correio da Cidadania.
Originalmente publicado em 10 de Abril de 2018, em AOC [Analyse Opinion Critique] (https://aoc.media/analyse/2018/07/30/anthropocene-quest-cest-2/)
FONTE em português: http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13397-mas-o-que-e-esse-tal-de-antropoceno 07/08/2018
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