Tolentino Mendonça fotografado em Maio de 2018, em Lisboa. Fotografias ©
Maria Marujo
Há duas décadas, Tolentino Mendonça confessava gostar de sentir-se em
tensão. Ontem, o Papa Francisco anunciou o seu nome entre 10 novos cardeais.
Razões de um percurso e de uma nomeação meteórica.
Na primeira entrevista que concedeu ao PÚBLICO, em Setembro de 1998,
José Tolentino Mendonça falava da sua poesia e respondia à pergunta sobre se
estávamos perante um padre que se tornara poeta ou perante um poeta que por
acaso era padre. Respondendo que preferia não o saber bem, acrescentava: “Gosto
dessa circularidade, de manter essa pergunta. Gosto de viver oscilando, muitas
vezes, nessa pergunta. Gosto desse balanço, porque gosto de viver assente num
pé só e de sentir uma tensão, porque dentro desses dois nomes cabe uma tensão
muito grande.”
Ontem, Tolentino Mendonça pode ter sentido de novo esse balanço entre as
suas várias condições: além de bibliotecário da Santa Sé, continua a manter uma
coluna semanal no Expresso e a publicar livros em que alia a reflexão
teológica, a investigação bíblica e a sua alma literária, poética e artística.
O autor de A Leitura Infinita foi um dos nomes anunciados pelo Papa
como integrando a lista de 13 novos nomeados como conselheiros privilegiados de
Francisco.
O consistório que formalizará a nomeação decorrerá em 5 de Outubro. Na
lista, não é difícil ver escolhas bem pessoais do Papa e proveniências que
traduzem a “vocação missionária da Igreja, que continua a anunciar o amor
misericordioso de Deus a todos os homens da terra”, como disse Francisco quando
fez o anúncio.
Aquela afirmação fica confirmada com os nomes dos actuais arcebispos de
Jacarta, Havana, Kinshasa, Rabat (defensor dos imigrantes africanos que chegam
a Marrocos) ou Huehuetenamgo (na Guatemala). As outras quatro escolhas são
cirúrgicas e contemplam pessoas que apoiam claramente a reforma desejada por
Francisco. Além de Tolentino Mendonça, outros dois homens da Cúria: o
presidente do Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, ele próprio já oriundo
dos Missionários Combonianos; e o jesuíta Michael Czerny, que trata das
migrações no dicastério para o Desenvolvimento Humano.
Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha, foi um dos negociadores, enquanto
padre da Comunidade de Santo Egídio, do acordo de paz em Moçambique, há 20 anos
e é outra escolha pessoal do Papa, que já o tinha nomeado para uma difícil
diocese italiana. Sobra o arcebispo do Luxemburgo, um dos países minúsculos da
Europa e onde a realidade da imigração também está presente.
O Espírito Santo fora da Igreja
Numa primeira impressão, poderia pensar-se que não foi a poesia a fazer
com que o nome de Tolentino Mendonça constasse da lista escolhida por Francisco
e anunciada pelo próprio Papa ao início da tarde, no final da oração do Angelus.
Num segundo momento, entende-se claramente que foi decisiva, para esta
rapidíssima nomeação, a forma como Tolentino Mendonça pega na Bíblia, a sua
área preferencial de estudos, e a cruza com a poesia, a literatura, as artes ou
a música.
O Papa percebeu essa capacidade no retiro da Cúria Romana, na Quaresma
do ano passado, para cuja orientação convidou o então ainda padre Tolentino,
nessa altura director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica
Portuguesa e capelão da Capela do Rato, em Lisboa. Desenvolvendo o tema do
“elogio da sede” em dez intervenções (desde 2018 disponíveis em livro,
publicado pela Quetzal) o agora bibliotecário da Santa Sé começou por falar da
necessidade de os crentes serem “aprendizes do espanto”.
No final do retiro, as palavras do Papa eram claras, acerca do que
apreciara nas meditações do padre natural do Machico: “Obrigado por nos ter
recordado que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito
voa também fora e trabalha fora. E, com as citações e as coisas que o senhor
nos disse, fez-nos ver como trabalha nos não-crentes, nos ‘pagãos’, nas pessoas
de outras confissões religiosas.”
Essa capacidade de fazer pontes que Tolentino Mendonça tem e cultiva
contrasta com a incapacidade, que predomina ainda nas estruturas católicas –
sobretudo em Portugal –, em dialogar com o universo da cultura, a política ou a
ciência, por exemplo. Desde há muito que o ex-responsável da Capela do Rato
tinha feito daquele espaço um lugar de encontro cultural (por exemplo, abrindo
as portas da capela à intervenção artística de Lourdes Castro, Ilda David’ ou
Duarte Belo, entre muitos outros. Mas também por ali passaram debates sobre
temas pouco pacíficos no interior da Igreja como o lugar das mulheres no
catolicismo.
O trabalho na Capela do Rato, no entanto, era apenas um microcosmo do
que Tolentino fazia noutros âmbitos mais alargados e que já iniciara muito
antes. Enquanto capelão da Universidade Católica (na década de 1990), por
exemplo, ele levava a poesia, o cinema e a literatura para os corredores e
anfiteatros académicos.
Essa perspectiva de diálogo cultural e plurisdisciplinar prosseguiu
depois, já enquanto professor da Faculdade de Teologia, com a organização de
seminários, colóquios onde, a propósito da reflexão teológica, convidava
poetas, escritores, artistas, cineastas, actores e actrizes. Por exemplo, Maria
do Céu Guerra, em Novembro de 2014, a ler o Cântico dos Cânticos na 5ª Jornada
de Teologia Prática, uma iniciativa que o autor de A Noite Abre Meus Olhos,
título da antologia poética, pôs de pé com Alfredo Teixeira e outros nomes
destacados da faculdade.
Noutros espaços católicos, Tolentino ajudou a programar debates sobre o
humor, a crise, a esperança ou a homossexualidade. E foi ele que, dirigindo a
colecção Teofanias, ajudou a trazer para Portugal pensadores contemporâneos
como Etty Hillesum ou Dietrich Bonhoeffer, ambos vítimas do nazismo, ou o
cardeal Newman, vulto maior do cristianismo britânico.
Um “nomadismo arriscado”
Sabia-se, desde que foi nomeado para o cargo de bibliotecário da
Biblioteca Apostólica Vaticana e arquivista da Santa Sé., que rapidamente
Tolentino Mendonça seria cardeal – a dúvida era se seria nomeado no primeiro ou
no segundo consistório após a nomeação do ano passado.
E já se podem fazer outras adivinhações não muito difíceis: em breve,
por atingir o limite de idade para exercer tal cargo, o cardeal Gianfranco
Ravasi terá de deixar o lugar de presidente do Conselho Pontifício da Cultura.
Esse facto, aliado à reforma dos organismos da Cúria Romana que o Papa tem
quase pronta pode fazer com que Tolentino seja o futuro responsável pela área
da Cultura do Vaticano – papel onde estará ainda mais à vontade do que no seu
actual cargo.
Aliás, a sucessão será natural, já que foi o cardeal Ravasi a chamar
Tolentino para membro do Conselho Pontifício enquanto conselheiro. Ravasi notou
a qualidade da reflexão do biblista português – o cardeal italiano é, ele
próprio, um especialista da Bíblia – e foi ele que sugeriu o nome de Tolentino
ao Papa para o retiro da Cúria em 2018.
A Bíblia e a investigação sobre a pessoa e a vida de Jesus continuam a
ser a matéria-prima da reflexão e da obra de Tolentino. O texto bíblico é, para
ele, não apenas matéria de fé, mas também a possibilidade de uma ágora na
cultura ocidental. Os seus livros maiores neste campo, até agora, A
Construção de Jesus(ed. Assírio & Alvim), que resulta da tese de
doutoramento, e A Leitura Infinita(ed. Paulinas), que colige vários
estudos com perspectivas muito inovadoras nos estudos bíblicos, são já
incontornáveis na matéria.
Sobre Jesus, dizia, numa outra entrevista ao PÚBLICO: “Jesus voltou a
cruzar o seu nome com o interesse, com as aspirações, com as procuras, também
com as perplexidades da contemporaneidade. Por isso ele é uma referência
reencontrada. (…) O pior que podíamos fazer era encaixar, enquadrar Jesus numa
moda ou numa imagem que se volta a vender. Esse reencontro tem de corresponder
a algo de mais estável e profundo do que os simples interesses circunstanciais.
E, na primeira entrevista antes referida, afirmava Tolentino Mendonça:
“Para mim, o ser padre não é, de nenhuma maneira, um destino de funcionário ou
de repetidor de normas e de minudências. O ser padre é praticar um nomadismo
arriscado que é o desta procura do sentido.”
Se o Papa Francisco recusa em absoluto o carreirismo clerical, com o
novo cargo para o qual chamou Tolentino Mendonça, deve querer que este alimente
o seu “nomadismo arriscado”.
--------------
Reportagem Por António Marujo2
Set 19
(Texto publicado inicialmente na edição do Público de segunda-feira, 2 de Setembro)
Nenhum comentário:
Postar um comentário