Leonardo Boff*
Em função do Sínodo panamazônico de outubro, comvém relembrar
o que foi a destruição das Indias Brasileiras, no linguajar de
Bartolomé de las Casas com referência à América Central.
O primeiro encontro a 21 de abril de 1500, narrado idilicamente pelo
cronista Pero Vaz de Caminha, logo se transformou num profundo
desencontro. Por culpa da voracidade dos colonizadores, não ocorreu uma
reciprocidade entre o português e o índio, mas um confronto, desigual e
violento, com desastrosas consequências para o futuro de todas as nações
indígenas.
Como no resto da América Latina, negou-se-lhes a eles a condição de
seres humanos. Ainda em 1704 a Câmara de Aguiras, no Ceará, escrevia em
carta ao rei de Portugal que “missões com esses bárbaros são excusadas,
porque de humano só tem a forma, e quem disser outra coisa é engano
conhecido”. Foi preciso que o Papa Paulo III, com uma bula Sublimis Deus
de 9 de julho de 1537, interviesse e proclamasse a eminente dignidade
dos indígenas como verdadeiros seres humanos, livres e donos de suas
terras.
Pelas doenças dos brancos contra as quais eles não tinham imunidade –
a gripe, a catapora, o sarampo, a malária, e a sífilis – pela cruz,
pela espada, pelo esbulho de suas terras, impossibilitando a caça e as
plantações, pela escravização, por guerras declaradas oficialmente como
por Dom João VI em 13 de maio de 1808 contra os Krenak no Vale do Rio
Doce. Modernamente, ao se abrirem as grandes estradas e hidrelétricas na
Amazônia usaram-se contra eles desfolhantes químicos, ataques com
helicópteros e voos rasantes de aviões até por bactérias
intencionalmente introduzida. Pela sistemática humilhação e negação de
sua identidade, os cinco milhões foram reduzidos ao número atual de
930.00 mil. Vigorou, na relação aos indígenas, o propósito político de
sua erradicação, seja pela aculturação forçada, seja micegenização
espontânea e planejada, seja pela pura e simples exterminação, como fez o
Governador Geral do Brasil, Mendes Sá com os Tupiniquim de Ihéus:”os
corpos foram colocados ao longo da praia, alinhados, na extensão de uma légua”.
Citemos apenas um exemplo paradigmático que representa a lógica da
“destruição das Indias brasileiras”. No começo do século quando os
padres dominicanos iniciaram uma missão às margens do rio Araguaia,
havia 6-8 mil Kaiapó em conflito com os seringueiros da região. Em 1918
foram reduzidos a 500. Em 1927 a 27. Em 1958 a um único sobrevivente. Em
1962 eram dados como extintos em toda aquela região.
Com a dizimação de mais de mil povos, em 500 anos de história
brasileira, desapareceu para sempre uma herança humana construída em
milhares de anos de trabalho cultural, de dialogação com a natureza, de
invenção de línguas e de construção de uma visão do mundo, amiga da vida
e respeitosa da natureza. Sem eles todos ficamos mais pobres.
O sonho de um índio Terena, recolhido por um bom conhecedor da alma
brasileira e indígena, mostra o impacto desta devastação demográfica
sobre as pessoas e os povos: “Fui até o velho cemitério guarani na
Reserva e lá vi uma grande cruz. Uns homens brancos chegaram e me
pregaram na cruz de cabeça para baixo. Eles foram embora e eu fiquei lá
pregado e desesperado. Acordei com muito medo” (Roberto Gambini, O espelho índio, Rio de Janeiro 1980. p. 9).
Esse medo, pela continuada agressão do homem branco e bárbaro
(arrogantemente se auto-denomina civilizado), se transformou, nos povos
indígenas, em pavor de que sejam exterminados para sempre da face da
Terra.
Graças às organizações indígenas, às novas legislações
proteccionistas do estado, ao apoio da sociedade civil, das Igrejas e da
pressão internacional, os povos indígenas estão se fortalecendo e,
mais, estão crescendo numericamente. Suas organizações revelam o alto
nível de consciência e de articulação que eles atingiram. Sentem-se
cidadãos adultos que querem participar dos destinos da comunidade
nacional, sem renunciar à sua identidade e colaborando junto com outros
sujeitos históricos com sua riqueza cultural, ética e espiritual.
Por isso, é extremamente ofensiva à sua dignidade, a forma como o
estado brasileiro, especialmente sob o governo de Bolsonaro, os trata e
maltrata com suas políticas indigenistas como se fossem primitivos e
infantis. Na verdade, eles guardam uma integralidade que nós ocidentais
perdemos, reféns de um paradigma civilizacional que divide, atomiza e
contrapõe para mais dominar. Eles são guardiães da unidade sagrada e
complexa do ser humano, mergulhado com outros na natureza da qual somos
parte e parcela. Eles conservam a consciência bem-aventurada de nossa
pertença ao Todo e da aliança imorredoura entre o céu e a terra, origem
de todas as coisas.
Quanto em outubro de 1999 estive encontrando os indígenas noruegueses
– os samis ou esquimós – em Umeo, eles me fizeram uma primeira
pergunta, prévia à conversação:
– Os índios brasileiros conservam ou não o casamento entre o céu e a terra?
Eu, entendi logo a questão e respondi resolutamente:
– Lógico, eles mantém este casamento. Pois do casamento entre o céu e a terra nascem todas as coisas.Eles, felizes, responderam:
– Então, são ainda, verdadeiramente, índios como nós. Eles não são
como os nossos irmãos de Estecolmo que esqueceram o céu e só ficaram só
com a terra. Por isso se sentem infelizes e muitos se suicidam. Se
mantivermos unidos céu e terra, espírito e matéria, o Grande Espírito e o
espírito humano então salvaremos a humanidade e a nossa Grande Mãe
Terra.
Essa, seguramente, é a grande missão dos povos originários e o seu
maior desafio: ajudar-nos a salvar a Terra, nossa Mãe, que a todos gera e
sustenta e sem a qual nada neste mundo é possível.
Precisamos ouvir sua mensagem e incorporarmo-nos em seu compromisso,
para fazermo-nos também nós, como eles, testemunhos da beleza, da
riqueza e da vitalidade da Mãe Terra.
------------ * Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu: O Casamento entre o céu e a Terra, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2014.
Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2019/09/17/a-destruicao-das-indias-brasileiras/
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