Gilles Lapouge *
O Cristo visto por Pasolini: cena do filme 'Rogopag', que recria pintura de Rosso Fiorentino
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'O Filho do Homem', clássico de François Mauriac, volta em edição especial no exato momento em que outro livro sobre o tema, 'Soif' (Sede), de Amélie Nothomb, é lançado na França
François
Mauriac é um romancista e, se consagrou um livro a Jesus Cristo, em
1936, não entrou na discussão de questões teológicas. Não escreveu nada
para satisfazer os filósofos, os casuístas ou os doutores da lei. Ali
vamos descobrir o retrato e a figura sublime e dilacerada de um homem
que é o filho de Deus, certamente, mas nasceu num país quente e rico em
desertos, um país da Ásia, num vilarejo chamado Nazaré num dado momento
do tempo, quando Augusto reinava em Roma. E morreu em Jerusalém, à época
de Tibério. Um homem como você e eu. Mas nada rico. Não frequentou
escolas. Ajudava o pai na sua oficina de carpinteiro. Mais tarde, vai
para a Galiléia. Tem fome e sede, é um homem triste, mas repleto de
esperança, ama as pessoas, mas em alguns momentos se enerva, é tomado
pela cólera. É uma pessoa terna, e também violenta. Recrimina os ricos,
os pensadores, os doutores, os hipócritas, os mercadores do Tempo, em
Jerusalém. Quando caminha por um longo tempo com seu grupo, ele se
cansa, fica esgotado.
Um
homem banal, extraordinário. E tem uma mania: insiste em afirmar que é
filho de Deus e que veio à Terra para salvar os homens. Age como se
conhecesse o futuro, e os profetas, que são abundantes nessa época em
Israel e estão por todo lado, não sabem o que fazer. Felizmente os
doutores da Lei estão despertos. Esse sujeito que nem mesmo estudou, que
fala de Deus como se fosse seu Pai e que faz milagres o tempo todo, tem
de ser calado. Ele é visto com maus olhos. E sabe que acabará sendo
condenado e executado, mas se obstina. É corajoso e tem uma missão a
cumprir. Sabe que não está seguro. Tudo está pronto para o drama, para a
morte e para as afrontas. As últimas noites são extremamente tristes.
Este é o homem-Deus cuja vida é relatada por François Mauriac em O Filho do Homem.
Estamos em 1935 (um ano antes de o livro ser lançado, agora reeeditado
no Brasil pela Nova Fronteira) e Mauriac está perto dos 50 anos. Este
famoso escritor publicou livros magníficos e quase fúnebres numa
linguagem belíssima, como Therese Desqueyroux. É admirado. Pertence à
Academia Francesa. E de repente segue por caminhos escabrosos: a
biografia de um Deus ou de um filho de Deus. É um desafio para um homem
como Mauriac, que não compreende nada dos ditados da razão, da regra do
terceiro excluído, das exegeses, dos paradoxos da metafísica, da
dialética. O que ele conhece é a terra e suas brumas, e seus sóis, o
odor da vinha e a bondade das uvas, os esplendores e a deterioração dos
humanos. E dá certo porque Mauriac é um romancista, não um exegeta e
Jesus Cristo e seu estranho Pai, e sua mãe, a Virgem, essa mulher,
talvez prostituta, mas bela, abandonada e nobre, que é Madalena, todas
essas pessoas, os discípulos, e Judas, que Mauriac não consegue
compreender, todos são também personagens romanescos. Jesus é um grande
romancista. Quando conversa com seus amigos à noite, sentado na borda de
um poço antes de dormir sob as estrelas do céu da Judeia, ele não fala
como esses sábios que saem da Politécnica ou das escolas de Jesuítas,
mas se expressa como aquelas pessoas que o seguem e o amam, pecadores,
desempregados, inocentes, pequenos funcionários, prostitutas, pessoas
pérfidas. E se ele ilustra suas proposições com uma lembrança ou um
conto, ele oferece histórias muito simples (portanto da grande
literatura), muito familiares, com personagens que poderíamos encontrar
na Betânia, no Jordão ou no Mar Morto. Às vezes um animal entra no
conto, uma raposa, um cão, uma serpente. É tão belo como uma fábula de
La Fontaine, acrescido de mistério e luz. E aí reside a proeza deste
livro. Tratar no mesmo estilo duas figuras do mesmo homem: a do filho de
um pobre carpinteiro e a do filho de Deus.
É difícil, mas
Mauriac se sai muito bem. Conseguir uma osmose, uma fusão entre os dois
Cristos é uma bela façanha literária. E de uma grande coragem porque, em
1936, quando o livro foi publicado, os teólogos, os exegetas, os sábios
e as senhoras das obras de caridade partiram para o ataque. Quem é esse
escritor iconoclasta? Ao que Mauriac respondeu : “Só creio naquilo que
toco ou que vejo, naquilo que se incorpora à minha substância e é por
isto que tenho fé em Cristo”.
