“Aqui estou eu, um homem velho, num mês seco.” Sinto-me velho,
cansado e saudosista. Talvez isso venha da idade — ou será reflexo
destes estranhos tempos? Dinossauro fugido de seu parque jurássico,
virei o tio anacrônico que fala, a propósito de tudo, “No meu tempo…”.
Não vou dizer que a internet era tudo mato quando aqui aportei, mas que
ela era ainda movida a vapor, isso era. Melhorou bastante depois que
colocaram válvulas. E mudou muito. Mudou tanto que não encontro as
balizas de sempre e me perco constantemente. Abarrotam-nos de
informações. De certa maneira, crescemos: saímos todos da caverna. Ou a
ela regredimos e lá (aqui) dentro só vemos as sombras da vida real? Não
sei bem, deixo para Manuel Castells responder.
Eu também mudei consideravelmente, é certo. Mudou o Natal ou mudamos
nós? O Natal e nós, Machado. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”,
não é mesmo? Antes eu ria mais — de que me ria tanto, santo Deus?
Ensimesmei-me. Encaneci-me. Encabulei-me. Embruteci-me? Talvez. Fixei
posições, marchei rumo a outras, inclusive politicamente: me movi mais
ainda para a direita, todos perceberam. Perceberam? Não por modinha, mas
por enfado. Havia já em mim, claro, uns atávicos laivos udenistas e
religiosos, a coisa apenas entrou nos eixos com algumas leituras mais
ordenadas. Dá trabalho. Cansa. Ser de direita no Facebook é fácil, o
esprit de corps ajuda a evitar o linchamento, difícil mesmo é na rua, os
conhecidos nos olham meio de banda, há quem mude de calçada. “Nossa,
tanta informação, tão inteligente, não acredito que você seja
direitista”, o que é bola levantada para a resposta — “Eu também não
acredito que você, tão burro, não seja de direita” (atenção: ironia na
frase, não a levem ao pé da letra). Dito isso, ressalvo: detesto que me
exijam postura cívica permanente. Prezo a liberdade de nada demandar dos
poderes constituídos e das autoridades civis, militares e
eclesiásticas, como se dizia. O que sou ideologicamente, então? Eu
diria, no susto, que talvez eu seja o que os americanos chamam
“paleoconservative” (não sei se o termo já é usado aqui no Florão) —
tradicional, quatrocentão, consueto, provecto, kosher, ortodoxo como
missa em latim.
Falando em missa, outra mudança: durante muito tempo tive apenas,
digamos, a esperança de Deus. Hoje creio. Mais problemas: crer também
traz dificuldades na terra onde imperam coisas do tipo “Sei lá, tenho
assim um lance tipo espiritual”. Espiritualidade, no Brasil, é usar
calcinha e cueca branca no Réveillon. Sim, creio — credo quia absurdum. É
uma crença que às vezes me dói. Se eu fosse menos melancólico, talvez
buscasse um cristianismo igual ao de Raul de Leoni, alegrinho e sem
virtudes tristes; aqui no Goiás (ser goiano é poder usar mal os artigos
definidos), contudo, somos como os mineiros de Pedro Nava: nossos santos
são aqueles de chagas expostas e martírios cruentos, nossa Semana Santa
é dramática, cremos que à virtude se chega pelo sofrimento — então fico
mesmo é com esses santos lacerados, feridos de flecha e queimados, com
essa religião ancestral de sepulcros e cadáveres, com essa instintiva
preferência pelo Ofício de Trevas sobre o Natal. Roma locuta, causa
finita — e eu tento obedecer.
Tenho me chateado e chateado os amigos. Vou me gastando pelo caminho,
ponta de cigarro sem serventia. Entendiei-me na estrada. Bebi. Li.
Viajei. Namorei. Ainda “não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado de nossa miséria”.
