Lya Luft*
Nestes tempos contraditórios,
tumultuados, às vezes incríveis, outras horríveis, sempre é bom recorrer
à arte: belos quadros, esculturas, livros, dança, não importa.
Talvez a arte nos ajude a respirar ares mais puros,
quando aqui perto neste planeta ou neste país as coisas ficam meio
escuras, agitadas, aflitivas, incompreensíveis. Uma das surpresas que a
idade me reservou foi continuar a me surpreender, maravilhar ou assustar
com muitos acontecimentos. Ou falta de acontecimentos...
Nessas horas, tenho meus prediletos, quase sempre
poesia. Aqui, como já fiz e gostaram, alinho alguns poemas meus em forma
de prosa, isto é: simplesmente encadeando versos, porque a poesia está
por toda parte.
Assim, esta coluna é uma armadilha, para que alguns de meus leitores leiam poesia, sem perceber.
O que não posso dizer, o que não cabe em palavras, o
que não é para olhares profanos; o que é calado e remoto, meu mais
secreto destino, como o reverso das ilhas; ar marinho, maremoto, algo
calado, alado e sonoro: águas que, mais que navego, imagino.
Com as perdas só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos,
o proveito é saborear cada um como uma fruta boa da estação. A vida,
como um pensamento, corre à frente dos relógios. O ritmo das águas
indica o roteiro e me oferece um papel: abrir o coração como uma vela ao
vento, ou pagar sempre a conta já vencida.
Não somos nem bons nem maus: somos tristes. Plantados
entre chão e estrelas, lutamos com sangue, pedras e paus, sonho e arte.
Nem vida nem morte: somos lúcida vertigem, glória e danação. Somos
gente: dura tarefa. Com sorte, aqui e ali a ternura faz parte.
Do pai, a retidão e certa melancolia: o olhar sobre o
que vem atrás do espelho. Da mãe, a alegria. Da remota linhagem, o
novelo de fios que tramam alma e imagem, ninguém sabe quando e onde.
Mais os trabalhos e a dor, a fantasia, a obstinada procura, alguma
sorte, muita esperança na bagagem.
(Dissabores fazem parte: maior foi a celebração da vida.)
Havia um mar e ali brotava uma ilha cercada de lobos e
de pensamentos. Havia um fundo escuro e belo onde vagavam os afogados,
os náufragos dançavam com sereias. Havia ansiedade e abraço. Havia
âncora e vaguidão. Brinquei com peixes e anjos, fui menina e fui rainha,
acompanhada e largada sempre a meia altura do chão.
A vida um barco, remos ou asas, tudo real e tudo ilusão.
Bela Dama, nas mãos discretas esconde a fita, o metro, a
medida da nossa vida. Bela Dona, aguarda com paciência a hora de nos
botar no colo: tudo estará consumado nesse dia. (Também o não
compreendido.)
Velhas palavras nos lábios, nos olhos novas paisagens, seremos poupados, seremos absolvidos, seremos isentados.
Mas nós, nos daremos anistia?
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* Escritora
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=918b125ddf1d5a3cb59506ab88f181c9 07/09/2019
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