Sociedades sobrevalorizam inteligência
Praticamente ignoram a racionalidade
Frederico tem QI elevado, mas é conhecido por tomar decisões
ruins. Tem um bom emprego, mas costuma se endividar além da sua
capacidade de pagamento. Assinou contrato, certa vez, para comprar três
imóveis, empolgado com o que ouviu no movimentado stand de vendas. Devolveu os três, com prejuízo. Acredita em teorias da conspiração e não vacina seu filho.
O
exemplo é fictício, mas provavelmente os leitores conhecem pessoas com
perfil parecido ao de Frederico. Vamos usá-lo para ilustrar um ponto
essencial, apontado por um amplo conjunto de evidências científicas:
inteligência não é sinônimo de racionalidade. São conceitos teoricamente
distintos e com consequências diversas para a vida social.
Em
outras palavras, ainda que a inteligência esteja fortemente associada
com efeitos como maior renda ao longo da vida, ela nem de longe é
garantia contra decisões ruins e comportamentos prejudiciais.
O problema é que nossas sociedades sobrevalorizam a inteligência e praticamente ignoram a racionalidade.
O
que é ser racional? Somos racionais na medida em que aumentamos o
bem-estar individual e coletivo de longo prazo. Todos nós desejamos ter
crenças que reflitam adequadamente o mundo. Queremos que as ações do
cotidiano, como a forma com que gastamos nosso dinheiro e tempo, nos
aproximem de nossos objetivos de vida. Desejamos que nossas decisões,
como vacinar nossos filhos, estejam em linha com as evidências
científicas e as melhores práticas.
Há vários obstáculos, entretanto. Fomos preparados pela evolução para lidar com desafios do chamado ambiente de adaptação evolutiva
(AAE), em que a comida não era garantida, outros grupos e etnias eram
percebidos como inimigos e o destino parecia depender do humor de
entidades invisíveis.
Nesse contexto, a evolução nos legou uma
tendência ao pensamento mágico, além de nos preparar para decisões
rápidas, com o uso de atalhos mentais. Pensar é caro em termos
biológicos, usa recursos mentais escassos e depende de conhecimento
abstrato. E não há garantias de sucesso, haja vista o alcance de gurus
de racionalidade oca nas redes sociais.
Três mentes
Quem leu o livro Rápido e Devagar,
do Nobel de Economia Daniel Kahneman, ou estudou um pouco de economia
comportamental, já ouviu falar de sistemas 1 e 2. Em resumo, a ideia é
que somos dotados de dois sistemas na nossa mente. Um, automático, de
fundo evolucionário (o sistema 1), que nos leva a decisões rápidas,
frequentemente ruins. O outro, o sistema 2, mais lento, que nos leva a
ponderar as informações que recebemos antes de dar respostas, em tese,
melhores.
Muita gente, todavia, interpreta esse modelo de forma
errada. Nem sempre o sistema 1 leva a decisões erradas e nem sempre o
sistema 2 produz boas respostas. Para entender isso, vamos buscar ajuda
no trabalho de um dos criadores dos conceitos de sistemas 1 e 2, Keith
Stanovich, pesquisador da Universidade de Toronto.
Stanovich usa
há um bom tempo um modelo mais sofisticado para estudar a racionalidade
humana. Trata-se do modelo de três mentes. Acompanhe comigo.
A primeira mente, a autônoma,
é aquela moldada pelas necessidades evolucionárias mais básicas. É a
mente que dá as respostas rápidas e que é facilmente explorada no mundo
moderno – dos apelos sexuais na propaganda ao lixo alimentar e
ideológico. Porém, respostas rápidas e corretas podem surgir de experts
que, em certas condições de prática, conseguem empregar conhecimento
abstrato de forma automática. Cientistas ou cirurgiões experientes, por
exemplo.
A segunda mente, chamada de algorítmica,
é aquela mais associada com o conceito estrito de inteligência. Quanto
mais inteligentes, mais capazes somos de simular soluções diversas na
nossa cabeça para os problemas apresentados.
Com um porém. Isso só
acontece se percebemos que existe, de fato, um problema. Só que a
realidade não é como a escola e os desafios na vida não vêm em forma de
prova. Assim, perceber que algo pode estar errado e impulsionar
simulações mentais requer a terceira e última mente do modelo, aquela
que Stanovich chama de reflexiva.
É a mente
reflexiva que comanda os motores da racionalidade. Ela é favorecida por
certas características pessoais, como o pensamento crítico e a baixa
impulsividade, mas depende muito do nível de conhecimento abstrato que
conseguimos efetivamente incorporar ao longo da vida. Lidar, por
exemplo, com as diversas ofertas comerciais com que nos deparamos no
cotidiano requer conhecimentos básicos de matemática financeira e
direito.
Desenvolver a mente reflexiva é, portanto, crucial em um
mundo que está estruturado para explorar sem dó as fraquezas humanas. A
boa notícia é que, em contraste com a inteligência, a racionalidade pode
ser tremendamente melhorada com educação adequada.
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* Hamilton Carvalho, 47 anos, estuda comportamento humano e sistemas
sociais complexos. É doutor em Administração pela FEA-USP, mestre em
Administração pela mesma instituição, membro da System Dynamics Society e
da Behavioral Science & Policy Association. Escreve para o Poder360
aos sábados.
Fonte: https://www.poder360.com.br/opiniao/brasil/a-mente-humana-e-mais-do-que-rapido-e-devagar-diz-hamilton-carvalho/ 14/09/2019
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