quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Homem velho, mês seco

Homem velho, mês seco
“Aqui estou eu, um homem velho, num mês seco.” Sinto-me velho, cansado e saudosista. Talvez isso venha da idade — ou será reflexo destes estranhos tempos? Dinossauro fugido de seu parque jurássico, virei o tio anacrônico que fala, a propósito de tudo, “No meu tempo…”. Não vou dizer que a internet era tudo mato quando aqui aportei, mas que ela era ainda movida a vapor, isso era. Melhorou bastante depois que colocaram válvulas. E mudou muito. Mudou tanto que não encontro as balizas de sempre e me perco constantemente. Abarrotam-nos de informações. De certa maneira, crescemos: saímos todos da caverna. Ou a ela regredimos e lá (aqui) dentro só vemos as sombras da vida real? Não sei bem, deixo para Manuel Castells responder.

Eu também mudei consideravelmente, é certo. Mudou o Natal ou mudamos nós? O Natal e nós, Machado. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, não é mesmo? Antes eu ria mais — de que me ria tanto, santo Deus? Ensimesmei-me. Encaneci-me. Encabulei-me. Embruteci-me? Talvez. Fixei posições, marchei rumo a outras, inclusive politicamente: me movi mais ainda para a direita, todos perceberam. Perceberam? Não por modinha, mas por enfado. Havia já em mim, claro, uns atávicos laivos udenistas e religiosos, a coisa apenas entrou nos eixos com algumas leituras mais ordenadas. Dá trabalho. Cansa. Ser de direita no Facebook é fácil, o esprit de corps ajuda a evitar o linchamento, difícil mesmo é na rua, os conhecidos nos olham meio de banda, há quem mude de calçada. “Nossa, tanta informação, tão inteligente, não acredito que você seja direitista”, o que é bola levantada para a resposta — “Eu também não acredito que você, tão burro, não seja de direita” (atenção: ironia na frase, não a levem ao pé da letra). Dito isso, ressalvo: detesto que me exijam postura cívica permanente. Prezo a liberdade de nada demandar dos poderes constituídos e das autoridades civis, militares e eclesiásticas, como se dizia. O que sou ideologicamente, então? Eu diria, no susto, que talvez eu seja o que os americanos chamam “paleoconservative” (não sei se o termo já é usado aqui no Florão) — tradicional, quatrocentão, consueto, provecto, kosher, ortodoxo como missa em latim.
Pedro Nava
Somos como os mineiros de Pedro Nava: nossos santos são aqueles de chagas expostas e martírios cruentos, cremos que à virtude se chega pelo sofrimento
Falando em missa, outra mudança: durante muito tempo tive apenas, digamos, a esperança de Deus. Hoje creio. Mais problemas: crer também traz dificuldades na terra onde imperam coisas do tipo “Sei lá, tenho assim um lance tipo espiritual”. Espiritualidade, no Brasil, é usar calcinha e cueca branca no Réveillon. Sim, creio — credo quia absurdum. É uma crença que às vezes me dói. Se eu fosse menos melancólico, talvez buscasse um cristianismo igual ao de Raul de Leoni, alegrinho e sem virtudes tristes; aqui no Goiás (ser goiano é poder usar mal os artigos definidos), contudo, somos como os mineiros de Pedro Nava: nossos santos são aqueles de chagas expostas e martírios cruentos, nossa Semana Santa é dramática, cremos que à virtude se chega pelo sofrimento — então fico mesmo é com esses santos lacerados, feridos de flecha e queimados, com essa religião ancestral de sepulcros e cadáveres, com essa instintiva preferência pelo Ofício de Trevas sobre o Natal. Roma locuta, causa finita — e eu tento obedecer.

Tenho me chateado e chateado os amigos. Vou me gastando pelo caminho, ponta de cigarro sem serventia. Entendiei-me na estrada. Bebi. Li. Viajei. Namorei. Ainda “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Sim, viajei. Viaja-se para se fugir do ennui, e por isso rodei o mundo; de repente, porém, me veio uma vontade de conhecer a fundo este Brasilzão véi sem porteira. Ouço “cariri” e sinto logo uma cafubira danada para partir. “Adeus, escritório, / Adeus pra nunca mais: / Eu vou sair pelo mundo, / Eu vou pra Minas Gerais.” E este Goiás tem me espantado. Rubem Braga disse certa vez que merecia ser goiano — azar do velho Braga, que nasceu capixaba: essa honra me coube, sou goiano orgulhoso de quatro costados. Não basta, porém, ser goiano, de quando em quando é preciso meter o nariz além da porteira, ver uns matos remanescentes e umas águas ainda limpas. Dei uma bispada no nosso interiorzão, até em balsa no Rio das Almas andei subindo — navegar em balsa humilde me deixa feliz como novo-rico velejando em iate. Olhos nossos tantos rios e me perco imaginando quem os conheceu, o Anhanguera, Spix, Pohl, Saint-Hilaire, D’Alincourt, Luís Cruls, toda essa gente. Me comovo: viram o que vejo hoje? “Conheço rios: conheço rios tão antigos quanto o mundo e mais velhos que o fluxo de sangue humano nas veias humanas.” O interior também recompensa nossos estômagos: tenho guardada uma lista secreta de restaurantes simples em que me fartei, mas só a passo a amigos e mediante caução.

Ir a cemitérios tornou-se triste rotina. Fazer o quê? É o preço dos cabelos brancos. “Sopra o vento, é preciso tentar viver.”

Sobraram-me poucas vaidades, logo a mim, que já quis ser rei de França. Um terno bem cortado, as tantas línguas estrangeiras aprendidas, a coleção de livros. Pouca coisa mais. Não gosto de carros, canetas, relógios, petrechos de fazer café ou churrasco. Estar no lugar da moda não me apetece. Fear of missing out é para adolescentes; na meia-idade, a viagem é pelos abismos interiores. Já entendi muito de vinho, montei adega e biblioteca especializada, depois me enfastiei. Enfastio-me facilmente. Tomei birra de chefes de cozinha, troquei — com enorme prazer — o “Guia Michelin” pelo “Guia de Botequins”. Comer num pé-sujo é pura poesia.

Não me tornei bombeiro porque jamais fui incendiário. Claro, claro, em algum momento o superego era equipamento recente, e descobri depois que ele se dissolvia em álcool, mas nem por isso matei meu professor de lógica aos 16 anos. “Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis” — amadores: eu desisto logo no primeiro.
Paulo Mendes Campos
Queria ter sido Paulo Mendes Campos — com menos álcool no organismo — e escrito “Fragmentos em Prosa”, aquela coisa de que “foi através da literatura que recebi a vida, e foi em mim a poesia uma divindade necessária”
Do Direito — tanto tempo estou nesta lida! —, sobrou-me a paixão intelectual pela teoria jurídica, assim como a tenho, digamos, por mapas e pela história da Segunda Guerra. Na prática, a teoria, infelizmente, é outra: saber que o inciso tal foi revogado tacitamente pelo artigo da lei número 666 é o equivalente intelectual a trabalhar numa mina de carvão. “The first thing we do, let’s kill all the lawyers.” Estou profundamente cansado de leis e códigos.

Já da juventude voltou-me, coisa estranha, o apreço por bichos e o gosto por futebol. Dizem que existe quem viva sem gatos em casa, ma non credo. E eu sou Goiás Esporte Clube, eu sou Goiás, eu sou Goiás e vou vibrar até o peito me doer, até perder a voz eu sou Goiás, eu sou Goiás até morrer — fui menino de ouvir jogo em rádio de pilha: Edson, Zé Teodoro, Timoura, Marcelo, Nonoca, Nei, Carlos Alberto, Sávio, Washington, Cacau e Hilton. Mas me viciei mesmo foi em futebol americano, go figure.

A parentela tem diminuído, o que é tão inexorável quanto a cobrança de impostos; já os amigos permanecem. Talvez seja esta a minha obra mais acertada: os muitos amigos. Os antigos, incrivelmente, não abandonaram seus postos (descontadas, obviamente, as defecções trazidas pela Indesejada), e até uns novos surgiram, apesar de eu, sendo “fútil, quotidiano, tributável”, achar o próximo igualmente “fútil, quotidiano, tributável”. Obrigado, meus velhos.

Já me disseram que os cabelos grisalhos me trouxeram charme e algo como certa propensão à virtù; também ouvi ser dito, mãos sobre bocas para evitar constrangimentos, que envelheci rapidamente. Não importa: como sofro simultaneamente de miopia e presbiopia (a velha vista cansada), há uma distância — justamente aquela em que me miro em espelhos — para a qual os óculos são de pouca serventia (também já tem algum tempo que não consigo mais ler lombada de livro em estante). Melhor assim.

Desasnei-me um pouco, creio. Reconheço um pentâmetro iâmbico à distância de metros, sei o que é um imperativo categórico, “filosofar com o martelo” não me é expressão estranha, entendi a revolução da polifonia e compreendo as referências de Rory em “Gilmore Girls” e os títulos dos episódios de “Breaking Bad”. Ouvi desde Gonzagão a Mozart, li Patativa do Assaré e Thomas Mann, comecei vendo Didi Mocó Sonrisal Colestorol e terminei assistindo a Ingmar Bergman. Ave: ars longa.

Recrudesceu a depressão. É sina de família. Tem nada não: o doutor Paulo Maurício tem seu DSM-5 e seu bloquinho de receitas. Como consequência, as feridas aumentaram. De novo: tem nada não — “mientras más honda la herida, és mi canto más hermoso”. E sempre haverá auroras depois da madrugada.

É preciso tomar cuidado com a Schadenfreude: costuma atacar na meia-idade. Dizem que passa ali pelos 55 anos. A ver.
Faulkner em tardes calorentas e Proust em dias chuvosos
Tenho muitas dúvidas e algumas certezas. Por exemplo, sei que gosto de: livros autografados, trens, cassinos, ouvir Martinho da Vila seguidamente, cerveja escura, usar camisa estampada aos sábados, palavras polissílabas, expressões engraçadas, livros em que o autor se perde em digressões, revistas sobre todos os assuntos, ruas de paralelepípedos, igrejas mineiras, forró, conhecer todas as versões da “Sinfonia para Violoncelo n. 1” (Bach), repassar muitas vezes a cena dos beijos cortados em “Cinema Paradiso”, samba no morro, mostarda, “Apocalipse Now” e “Era Uma Vez na América”, gente corajosa (coragem é a suprema forma de elegância), livros de memórias, “Breaking Bad”, humor inglês, cidade europeia esquecida no tempo, Frank Sinatra em todas as idades, missa com canto gregoriano, ouvir o canto do muezim, visitar cemitérios (a passeio!), decisões da Suprema Corte americana sobre liberdade de expressão, ver gato se lambendo, El Greco, escritor conservador bem articulado, cartas antigas, ler Montaigne com vagar, arrumar estantes, peça publicitária bem elaborada, mulher bonita sem maquiagem, Super Bowl, os amigos da Tabacaria n. 1, Tuco Benedicto Pacífico Juan María Ramírez, trilha sonora do Ennio Morricone, rir solto com os fradinhos do Henfil, Pirenópolis de sexta a domingo, dicionários e enciclopédias, qualquer tipo de café, iPad, sebos de livros, farol no litoral, rodar a esmo em Goiânia, saber quem foram as pessoas que dão nomes às ruas das cidades que visito, Calvin e Hobbes, ponte de madeira, ouvir nordestino dizer “tu visse” no lugar de “tu viste”, reler “A Máquina do Mundo” e “A Mesa”, jogos de tabuleiro, acarajé muito apimentado, visitar campos de batalha, ver filmes com Christopher Plummer, Faulkner em tardes calorentas e Proust em dias chuvosos, paineiras floridas, sentenças em latim, soukes marroquinos, campus de universidade antiga, jingles de campanha.

Não gostava antes, mas agora aprecio: feijoada, música sertaneja, literatura de cordel, passeio no campo.

Não gosto de: chefe de cozinha estrela, arquiteto estrela, publicitário estrela, enólogo estrela, pescaria, boliche, livraria que se declara “independente”, bares barulhentos, muito vento, cobras, viajar com fotógrafo amador, bebedor de vinho que cita pontuação de revista especializada, atividades práticas (fazer compras, declarar o imposto de renda, ir à farmácia, abastecer o carro), camaradas permanentemente indignados, livro emprestado e não devolvido, Jung e Lacan (Freud ao menos escrevia bem), artigo de jornal lamentando algo (“É lamentável a situação, oxalá possa o governo…”), conversa fiada em elevador, desconhecido forçando amizade, quem abandona animal de estimação, uso impreciso de palavras (“fascista”), gente simulando ter cultura, jazz instrumental, tipos estranhos que escrevem em cafés.

Queria ter sido Paulo Mendes Campos — com menos álcool no organismo — e escrito “Fragmentos em Prosa”, aquela coisa de que “foi através da literatura que recebi a vida, e foi em mim a poesia uma divindade necessária”, acho estupendo. Dói um pouco aqui no peito, essa flecha certeira mirada na própria dispersão. (O mineiro também escreveu sobre coisas de que gostava e não gostava, como faço aqui, mas não encontro o diabo da crônica nas minhas pilhas desorganizadas.) Eu também entregaria a alma ao Coisa-Ruim só para ter escrito “A Terceira Margem do Rio” ou um único poema do “Romanceiro da Inconfidência”. “Ai, palavras, ai, palavras.”

Consolo-me pensando que tenho alguma sprezzatura (James Bond lutando sem amarrotar o terno), mas parece mais provável que eu seja um tanto desengonçado em tudo o que faço (Groucho Marx andando apressado). Sei que ainda não aprendi a me calar — “The lady doth protest too much, methinks” —, mas tô tentando, tô tentando. E gostaria de me reinventar, de me reconfigurar, tomar outros rumos, entrar talvez na vereda que dispensei: “Amanhã, não percam: reinauguração de Marcelo Franco”… Haveria tempo?

É isto. O que mais? Bem, sigo praticando o método confuso de vida. Não foi escolha, foi triste sina. Aceito-a. E até afirmo: bons tempos, estes maus tempos. Não há aquele ditado que diz que estaremos na verdade mortos se nos percebermos de repente sem qualquer problema? Aliás, há muito tempo me fascina esta belíssima prece por mais atribulações (atribuída, creio, a Francis Drake):

Escrevo estas confissões e não sei o que fazer com elas. Que o editor da Bula decida, então, se as publica; como defesa, digo apenas que faço uma envergonhada apuração de haveres em razão do meu aniversário já próximo. Vou assim deixando a meia-idade e entrando em território ignoto — com receio, muito receio: timor mortis conturbat me, quia in inferno nulla est redemptio.
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* Editor da Revista eletrônica Bula
Fonte: https://www.revistabula.com/16634-homem-velho-mes-seco/

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