José de Souza Martins*
Os 40 minutos de chibatadas no garoto negro de
17 anos foram os das chibatadas em nossa insuficiente humanidade
O garoto de 17 anos, negro, morador de rua,
foi apanhado por dois seguranças terceirizados de uma rede de supermercados na
Vila Joaniza, na zona sul da cidade de São Paulo. Trancado num quartinho do
estabelecimento, foi amordaçado, despido, amarrado e chicoteado durante 40
minutos, com um açoite feito de dois fios elétricos trançados. Os dois torturadores,
de meia-idade, têm antecedentes. Um por apropriação indébita. Outro, por lesão
corporal contra a mulher.
O adolescente tentara pegar quatro barras de
chocolate, no valor total de R$ 6. Um vídeo de 41 segundos, feito por um dos
torturadores, exibe o feito na internet. Milhões de brasileiros podem acessá-lo
e ver e ouvir, ao vivo e em cores, como era a surra de um negro no pelourinho
nos tempos da escravidão. Com trilha sonora de choro e gemidos.
O delegado Pedro Luís de Sousa, do 80º
Distrito Policial, nascido em uma favela do Rio Pequeno, perto da Cidade
Universitária, com uma carreira de décadas em delegacias da periferia, deu sua
impressão: “Como um delegado negro e nascido na periferia, não consegui ver o
vídeo até o final. Parece que voltamos à época da escravidão”.
O garoto é conhecido no bairro. Vive nas ruas
desde os oito anos de idade. Perdeu o pai há cinco anos, no incêndio de um
barraco. A mãe é alcoólatra. É analfabeto e tem déficit cognitivo. Pessoas que
o conhecem e o ajudam dizem que tem físico e mentalidade de criança. Usuário de
crack. Come o que lhe dão comerciantes e conhecidos. Um bar lhe serve café e pão
todas as manhãs. Às vezes, quando tem dinheiro, obtido a catar coisas no lixo
para reciclagem, almoça no Bom Prato do bairro, um restaurante popular mantido
pelo governo do Estado, por R$ 1. O garoto é filho da cultura e da trama de
estigmas, adversidades e insuficiências que a Lei Áurea não aboliu.
Um morador de rua, mais velho, a quem chama de
pai, o protege. Disse aos jornalistas que o garoto passou a ter medo de morrer
depois do episódio recente. O terceiro praticado contra ele pelos mesmos
seguranças. Ameaçado de morte pelos dois, temeu denunciar a violência sofrida.
Com a repercussão do caso, um de seus seis irmãos o localizou e o amparo,
enquanto aguarda a decisão da justiça.
A justa reação do delegado de polícia sugere
mais do que constatação. Pede, também, análise. Não voltamos ao tempo da
escravidão. Apenas não saímos dele. Leis, como a Lei Áurea, não revogam a
cultura de iniquidades que se pretende combater por meio delas. A escravidão
não se resumia ao tronco, ao pelourinho, ao “bacalhau” de couro cru trançado para
castigar o escravo atrevido que ousasse evadir-se das humilhações do cativeiro.
A escravidão era também um modo de ver o outro como ínfimo, no limite entre o
humano e o semovente. O escravo era mercadoria, animal de trabalho, garantia de
empréstimos hipotecários junto aos bancos.
Sérgio Buarque de Holanda, sobre a revolta dos
colonos suíços, em 1856, na fazenda Ibicaba, em São Paulo, ressalta que o
trabalho livre não eliminava a mentalidade escravista dos fazendeiros. Para
eles, a escravidão não era apenas um fardo do negro, mas um atributo do
trabalho manual, qualquer trabalho. A libertação do trabalhador não libertava e
não libertou o trabalho do estigma herdado do cativeiro.
Não é estranho que o estigma e as práticas do
escravismo perdurem no Brasil. A abolição, ao libertar o negro, libertou o
branco dos encargos da escravidão. Foi feita para racionalizar os custos
econômicos das grandes fazendas e viabilizar o lucro. Mas não reeducou o
conjunto da sociedade, brancos e negros, para o que é próprio da liberdade: os
direitos individuais, os direitos sociais e os direitos humanos. Os que nos
fazem humanos e respeitadores da condição humana. Os 40 minutos de chibatadas
no garoto negro de 17 anos foram os das chibatadas em nossa insuficiente
humanidade, na estupidez de quem liberta os outros sem se libertar.
O episódio nos mostra um mundo que achamos que
não é o nosso. Na verdade, é. Devido a nossa indiferença, aquela chibata estava
nas mãos de todos. O episódio revelou, sobretudo, a sociedade paralela centrada
na pessoa do desvalido, com suas relações de compaixão e apoio, não só de
brutalidades, seus espaços improvisados para dormir um sono, obter um real para
comer, o ombro de um pai improvisado para enganar o abandono social, o crack
para amortecer os golpes da vida. Um mundo com suas próprias leis e regras,
seus capitães do mato para proteger os interesses dos vizinhos de sistema, de
um capitalismo que floresce à beira do precipício da ordem, no limiar da fome,
da boca vazia do chocolate que adoça a vida da criança que não cresceu, porque
também não crescemos.
------------------
* Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da
Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira – A Degradação
do Outro nos Confins do Humano (Contexto)
Fonte:https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-chicotadas-em-adolescente-mostram-que-nao-saimos-da-escravidao.ghtml
13/09/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário