Para o chanceler de Itamar e Lula, o governo Bolsonaro transgride normas internacionais e, com a crise na Amazônia, dá argumentos para que ele sofra sanções
Chanceler de Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva e ministro da Defesa de Dilma Rousseff, o embaixador Celso Amorim
diz assistir com perplexidade, de Copacabana, onde vive, ao desmonte da
política externa brasileira. Não só a do período que conduziu, tachada
de “terceiro-mundista” por vários segmentos da sociedade, mas também a
que vinha em gestação desde a retomada da democracia no país. Diplomata
por mais de quarenta anos, o paulista radicado no Rio de Janeiro
ressente-se principalmente da relação carnal entre o Brasil e os
Estados Unidos promovida pelo presidente Jair Bolsonaro, acredita que “o
pior de Trump está no seu mau exemplo” e, ao fazer duras críticas à
condução do governo de Nicolás Maduro, revela seu temor de que a crise
da Venezuela acabe como a do Iraque de Saddam Hussein. Sobre a polêmica
provocada pelos incêndios na Amazônia, Amorim se diz surpreendido pelo
fato de o Brasil, antes chamado para ajudar na solução dos dilemas
internacionais, agora ter se tornado um “pária global”.
A política externa de Bolsonaro é a de Lula com o sinal trocado?
Essa é uma brutal simplificação. Havia uma linha de continuidade nas
políticas externas de Fernando Henrique, Collor, Sarney e Lula, que
agora está sendo rompida. O atual governo acredita que soberania
significa transgredir as normas internacionais. Orienta o Brasil a não
se curvar à ONU, que existe para defender os elementos civilizatórios e
foi desenvolvida com o apoio do Estado brasileiro. Nunca me senti mal
como embaixador de nenhum dos presidentes. Hoje, sinto-me violentado
como cidadão e assim me sentiria se estivesse no Itamaraty.
Como o senhor avalia o papel do governo diante da crise da Amazônia?
Antes, o Brasil era chamado para ajudar a solucionar os problemas.
Agora, o G7 se reúne para tratar do Brasil como a crise do momento. Isso
é surpreendente. O país está se autorretaliando pelo isolamento,
colocando-se na posição de pária global.
A Finlândia defendeu a adoção, pela União Europeia, de barreiras ao ingresso da carne brasileira…
Era previsível. Obviamente que há motivações protecionistas em alguns
casos. Mas o Brasil está dando o motivo e o pretexto para essas ações. O
governo não está olhando os danos que causará à economia e ao meio
ambiente.
Há risco efetivo à soberania, como alerta o governo?
Não há incompatibilidade entre a defesa da Amazônia e a preservação da
soberania. No governo Lula, tomamos medidas sérias para diminuir o
desmatamento e aceitamos a cooperação internacional, que começou com o
Fundo Amazônia, mas com projetos definidos por nós. A solução está em
reconhecer que o problema é global, assumir que a responsabilidade é
nacional, definir como vamos enfrentar o problema e aceitar a cooperação
nos nossos termos.
“Os governos tiveram maior ou menor aceitação das
propostas americanas. Mas nenhum deles permitiu
a submissão explícita.
Bolsonaro chega a
dizer que está apaixonado por Trump!”
Houve atrito diplomático desnecessário com a França?
Quando Bolsonaro deixou de receber o ministro francês Jean-Yves Le
Drian para cortar o cabelo, já estava jogando nessa direção. O
presidente parece querer ressuscitar a Guerra da Lagosta, dos anos 1960.
Além de importante mercado para os produtos brasileiros, a França tem
sido grande investidora no país e é a fornecedora de tecnologia para
nosso submarino de propulsão nuclear. Nossos militares têm de acordar
para esse fato.
Como vê o alinhamento Brasil-Estados Unidos? Os
governos passados tiveram maior ou menor aceitação das propostas
americanas. Mas nenhum deles permitiu a submissão explícita, a linha
mestra do atual governo. O presidente Bolsonaro chega a dizer que está
apaixonado pelo Donald Trump! Não me lembro de nenhum presidente, nem
mesmo na época das fronteiras ideológicas da ditadura militar, usar
expressões semelhantes.
O senhor vê uma tentativa deliberada do governo Bolsonaro de desmontar o que foi feito na política externa do presidente Lula?
Ele não quer desmontar só o governo do Lula, mas tudo o que vem desde a
redemocratização, da Constituição de 1988. O Brasil trabalhava por
valores civilizatórios, que envolvem o respeito aos direitos humanos, às
minorias, às mulheres, aos LGBTs, às diferenças em geral, à preservação
do meio ambiente. A gente vive agora uma imitação de Trump.
O senhor atribui essa desconstrução a Bolsonaro ou a Ernesto Araújo?
O chanceler tem alucinações explícitas. É obviamente uma pessoa
erudita, sabe a ave-maria em tupi, os Evangelhos em grego, o que é
extraordinário. Lembre-se de que Dom Quixote leu muitos livros de
cavalaria e acabou confuso — se bem que eu tenha grande simpatia por Dom
Quixote.
O chanceler parece obcecado por eliminar o marxismo cultural. O senhor deixou esses vestígios no Itamaraty?
Lendo os textos dele, fiquei com a impressão de que o marxismo cultural
começou antes de Karl Marx, no Iluminismo. Marx, por sinal, era um
pensador superocidental, um descendente de Hegel.