O Messias de François Mauriac não é
o Messias triunfante das pinturas do século 19 e que os Pais da Igreja
nos mostram. É aquele que os discípulos de Emaús, os de Rembrandt,
reconheceram num albergue: “nosso irmão coberto de sangue, nosso Deus”.
Como outros criadores de uma religião (como Buda) ou alguns pensadores
(Sócrates) Jesus jamais escreveu, o que às vezes deplorei há muitos
anos, ao ler os Evangelhos apócrifos que não figuram no Novo Testamento.
Aprecio muito esses textos. Têm frescor e são perfumados, às vezes
surrealistas, iconoclastas e poéticos. Um deles conta uma história:
Jesus estava com seus discípulos no deserto, a noite chegando. Jesus
pegou um bastão. Traçou letras na areia. Os discípulos, boquiabertos,
tentaram ler. Nesse momento o vento do deserto bateu e apagou as letras,
as palavras. Que vento era esse? O Evangelho apócrifo não diz. Imagino
que era o Santo Espírito, “vigilante”.
Ocorre que outro escritor
(escritora) narrou também, 75 anos depois de Mauriac, a vida de Jesus.
Trata-se de uma belga que escreve livros como um relógio toca as horas. A
cada ano ela publica um romance em outubro. Li os primeiros (Higiene do Assassino, As Catilinárias).
Fiquei deslumbrado. Depois fiquei mais habituado. Amélie é uma
produtora de belos textos, que ocupa um lugar raro: só produz
best-sellers – e eles são magníficos. Este último por exemplo. A 75 anos
de distância, dois escritores narram a mesma história já escrita,
aliás, por um outro, por Jesus Cristo. Amélie Nothomb, que não parece
conhecer o livro de Mauriac, disse em uma entrevista: “Quando tinha dois
anos e meio, meu pai me falou de Jesus. O que foi um choque terrível
para mim e eu me disse que Jesus era o herói da minha vida. Tudo o
tornava uma figura única. Sua maneira de falar, um milagre de
eloquência. Sua maneira de falar o torna alguém excepcional”.
Dois
anos e meio e já compreendeu o belo mistério. Por outro lado os estilos
de Mauriac e de Amélie são muito diferentes. Mauriac libera os grandes
órgãos, as frases belas e musicais, o grande estilo. Amélie permanece
fiel à sua maneira: palavras curtas, quase milimétricas, elegantes e
nuas, mas de uma eficácia sem falhas. Muitas vezes curiosas. Eles têm
outro ponto em comum. Ambos se reconhecem incapazes de resolver o enigma
Jesus Cristo. Fazem o retrato de um homem, filho de Deus, um homem de
carne e osso, que tem fome e tem sede, que ama, que sofre, e que ama a
alegria.
O início de Soif (Sede) é magnífico
pela ironia, o que é um dos charmes de Amélie, e de uma grande
violência. É preciso dizer que é Jesus que fala. Pôncio Pilatos e os
juízes se excederam. Tiveram a ideia de intimar 38 pessoas que foram
beneficiadas por um milagre de Jesus. Um festival de hipocrisia,
bobagens e infâmia. As noivas de Canaã dizem: “Este homem tem o poder de
transformar a água em vinho. No entanto, ele esperou o fim das bodas
para exercer seu dom. E teve prazer com a nossa angústia e nossa
humilhação (...) por causa dele servimos o melhor vinho antes do médio.
Fomos motivo de riso no vilarejo”. O ex-endemoinado de Cafarnaum
declarou que “minha vida se tornou uma banalidade depois do exorcismo”. O
cego que passou a enxergar queixou-se da feiúra do mundo. O velho
leproso declarou que ninguém mais lhe deu esmola. Lázaro explicou como é
odioso viver com esse cheiro de cadáver colado na pele.
Assim
prossegue a narrativa que Jesus faz do final da sua vida. À medida que o
fim se aproxima, o tom do livro muda. Jesus está tão infeliz e
sentindo-se tão abandonado que a ironia o abandonou. E seu corpo tem
medo. Neste ponto encontramos a grande “celebração” do corpo por Amélie.
A importância da carne pelos prazeres que proporciona, pelas dores que
ela abriga. A dose de horror, brilhantemente elaborada, durante a noite,
e o escuro atroz dessa última noite, é generosa (e mesmo para meu
gosto, um pouco demais). Mas graças a Jesus que certamente foi um grande
filósofo (mas um poeta melhor, em minha opinião) temos o direito a
longos trechos de filosofia, mas belos, apesar de gostar mais do romance
do que da filosofia.
/ Tradução de Terezinha Martino
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* Escritor e jornalista francês. Colunista do Estadão.
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,a-face-humana-de-cristo-por-um-nobel-de-literatura,70003017249 21/09/2019
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