Francisco Razzo*
A beleza da boa discussão filosófica está no
fato de que premissas, argumentos e reflexões devem ser publicamente abertos ao
exame crítico e à discordância refletida. Diferente da experiência religiosa,
por exemplo, que se apoia na decisão existencial de uma vida interior capaz de
aceitar os dados da revelação sagrada, a atitude filosófica se fundamenta no
árduo, constante e paciente trabalho do diálogo refletido em comunidade, do
confronto racional e do embate vivo de crenças. Resumindo, a filosofia se torna
uma atividade “política” por excelência.
Historicamente, há uma forte conexão entre o
nascimento da filosofia e o nascimento da polis democrática na Grécia Antiga. A
filosofia nasceu em meio à “crise da soberania”, como explica Jean Pierre
Vernant, onde houve “uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os
outros instrumentos do poder”. E “palavra”, aqui, não mais como “o valor
atribuído aos ‘ditos’ do rei quando pronuncia soberanamente” uma lei, não mais
como “o termo ritual, a fórmula justa” de um ambiente litúrgico. A “palavra”,
no contexto do nascimento da polis democrática, nasceu como “debate
contraditório, a discussão, a argumentação”. Não se trata de mera coincidência
a filosofia nascer na Grécia e não na Pérsia ou no Egito.
Política significa, antes de tudo, o poder da
discussão, do confronto de ideias e do diálogo constante, do exercício tênue e
persistente da razão. Óbvio que me refiro aqui à política no sentido de vida
que se realiza em comunidades democráticas formadas por seres racionais,
passionais e livres, e não no sentido de pura expressão do poder como exercício
do domínio bruto do mais forte em relação ao mais fraco. Só tiranos são tarados
pela política como relação de poder, só eles vivem pela consagração da força e
pela glória de serem cultuados por uma multidão de gente submissa, pois só eles
querem o poder custe a alma que custar.
Nessa atmosfera saturada por inabaláveis certezas políticas, só o
exercício filosófico pode ajudar o mundo a se
tornar um pouco melhor
Filósofos – pelo menos os da tradição que eu
admiro –, pelo contrário, contentam-se em cultivar a liberdade interior e
alguns pequenos prazeres do mundo. Sabem também que a política é a profissão
mais trágica e perigosa do mundo. Pensar na morte como exercício espiritual
liberta muito mais do que sonhar com o poder. Tirania é escravidão; escravidão
no sentido de quem manda e de quem obedece.
Quando reconhecemos os limites de se viver em
sociedade essencialmente pluralista, torna-se inevitável saber conviver com
pessoas que pensam e agem em conflito com nossas expectativas, que desprezam o
nosso perfil moral e atacam nossas crenças religiosas. Melhor assim. Forçar o
contrário mediante o uso de forças coercitivas do Estado é politicamente
perverso. Se o Estado moderno tem uma função, não é a de ser consagrado pela
soberania edificante de uma religião específica. Em termos morais e até
religiosos, melhor deixar as pessoas resolveram suas desavenças livremente. E a
filosofia tem uma função primordial nisso.
O fato é que não dá para realizar um exame
crítico público acerca da validade de premissas estabelecidas pela experiência
religiosa. O acesso à experiência religiosa de outra pessoa é necessariamente
“mediado” pelo conjunto simbólico transmitido por testemunhos orais ou textuais
acumulados ao longo de uma determinada tradição histórica. Movimentar-se no
interior de uma comunidade de fé é diferente de se movimentar no exercício da
reflexão filosófica. Não são atividades contraditórias, porém são distintas.
Com diz São João Paulo II, “a fé e a razão (fides et ratio) constituem como que
as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da
verdade”.
Não
acho que a fé seja um problema de “foro íntimo” que deva ficar limitado à minha
vida privada. Há um caráter
público da vida religiosa que não pode ser
silenciado
por nenhuma força política
Confesso ser uma pessoa profundamente
religiosa — devoto de Santo Agostinho, São Bento e Santa Catarina. Eu defendo o
direito inalienável de poder anunciar publicamente minha fé no evangelho do
Nosso Senhor Jesus Cristo. Noutras palavras, não acho que a fé seja um problema
de “foro íntimo” que deva ficar limitado à minha vida privada. Há um caráter
público da vida religiosa que não pode ser silenciado por nenhuma força
política. Contudo, não quero o apoio do Estado moderno, esse monstrengo
soberano, devorador de almas, o pequeno deus mortal dos gananciosos,
apropriando-se de uma religião específica para chamar de sua. Estado e Igreja
estão muito bem separados do jeito que estão, pois o que o próprio Deus separou
os homens não devem unir.
Toda vez que o Estado se intrometeu nisso, o
resultado foi catastrófico. Há um duplo sentido na experiência social da fé:
adesão e renúncia. Adesão a Cristo e renúncia ao príncipe do mundo. Como fiéis,
devemos participar (digo, nós, os crentes) como membros do “povo de Deus” pela
fé. A fé em um Deus que morreu todo estropiado na Cruz, um Deus soberano que se
fez miserável neste mundo para reinar lá no alto. O Estado, cidade dos homens
movida pelo amor próprio, ganância e egoísmo, é resultado de uma tentação fugaz
e perigosa quando fala em nome de valores eternos.
O caso da filosofia é diferente. Em termos de
experiência pública secular, nada mais mundano do que o exercício filosófico,
por isso nada mais adequado à polis democrática do que a promoção do debate
filosófico. A filosofia só faz sentido enquanto exame crítico que se movimenta
no confronto permanente de ideias. Nessa atmosfera saturada por inabaláveis certezas
políticas, só o exercício filosófico pode ajudar o mundo a se tornar um pouco
melhor – nunca suficiente para nossa redenção, que espero vir apenas lá do
alto, mas necessário para frear a fé cega no Estado e seus apóstolos.
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* Professor de Filosofia e autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", pela Record
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/francisco-razzo/so-a-filosofia-para-tornar-o-mundo-um-pouco-melhor/ 11/09/2019
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