Roberto da Matta*
Não deve haver apenas ‘primeiras letras’, mas também ‘primeira cidadania’
As
palavras chegam como guardas. É por meio delas que ficamos sabendo
quando somos bem-vindos, corremos perigo ou somos incipientes. Como
ensinou um filósofo, as palavras fazem coisas como juramentos, ofensas e
promessas. Com elas travamos um infinito combate contra a ignorância.
O
governo tem persistido na estupidez de confundir certas manifestações
do mundo universitário com a sua nobre dimensão intelectual. Estou farto
de conhecer a precariedade brasileira relativa ao mundo da instrução,
da vida acadêmica e, acima de tudo, da grandeza intelectual. Uma prova
disso é a piada abominável segundo a qual quem não sabe, ensina! E para
tanto recebeu uma “bolsa de estudo” cujo sentido ambíguo remete tanto ao
combate à estupidez quanto às vergonhosas mochilas e quartos cheios de
dinheiro roubado. “A bolsa ou a vida!”, dizem bandidos, jamais um
ministério que “cuida” da educação...
Há diferenças
entre ensinar crianças e instruir adultos pesquisadores e intelectuais.
Há motivos para considerar que quem ensina crianças tem mais importância
relativa do que quem ensina adultos. Ensinar quem experimenta a vida
fora de casa e o relacionamento com seus genitores é um ato “primário”.
Não deve haver apenas “primeiras letras” – o que deve haver é,
sobretudo, uma “primeira cidadania”. É o exercício de um comportamento
igualitário e respeitoso ao lado de laços sociais isentos dos afetos
lenientes da família e da casa. O ensino elementar deve transformar
filhinhos de famílias, nobres ou pobres, em “alunos”. No Brasil, há o
costume de chamar esses primeiros educadores de “tios” quando, de fato,
eles devem ensinar como passar de filhos a alunos. Uma pessoa associada a
um conjunto não governado pelas hierarquias da casa, mas por normas que
valem para todos.
A
escola primária faculta uma primeira experiência aberta com a igualdade.
O ensino secundário e o superior deveriam consolidar tal aprendizado,
ofertando “bolsas” a quem precisa. Em inglês, “bolsa” é “scholarship” e
houve quem traduzisse a palavra como “navio de acadêmicos”. O que, mesmo
promovendo risos, não é de todo um erro já que uma “scholarship” é um
meio de realização intelectual. Traduzir “bolsa” como dinheiro fácil e
ideologizado como são as polpudas verbas que os políticos inventam em
causa própria, revela ignorância (ou má-fé). Bolsas de estudo são um
investimento essencial num mundo com mais informação do que compreensão.
Suprimir bolsas é contribuir para manter os nossos pomposos “burros
doutores” e o uso do título acadêmico como privilégio.
Fui
bolsista do Conselho Nacional de Pesquisas, da Comissão Fulbright, da
Fundação Ford, da Universidade de Harvard, da Fundação Guggenheim e
Calouste Gulbenkian. Sem essas bolsas (ou navios) eu não teria saído de
Niterói...
Foram as bolsas que me permitiram estudar numa Harvard
que sempre colocou a excelência intelectual acima da tendência ao
fechamento elitista. Meus pais e avós jamais saíram do Brasil para viver
o “lá fora” onde tudo seria melhor. Morreram sem saber que não há
sociedades perfeitas e que em todas há um combate permanente entre
interesses e normas.
Como um professor antigo, deprime-me
testemunhar jovens sendo forçados a desistir de uma vida intelectual
crítica e construtiva pela supressão de bolsas. Não pode haver melhor
meio de assassinar vocações.
Fosse presidente, contingenciaria
outras áreas, fosse milionário gratuitamente graduado numa federal e
ex-bolsista, procuraria amigos igualmente milionários e faria um fundo
destinado a suprir estudantes carentes. Criaríamos uma agência
particular para compensar a burrice do governo. Enfim, faria alguma
coisa em vez de simplesmente falar e escrever, que é o recurso que
disponho...
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* Antropólogo, conferencista, consultor, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,bolsas-e-navios,70003014364
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