Julia Dantas*
Demonstrando sua assombrosa distância
do mundo das artes, Bolsonaro quer como critério de escolha para a
presidência da Agência Nacional do Cinema um evangélico que saiba
recitar 200 versículos bíblicos, que tenha joelhos machucados de tanto
ajoelhar (ajoelhar para rezar, é claro) e que carregue a Bíblia debaixo
do braço. Critérios puramente técnicos e relacionados ao cargo, como
todos podemos perceber.
Na época em que proibiu um edital de projetos LGBT,
Bolsonaro disse desejar um "filtro de conteúdo" para a Ancine, uma
censura institucionalizada que restringiria a produção artística a
partir de escolhas ideológicas. Nas redes sociais, o presidente disse
que não quer liberar recursos do audiovisual para projetos com a
temática de sexualidade, por exemplo.
É notável como a aproximação entre decretos políticos e
sexualidade é uma fórmula infalível para o desastre. Enquanto escrevo
esta coluna, reviso a tradução da Natalia Borges Polesso para o romance
Nós & Eles, da iraniana Bahiyyih Nakhjavani, que sairá em outubro
pela editora Dublinense. A trama retoma a revolução iraniana e aborda as
mudanças políticas e morais após a queda do Xá. Não espero traçar
paralelos diretos entre um país islâmico e o Brasil, mas vale a pena
relembrar como algo tão simples como as vestimentas das mulheres se
tornou questão central no regime iraniano. Eram apenas roupas, alguns
devem ter dito à época. São apenas filmes, dizem por aqui hoje.
Quando se politiza a moral, passa a haver rígido
controle sobre o comportamento pessoal: algo que é considerado imoral
passa a ser considerado também uma ofensa à pátria. Quem sofre mais
nesse processo são sempre as mulheres. A imoralidade é um terreno
movediço, que pode variar de mulheres exibirem os cabelos, num país como
o Irã, a mulheres dirigirem carros, como até há pouco ocorria na Arábia
Saudita, ou jogarem futebol, como era proibido por lei no Brasil até
1979. Mulheres seguiram fazendo todas essas coisas, mais ou menos
escondidas, mas sob ameaças e, no caso dos esportes, sem possibilidade
de profissionalização.
Religião e política não podem andar juntas. Se hoje
aceitamos a ideia de um evangélico fervoroso comandar a principal
agência de fomento ao cinema do país, amanhã talvez tenhamos que aceitar
que um pastor-político proíba o consumo de bebidas alcoólicas no país,
já que algumas correntes evangélicas assim determinam.
O que aqui nos salva é a diversidade do povo
brasileiro. Nossa mistura de religiões e de visões de mundo
provavelmente travaria a instauração de proibições extremas de cunho
religioso. Mas já vemos que esse governo vai tentar controlar tudo
aquilo que está a seu alcance, e como as artes dependem - em todo o
mundo - de financiamento público, veremos o enfraquecimento de uma
indústria que, no Brasil, injeta mais de R$ 23 bilhões por ano na
economia e emprega centenas de milhares de pessoas. Mas pelo menos não
teremos filmes com sexualidade. E que Deus proteja os joelhos do próximo
presidente da Ancine.
----------
* Jornalista. Escritora.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=3a86d702b595d945864083c3ced11ac2 07/09/2019
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário