Jean Pierre Chauvin*
Se há uma coisa que o romance
distópico nos ensina é a detectar, descrever e refutar as sociedades
totalitárias – quase sempre armadas com juízos alheios e pensamento
único, sob as lentes vigilantes do Estado uniformizador. Com frequência,
o discurso torpe de líderes de papel pode contagiar, até mesmo, os
sujeitos mais bem-intencionados: a bravata institucional é replicada,
com escárnio, por homens-célula alheios à miséria social que os cerca.
Há quase um século, Sigmund Freud sugeriu que um dos traços
dominantes no indivíduo autoritário é o comportamento narcisista, a
oscilar – para mais, para menos – conforme a orientação da massa em que
está inserido. Louis Althusser mostrou como a ideologia reverbera de
cima para baixo e avaliza o modo como falam e procedem os agentes da
repressão. Michel Foucault observou que o totalitarismo, quase sempre
referendado pela lei e pela moral dos tempos, pretende justificar as
várias formas de interdição e/ou exclusão, segundo os interesses dos
mais ricos e/ou poderosos. Jean Baudrillard salientou que, na Era do
Consumo, perfaz-se o simulacro da fartura que remontaria às antigas
Idades de Ouro.
Suspeito que, para alguns indivíduos – tanto os inseridos, quanto os
enjeitados pelos estreitos círculos de poder –, o espírito crítico seria
uma espécie de vírus da contestação e, como tal, precisaria ser curado,
combatido, extirpado. É que a criticidade, vale lembrar, jamais
repousa: é um modo de conceber o mundo e as pessoas (em última
instância, são elas que montam ou desmontam a polis ou
interferem no planeta) que considera a tensão entre interesses
antagônicos, quase sempre relacionados às assimetrias que envolvem
indivíduos originários de respectivas classes, a ocupar estamentos
sociais. Isso talvez explique a sanha de quem está lá – e daqueles que
os apoiam –, pela padronização de pensamentos e atitudes, a que os
sujeitos solidários (e mais capazes de alguma crítica) se contrapõem.
Como se suspeita, a questão ultrapassa o âmbito da equipe que está
(ou finge estar) no comando. Isso porque o poder que emana do staff,
embora totalizante e destrutivo, conta com a adesão de sócios, mas
também de parcelas da população que estão em situação tão ou mais
periclitante que a nossa. Em meio à desfaçatez dos governantes, um dos
sintomas manifestados pelos sujeitos críticos contém um misto de
tristeza e indignação, que se tende a descrever e tratar como angústia. O
diagnóstico parece razoável. Bastaria averiguar em que medida a crise
financeira é mais um discurso do que uma realidade; mais um
pseudoargumento a transferir, injustamente, responsabilidades do atual
desgoverno para outros.
Evidentemente, o que acontece hoje não nasceu na semana passada. O
que se viu, a partir dos anos de 1950, é que quanto mais avançava o
liberalismo econômico e diminuía a liberdade individual, mais se
inventaram modos de abrandar o discurso e os efeitos deletérios do
capital especulativo e, mais tarde, fracionário (ou seja, sem lastro nas
reservas monetárias). Tornou-se frequente o comportamento dos
governantes como reféns do “humor” ou do “temperamento” dos bancos e das
bolsas. Uma das soluções mais simplistas e infelizes é transformar a
crise em sintoma e atribuí-la à “instabilidade” do mercado. Seria o caso
de nos perguntarmos: essa coisa abstrata, chamada mercado, por acaso é gente? Ou, pior, o que o mercado entende do bem-estar das gentes? Em contrapartida, haveria “comportamento” estável de mercado?
Referendada por especialistas, a ética do lucro[1]
transfere a má gestão, o risco anunciado, o mal funcionamento da
engrenagem, a falta de rentabilidade etc. para as pessoas que menos
participam dela. O discurso da crise não só forja números ou encontra
culpados; concede traços humanoides para os computadores, as máquinas,
as commodities e os bancos. Essa acepção favorece os detentores
de títulos, largas propriedades e funcionários (ou “colaboradores” com
seu lucro). O discurso da meritocracia reitera que cabe a nós – que nos
admitimos mortais e parte do povo – o ônus de nossa existência incômoda,
pouco rentável, fracassada. Como isso acontece? A linguagem
mercadológica é adornada com um léxico humanizador, a com vistas a
disfarçar a faceta paternalista e excludente de pequenos gestores e
grandes negócios: o patrão virou líder; agora, gestor. O trabalhador tornou-se colaborador, ou prestador, ou mesmo empreendedor de si mesmo[2].
Decorre daí um dos papéis da assim chamada “ética corporativa”:
contrabalançar, no plano das ideias, os efeitos perniciosos da crescente
concentração de renda, como recomenda a novíssima ordem mundial,
replicada em distopias que exterminam etnias, queimam florestas e afogam
refugiados. O pensamento único está na matriz das histórias de ficção
mais impactantes, transcorridas em mundos tão dessemelhantes quanto
análogos ao nosso. Nessas histórias há substâncias sintetizadas pela
indústria farmacêutica – de mãos atadas com o Estado totalitário – que
funcionam como antídotos temporários contra a eventual postura reflexiva
e/ou a menor produtividade dos sujeitos. Para os regimes inventados nos
livros, é perigoso que os indivíduos defendam algum quinhão de
liberdade, em meio à padronização dos modos de conceber a si mesmos e os
outros.
Ao lado do idioma da crise caminha a narrativa da insegurança. O
“estado de guerra” poderia ser entendido como tópica comum aos romances
distópicos. A diminuta vida de D-503, protagonista de Nós
(1924), romance de Zamiátin (1924), gira em torno da construção da
Integral: no limite, ela não passa de um gigantesco equipamento de
guerra, que parece dar sentido à mirrada existência do narrador. No 1984,
de Orwell (1949), o Partido do Grande Irmão veicula diariamente, nas
teletelas, conflitos inexistentes entre a Oceania e a Eurásia, sob a
lenta desconfiança de Winston Smith. Também é a guerra que preenche as
páginas finais de Fahrenheit 451, de Bradbury (1953), enquanto
Guy Montag memoriza trechos do “Eclesiastes”. É o estado de guerra
permanente que justifica a falta de crianças no país em que vive Offred,
no relato sobre as metades de sua vida em O conto da Aia, de
Atwood (1985). É ainda, e sempre, a iminência da guerra que serve a
avalizar as prisões arbitrárias, as sádicas sessões de tortura e o
extermínio de sujeitos tidos por indesejáveis, pelo Estado, como se vê
na Nova Ordem, de Kucinski (2019).
Depreende-se, com alguma facilidade, que, no mundo dos
ultraindivíduos cabe a eles (e por tabela, a nós) a maior cota de
responsabilidade por determinados gestos e atitudes indecorosas, perante
o que dita o regime. Recorrendo a Gustave Le Bon (1841-1931), Freud
supôs que “na massa o indivíduo está sujeito a condições que lhe
permitem se livrar das repressões dos seus impulsos instintivos
inconscientes […] o cerne da chamada consciência moral consiste no ‘medo
social’.” Os discursos da crise e da insegurança passaram a justificar o
comportamento reativo e punitivo da sociedade moderna (supondo que ela
possa ser chamada desse modo desde o final do século XVIII).
De fato, quanto mais munição as políticas ditas “de segurança”
recebem, mais se confundem atitudes “de bem” com a manutenção de
(in)certa ordem – não necessariamente seguida pelos autores e carrascos
das leis. O cenário está cheio de nuvens, por vezes de fuligem, ou de
cinza amazônica; mas os problemas não nos afligem, quando distantes. Na
falta de referenciais, o sujeito reproduz o discurso tido por oficial,
este frequentemente mancomunado com o receituário da mídia corporativa.
Na síntese de Althusser: “[…] o Aparelho de Estado compreende dois
corpos: o corpo das instituições que constituem o aparelho repressivo do
Estado, e o corpo de instituições que representam o corpo dos Aparelhos
Ideológicos do Estado”.
O desejo de ordem resvala no sadismo particular (que se pretende coletivo) de quem julga, condena e pune, tornando suas
as ações que caberiam às autoridades da Justiça ou do Executivo. Cada
um parece se metamorfosear em uma imitação piorada dos já caricatos
“apresentadores” (ou vociferadores) de tevê, a rebaixar a discussão em
torno dos Direitos Humanos e a induzir a prática de um pretenso
“justiçamento” inoxidável, em nome do bem, da ordem, da ética, da reparação
de danos ao sistema. Foucault afirmou, numa aula de 1973, que desde
meados do século XVIII, o “criminoso” passou a ser descrito e
considerado como “inimigo do Estado”, na França; e que, a partir do
século XIX, “[…] a consciência clara e perfeitamente formulada no
discurso a época de que as leis são feitas por pessoas às quais elas não
se destinam, mas para serem aplicadas àqueles que não as fizeram”.
Ora, onde repousam as políticas ultraliberais que alguns conterrâneos
estão a aplicar com vigoroso empenho nesta terra arrasada, sob o
discurso do melhor devir? No medo do outro e no consumo per se.
À tarde odeia-se; à noite, adquire-se. De dia, o ritmo acelerado nas
ruas, a driblar as gentes “diferenciadas”; à noite, o abrigo sob a
cúpula maternal dos shoppings centers. Jean Baudrillard percebeu o fascínio exercido pelas mercadorias sobre a sociedade que (se) define como de consumo:
“As grandes lojas, com sua luxúria de conservas, roupas, produtos
alimentícios e confecção, são como a paisagem primária e o espaço
geométrico da abundância. […] Há algo mais na acumulação [amoncellement] que a soma dos produtos: a evidência do excedente [surplus], a negação mágica e definitiva da raridade”.
O ultraindivíduo é, sob quase todos os aspectos, um microindivíduo. Ele não se aprimora porque isso seria engrandecedor, mas para porque “pega bem” consultar um coach
na neocolônia (em que se articula melhor em inglês que em português).
Ele não defende a ordem por ser honesto e justo, mas para disfarçar sua
falibilidade. Ele não considera o outro, se não como meio de recompensa.
Ele prefere reproduzir o pensamento único que ser responsabilizado pela
dissensão nos grupos virtuais, onde finge se importar com os
familiares, amigos e demais conhecidos (que, assim como ele, prestam
serviço e continuam a depositar o crédito que não têm na chamada “livre
iniciativa”).
Talvez graças a sua dimensão apequenada, entre a histeria e a
resignação covarde, o ultraindivíduo permanece à espreita de qualquer
denúncia que valha para os outros (bem entendido), de modo que ele possa
externar o seu espumoso desejo de justiça, reconfortar-se como “cidadão
de bem” e coparticipar, orgulhosa e patrioticamente, da sutura do
tecido social. Em benefício próprio porque mais merece, claro esteja.
NOTAS
[1] De acordo com Noam Chomsky, o “Consenso [neoliberal] de Washington
é um conjunto de princípios orientados para o mercado, traçados pelo
governo dos Estados Unidos e pelas instituições financeiras
internacionais que ele controla e por eles mesmos implementados de
formas diversas – geralmente, nas sociedades mais vulneráveis, como
rígidos programas de ajuste estrutural” (cf. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global).
[2]
Segundo Byung-Chul Han, “[…] no regime neoliberal de autoexploração, a
agressão é dirigida contra nós mesmos. Ela não transforma os explorados
em revolucionários, mas sim em depressivos” (cf. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder).
------------------* Professor da disciplina de graduação Romance Distópico, na ECA/USP
FONTE: https://jornal.usp.br/artigos/licoes-do-romance-distopico/
Imagem da Internet
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