sábado, 7 de setembro de 2019

ATÉ MAIS VER, ESTADO LAICO

Julia Dantas*

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Demonstrando sua assombrosa distância do mundo das artes, Bolsonaro quer como critério de escolha para a presidência da Agência Nacional do Cinema um evangélico que saiba recitar 200 versículos bíblicos, que tenha joelhos machucados de tanto ajoelhar (ajoelhar para rezar, é claro) e que carregue a Bíblia debaixo do braço. Critérios puramente técnicos e relacionados ao cargo, como todos podemos perceber.

Na época em que proibiu um edital de projetos LGBT, Bolsonaro disse desejar um "filtro de conteúdo" para a Ancine, uma censura institucionalizada que restringiria a produção artística a partir de escolhas ideológicas. Nas redes sociais, o presidente disse que não quer liberar recursos do audiovisual para projetos com a temática de sexualidade, por exemplo.

É notável como a aproximação entre decretos políticos e sexualidade é uma fórmula infalível para o desastre. Enquanto escrevo esta coluna, reviso a tradução da Natalia Borges Polesso para o romance Nós & Eles, da iraniana Bahiyyih Nakhjavani, que sairá em outubro pela editora Dublinense. A trama retoma a revolução iraniana e aborda as mudanças políticas e morais após a queda do Xá. Não espero traçar paralelos diretos entre um país islâmico e o Brasil, mas vale a pena relembrar como algo tão simples como as vestimentas das mulheres se tornou questão central no regime iraniano. Eram apenas roupas, alguns devem ter dito à época. São apenas filmes, dizem por aqui hoje.

Quando se politiza a moral, passa a haver rígido controle sobre o comportamento pessoal: algo que é considerado imoral passa a ser considerado também uma ofensa à pátria. Quem sofre mais nesse processo são sempre as mulheres. A imoralidade é um terreno movediço, que pode variar de mulheres exibirem os cabelos, num país como o Irã, a mulheres dirigirem carros, como até há pouco ocorria na Arábia Saudita, ou jogarem futebol, como era proibido por lei no Brasil até 1979. Mulheres seguiram fazendo todas essas coisas, mais ou menos escondidas, mas sob ameaças e, no caso dos esportes, sem possibilidade de profissionalização.

Religião e política não podem andar juntas. Se hoje aceitamos a ideia de um evangélico fervoroso comandar a principal agência de fomento ao cinema do país, amanhã talvez tenhamos que aceitar que um pastor-político proíba o consumo de bebidas alcoólicas no país, já que algumas correntes evangélicas assim determinam.

O que aqui nos salva é a diversidade do povo brasileiro. Nossa mistura de religiões e de visões de mundo provavelmente travaria a instauração de proibições extremas de cunho religioso. Mas já vemos que esse governo vai tentar controlar tudo aquilo que está a seu alcance, e como as artes dependem - em todo o mundo - de financiamento público, veremos o enfraquecimento de uma indústria que, no Brasil, injeta mais de R$ 23 bilhões por ano na economia e emprega centenas de milhares de pessoas. Mas pelo menos não teremos filmes com sexualidade. E que Deus proteja os joelhos do próximo presidente da Ancine.
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* Jornalista. Escritora.
Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=3a86d702b595d945864083c3ced11ac2 07/09/2019
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