Sim, viajei. Viaja-se para se fugir do ennui, e por isso rodei o
mundo; de repente, porém, me veio uma vontade de conhecer a fundo este
Brasilzão véi sem porteira. Ouço “cariri” e sinto logo uma cafubira
danada para partir. “Adeus, escritório, / Adeus pra nunca mais: / Eu vou
sair pelo mundo, / Eu vou pra Minas Gerais.” E este Goiás tem me
espantado. Rubem Braga disse certa vez que merecia ser goiano — azar do
velho Braga, que nasceu capixaba: essa honra me coube, sou goiano
orgulhoso de quatro costados. Não basta, porém, ser goiano, de quando em
quando é preciso meter o nariz além da porteira, ver uns matos
remanescentes e umas águas ainda limpas. Dei uma bispada no nosso
interiorzão, até em balsa no Rio das Almas andei subindo — navegar em
balsa humilde me deixa feliz como novo-rico velejando em iate. Olhos
nossos tantos rios e me perco imaginando quem os conheceu, o Anhanguera,
Spix, Pohl, Saint-Hilaire, D’Alincourt, Luís Cruls, toda essa gente. Me
comovo: viram o que vejo hoje? “Conheço rios: conheço rios tão antigos
quanto o mundo e mais velhos que o fluxo de sangue humano nas veias
humanas.” O interior também recompensa nossos estômagos: tenho guardada
uma lista secreta de restaurantes simples em que me fartei, mas só a
passo a amigos e mediante caução.
Ir a cemitérios tornou-se triste rotina. Fazer o quê? É o preço dos cabelos brancos. “Sopra o vento, é preciso tentar viver.”
Sobraram-me poucas vaidades, logo a mim, que já quis ser rei de
França. Um terno bem cortado, as tantas línguas estrangeiras aprendidas,
a coleção de livros. Pouca coisa mais. Não gosto de carros, canetas,
relógios, petrechos de fazer café ou churrasco. Estar no lugar da moda
não me apetece. Fear of missing out é para adolescentes; na meia-idade, a
viagem é pelos abismos interiores. Já entendi muito de vinho, montei
adega e biblioteca especializada, depois me enfastiei. Enfastio-me
facilmente. Tomei birra de chefes de cozinha, troquei — com enorme
prazer — o “Guia Michelin” pelo “Guia de Botequins”. Comer num pé-sujo é
pura poesia.
Não me tornei bombeiro porque jamais fui incendiário. Claro, claro,
em algum momento o superego era equipamento recente, e descobri depois
que ele se dissolvia em álcool, mas nem por isso matei meu professor de
lógica aos 16 anos. “Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que
todos os problemas eram insolúveis” — amadores: eu desisto logo no
primeiro.
Do Direito — tanto tempo estou nesta lida! —, sobrou-me a paixão
intelectual pela teoria jurídica, assim como a tenho, digamos, por mapas
e pela história da Segunda Guerra. Na prática, a teoria, infelizmente, é
outra: saber que o inciso tal foi revogado tacitamente pelo artigo da
lei número 666 é o equivalente intelectual a trabalhar numa mina de
carvão. “The first thing we do, let’s kill all the lawyers.” Estou
profundamente cansado de leis e códigos.
Já da juventude voltou-me, coisa estranha, o apreço por bichos e o
gosto por futebol. Dizem que existe quem viva sem gatos em casa, ma non
credo. E eu sou Goiás Esporte Clube, eu sou Goiás, eu sou Goiás e vou
vibrar até o peito me doer, até perder a voz eu sou Goiás, eu sou Goiás
até morrer — fui menino de ouvir jogo em rádio de pilha: Edson, Zé
Teodoro, Timoura, Marcelo, Nonoca, Nei, Carlos Alberto, Sávio,
Washington, Cacau e Hilton. Mas me viciei mesmo foi em futebol
americano, go figure.
A parentela tem diminuído, o que é tão inexorável quanto a cobrança
de impostos; já os amigos permanecem. Talvez seja esta a minha obra mais
acertada: os muitos amigos. Os antigos, incrivelmente, não abandonaram
seus postos (descontadas, obviamente, as defecções trazidas pela
Indesejada), e até uns novos surgiram, apesar de eu, sendo “fútil,
quotidiano, tributável”, achar o próximo igualmente “fútil, quotidiano,
tributável”. Obrigado, meus velhos.
Já me disseram que os cabelos grisalhos me trouxeram charme e algo
como certa propensão à virtù; também ouvi ser dito, mãos sobre bocas
para evitar constrangimentos, que envelheci rapidamente. Não importa:
como sofro simultaneamente de miopia e presbiopia (a velha vista
cansada), há uma distância — justamente aquela em que me miro em
espelhos — para a qual os óculos são de pouca serventia (também já tem
algum tempo que não consigo mais ler lombada de livro em estante).
Melhor assim.
Desasnei-me um pouco, creio. Reconheço um pentâmetro iâmbico à
distância de metros, sei o que é um imperativo categórico, “filosofar
com o martelo” não me é expressão estranha, entendi a revolução da
polifonia e compreendo as referências de Rory em “Gilmore Girls” e os
títulos dos episódios de “Breaking Bad”. Ouvi desde Gonzagão a Mozart,
li Patativa do Assaré e Thomas Mann, comecei vendo Didi Mocó Sonrisal
Colestorol e terminei assistindo a Ingmar Bergman. Ave: ars longa.
Recrudesceu a depressão. É sina de família. Tem nada não: o doutor
Paulo Maurício tem seu DSM-5 e seu bloquinho de receitas. Como
consequência, as feridas aumentaram. De novo: tem nada não — “mientras
más honda la herida, és mi canto más hermoso”. E sempre haverá auroras
depois da madrugada.
É preciso tomar cuidado com a Schadenfreude: costuma atacar na meia-idade. Dizem que passa ali pelos 55 anos. A ver.
Tenho muitas dúvidas e algumas certezas. Por exemplo, sei que gosto
de: livros autografados, trens, cassinos, ouvir Martinho da Vila
seguidamente, cerveja escura, usar camisa estampada aos sábados,
palavras polissílabas, expressões engraçadas, livros em que o autor se
perde em digressões, revistas sobre todos os assuntos, ruas de
paralelepípedos, igrejas mineiras, forró, conhecer todas as versões da
“Sinfonia para Violoncelo n. 1” (Bach), repassar muitas vezes a cena dos
beijos cortados em “Cinema Paradiso”, samba no morro, mostarda,
“Apocalipse Now” e “Era Uma Vez na América”, gente corajosa (coragem é a
suprema forma de elegância), livros de memórias, “Breaking Bad”, humor
inglês, cidade europeia esquecida no tempo, Frank Sinatra em todas as
idades, missa com canto gregoriano, ouvir o canto do muezim, visitar
cemitérios (a passeio!), decisões da Suprema Corte americana sobre
liberdade de expressão, ver gato se lambendo, El Greco, escritor
conservador bem articulado, cartas antigas, ler Montaigne com vagar,
arrumar estantes, peça publicitária bem elaborada, mulher bonita sem
maquiagem, Super Bowl, os amigos da Tabacaria n. 1, Tuco Benedicto
Pacífico Juan María Ramírez, trilha sonora do Ennio Morricone, rir solto
com os fradinhos do Henfil, Pirenópolis de sexta a domingo, dicionários
e enciclopédias, qualquer tipo de café, iPad, sebos de livros, farol no
litoral, rodar a esmo em Goiânia, saber quem foram as pessoas que dão
nomes às ruas das cidades que visito, Calvin e Hobbes, ponte de madeira,
ouvir nordestino dizer “tu visse” no lugar de “tu viste”, reler “A
Máquina do Mundo” e “A Mesa”, jogos de tabuleiro, acarajé muito
apimentado, visitar campos de batalha, ver filmes com Christopher
Plummer, Faulkner em tardes calorentas e Proust em dias chuvosos,
paineiras floridas, sentenças em latim, soukes marroquinos, campus de
universidade antiga, jingles de campanha.
Não gostava antes, mas agora aprecio: feijoada, música sertaneja, literatura de cordel, passeio no campo.
Não gosto de: chefe de cozinha estrela, arquiteto estrela,
publicitário estrela, enólogo estrela, pescaria, boliche, livraria que
se declara “independente”, bares barulhentos, muito vento, cobras,
viajar com fotógrafo amador, bebedor de vinho que cita pontuação de
revista especializada, atividades práticas (fazer compras, declarar o
imposto de renda, ir à farmácia, abastecer o carro), camaradas
permanentemente indignados, livro emprestado e não devolvido, Jung e
Lacan (Freud ao menos escrevia bem), artigo de jornal lamentando algo
(“É lamentável a situação, oxalá possa o governo…”), conversa fiada em
elevador, desconhecido forçando amizade, quem abandona animal de
estimação, uso impreciso de palavras (“fascista”), gente simulando ter
cultura, jazz instrumental, tipos estranhos que escrevem em cafés.
Queria ter sido Paulo Mendes Campos — com menos álcool no organismo —
e escrito “Fragmentos em Prosa”, aquela coisa de que “foi através da
literatura que recebi a vida, e foi em mim a poesia uma divindade
necessária”, acho estupendo. Dói um pouco aqui no peito, essa flecha
certeira mirada na própria dispersão. (O mineiro também escreveu sobre
coisas de que gostava e não gostava, como faço aqui, mas não encontro o
diabo da crônica nas minhas pilhas desorganizadas.) Eu também entregaria
a alma ao Coisa-Ruim só para ter escrito “A Terceira Margem do Rio” ou
um único poema do “Romanceiro da Inconfidência”. “Ai, palavras, ai,
palavras.”
Consolo-me pensando que tenho alguma sprezzatura (James Bond lutando
sem amarrotar o terno), mas parece mais provável que eu seja um tanto
desengonçado em tudo o que faço (Groucho Marx andando apressado). Sei
que ainda não aprendi a me calar — “The lady doth protest too much,
methinks” —, mas tô tentando, tô tentando. E gostaria de me reinventar,
de me reconfigurar, tomar outros rumos, entrar talvez na vereda que
dispensei: “Amanhã, não percam: reinauguração de Marcelo Franco”…
Haveria tempo?
É isto. O que mais? Bem, sigo praticando o método confuso de vida.
Não foi escolha, foi triste sina. Aceito-a. E até afirmo: bons tempos,
estes maus tempos. Não há aquele ditado que diz que estaremos na verdade
mortos se nos percebermos de repente sem qualquer problema? Aliás, há
muito tempo me fascina esta belíssima prece por mais atribulações
(atribuída, creio, a Francis Drake):
“Disturb us, Lord, when
We are too pleased with ourselves,
When our dreams have come true
Because we dreamed too little,
When we arrived safely
Because we sailed too close to the shore.
Disturb us, Lord, when
with the abundance of things we possess
We have lost our thirst
For the waters of life;
Having fallen in love with life,
We have ceased to dream of eternity
And in our efforts to build a new earth,
We have allowed our vision
Of the new Heaven to dim.
Disturb us, Lord, to dare more boldly,
To venture on wilder seas
Where storms will show Your mastery;
Where losing sight of land,
We shall find the stars.
We ask you to push back
The horizons of our hopes;
And to push back the future
In strength, courage, hope, and love.
This we ask in the name of our Captain,
Who is Jesus Christ.”
Sim, Lord, disturb us, mas just a little, just a little…
We are too pleased with ourselves,
When our dreams have come true
Because we dreamed too little,
When we arrived safely
Because we sailed too close to the shore.
Disturb us, Lord, when
with the abundance of things we possess
We have lost our thirst
For the waters of life;
Having fallen in love with life,
We have ceased to dream of eternity
And in our efforts to build a new earth,
We have allowed our vision
Of the new Heaven to dim.
Disturb us, Lord, to dare more boldly,
To venture on wilder seas
Where storms will show Your mastery;
Where losing sight of land,
We shall find the stars.
We ask you to push back
The horizons of our hopes;
And to push back the future
In strength, courage, hope, and love.
This we ask in the name of our Captain,
Who is Jesus Christ.”
Sim, Lord, disturb us, mas just a little, just a little…
Escrevo estas confissões e não sei o que fazer com elas. Que o editor
da Bula decida, então, se as publica; como defesa, digo apenas que faço
uma envergonhada apuração de haveres em razão do meu aniversário já
próximo. Vou assim deixando a meia-idade e entrando em território ignoto
— com receio, muito receio: timor mortis conturbat me, quia in inferno
nulla est redemptio.
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* Editor da Revista eletrônica Bula
Fonte: https://www.revistabula.com/16634-homem-velho-mes-seco/
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