FRANCISCO MARSHALL*
Nos mitos clássicos e nas pinturas renascentistas, Afrodite
(Vênus/amor) triunfa sobre Ares (Marte/guerra), selando a vitória da
doçura sobre a violência. É o sonho das almas sensíveis, que artistas
deleitam-se em nos entregar, com belas imagens, que inspiram e nos dão o
necessário alimento do pensar. Na literatura mais popular da história,
porém, o protagonista é um personagem virtuoso, que espalha mensagem
estoica, de amor abnegado, mas ao final é perseguido por ódio coletivo e
divino, para ser, no clímax trágico, condenado em tribunal injusto e
também para a saciedade de seu pai, que lhe impõe cálice amargo e toma
seu sofrimento e seu sangue em sacrifício. A mensagem de amor contrasta
com o cenário de triunfo do ódio, e uma laje removida da tumba não é
suficiente pra suprimir a memória trágica da descomunal violência,
praticada contra personagem amoroso. Será o ódio mais forte que o amor?
Vizinha do ódio, a cólera tem o poder de provocar a
revelação das entranhas, quando a possessão furiosa supera barreiras do
decoro e o sujeito diz o que estava reprimido, ou comete o que o juízo
interdita. É assim na tragédia Édipo Tirano, de Sófocles, quando o
soberano ataca ao vidente Tirésias, até que este, agastado, revela o que
ocultava, a verdade da identidade do rei parricida e incestuoso. A
cólera tem o condão de revelar intimidade terrível, com certo grau da
verdade, usualmente insuportável no convívio social. Quando esta
revelação libera o que estava reprimido, produz-se um prazer associado à
sensação de alívio, poder e triunfo.
A cultura, todavia, desde a era da tragédia grega, no
século V a.C., dispõe de recurso eficiente para purgar o ódio pela arte,
projetando-o ritualmente nas tensões do palco, a certa distância e
proximidade do espectador, e provocando o que Aristóteles chama, com
vocabulário médico, de catarse. Desde então, a representação de paixões
odiosas é matéria potente da arte - que o digam também Shakespeare e
Nelson Rodrigues.
Deu-se no Brasil que o ódio mimetizado nas ruas e
mídias ocupou o lugar da arte, e fez aflorar o horror íntimo de milhões
de pessoas. Assim liberado, o ódio premia e cativa a libido, de modo
irresistível. Eis porque é quase impossível despertar aos que entraram
nesse transe, mesmo diante dos fatos hediondos que ora assombram nosso
cotidiano; estão reféns de um tipo de prazer que já parecia impossível.
Por anos, milhões de pessoas preconceituosas reprimiram seu ódio sob a
luz de um novo pacto cultural. Hoje atacam sem pejo ao politicamente
correto, a ética contemporânea de respeito, que recusa todos os
preconceitos. Descartada a ética e consagrado o ódio, avança-se para
trevas em que Eros está ausente e a irracionalidade campeia contra
cultura, educação, ciência, dignidade humana e meio ambiente.
Eis como o Brasil se tornou teatro do ódio, com todas
as suas fúrias. Para que Vênus novamente dome Marte, precisamos de
teatro e pensamento, capazes de purgar com arte os monstros que ora
assombram nosso tempo.
* Professor Universitário e pesquisador.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=449813ff3f5a8a8d9fbc3fc03edce90b 30/08/2019
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