Qual sua percepção sobre Trump como presidente? O
pior do Trump é seu mau exemplo. Tudo o que há de ruim — racismo,
machismo, apoio à transgressão da norma, porte de arma, fim da carteira
de motorista — é comum a Trump e Bolsonaro.
E se ele não for reeleito em 2020? Aí acaba toda a estratégia do governo Bolsonaro, que não está baseada nos Estados Unidos, mas na figura de Donald Trump.
Como o senhor, que foi embaixador na OMC, na ONU, em Londres,
vê a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro para a embaixada
brasileira em Washington? É um claro caso de nepotismo, que o
Senado julgará. O risco maior é a consolidação de um eixo de extrema
direita nas Américas, que não vou chamar de eixo do mal. Não consigo
perceber o interesse do Estado nessa indicação. Parece a volta dos
casamentos dinásticos.
Quais os prejuízos já visíveis da atual política? O
Brasil abriu mão de ser economia em desenvolvimento diante da OMC, de
forma gratuita, a pedido dos americanos. O presidente Bolsonaro afirmou
em Washington: “Eu vim para destruir”. Não se pode dizer que ele não
esteja cumprindo o prometido.
Mas o presidente Bolsonaro recuou em várias propostas na área externa, como a intervenção na Venezuela.
Ele recuou porque os militares o seguraram, mas é muito determinado. A
Venezuela está sendo estrangulada pelas sanções dos Estados Unidos, que
estão tratando o Nicolás Maduro como se fosse o Saddam Hussein. Não
estou defendendo o Maduro, a quem critico. Mas havia um processo de
negociação entre o governo e a oposição, amparado pela ONU e pela
Noruega, que não foi apoiado pelo Brasil. A solução está na persuasão,
na negociação. Nunca no cerco brutal, no estímulo à guerra civil. Não
vejo o Maduro caindo em curto prazo.
Como chanceler, teria reconhecido Juan Guaidó como presidente interino? Não. Isso vai completamente contra o princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros países.
Essa atitude poderia ter aberto a possibilidade de o Brasil atuar como um mediador? Como sempre foi. Na época em que criamos o Grupo de Amigos da Venezuela, eu falava com grande frequência com o Colin Powell (então secretário de Estado americano).
O papel do Brasil sempre foi de pacificador. O presidente Fernando
Henrique teve essa função no conflito entre Peru e Equador. No governo
Lula, houve a solução para o conflito na Bolívia, que esteve à beira da
guerra civil, para a crise política do Equador.
Mas Lula dava atenção especial a Hugo Chávez. As
pessoas dizem que eram amigos, mas o Lula nunca passou a mão na cabeça
do Chávez. Lula sempre usou sua capacidade de persuasão para apaziguar
os ânimos do Chávez. Insistia que ele tinha de ser o presidente de todos
os venezuelanos, que precisava manter relações normais com a Colômbia.
“Eu não teria reconhecido Juan Guaidó como presidente
interino. Isso vai contra o princípio da não intervenção nos assuntos
internos de outros países”
Mas assistia a Chávez dominando os três poderes, censurando a imprensa, perseguindo opositores. Por que não reagiu?
Porque achávamos, e eu continuo achando, que a persuasão e a cooperação
são melhores que o isolamento. Atrair a Venezuela para o Mercosul era
uma forma de influir na Venezuela. Dizer que o Brasil era bolivariano é
um absurdo. Lula nunca militarizou a política, fez um governo totalmente
diferente.
Acabou o papel de liderança do Brasil na América Latina? O Brasil se autoexcluiu de qualquer negociação.
Os Estados Unidos acenaram com um acordo de livre-comércio com o Brasil, sem o Mercosul. É factível?
Não vai acontecer. Os americanos não atenderão a nossas demandas em
acesso a mercado e eliminação de subsídios. Trump é protecionista.
O acordo Mercosul-União Europeia foi concluído. Mas será adotado?
Não defendo esse acordo. Acho que foi fechado às pressas e sob pressão,
durante um cochilo do Bolsonaro, que tem aliança com os neoliberais,
mas nenhum pensamento neoliberal. Depois o próprio governo, que festejou
o acordo, se encarregou de bombardeá-lo, com o tratamento que deu ao
ministro francês Le Drian.
A relação Brasil-China continua ameaçada? O leilão
de internet 5G, no qual a chinesa Huawei tem interesse, será um teste do
pragmatismo e da revisão ideológica do governo. Há uma grande
interrogação. A China dará o grande choque mundial, que terá a ver com a
tecnologia, com o modo de organizar a sociedade.
O senhor estava ciente do pagamento de propinas ao PT por
empreiteiras com obras no exterior financiadas pelo BNDES e que foi
detalhado recentemente por VEJA? Jamais tomei conhecimento —
muito menos participei — de qualquer ação ilegal, notadamente com vistas
a vantagens financeiras ou outras, seja em favor de empresas ou partido
político, seja em benefício dos governantes dos países africanos. O
aprofundamento e a expansão da relação com a África foram, sim, objetivo
da política externa brasileira que trouxe benefícios concretos para o
país, tanto no campo econômico-comercial, com a multiplicação de
exportações, quanto no campo político, com o apoio africano a vários de
nossos pleitos e posições em organismos internacionais, facilmente
comprováveis.
Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651 - Páginas amarela
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Foto: Eduardo Monteiro/VEJA
Fonte: https://veja.abril.com.br/politica/brasil-virou-paria-global-diz-celso-amorim/ 06/09/2019
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