Ladislau Dowbor*
Uma das iniciativas importantes nesta era de crises políticas, econômicas e ambientais é a convocação, pelo Papa, de uma reunião em Assisi, na Itália, nos dias 26 a 28 de março de 2020, para repensar o papel da economia no mundo. O nome adotado foi Economia de Francisco (saiba mais), honrando o santo, e apontando para uma visão mais generosa do mundo. Considerando o comportamento das elites governamentais e corporativas atuais, tivemos a ideia de propor uma versão atualizada dos Dez Mandamentos, talvez uma inspiração para os poderosos.
(Edição apócrifa revista e atualizada para o Terceiro Milênio)
Considerando que a obediência à primeira
edição dos Dez Mandamentos tem sido aleatória, em particular no que se refere a
Não Matarás e Não Roubarás, isso sem falar do Não Cobiçarás a Mulher do Próximo
– desta vez, além de atualizar os conteúdos, houve a prudência de acrescentar a
cada Mandamento uma nota explicativa, destinada às elites impenitentes.
I – Não comprarás o Estado
Resgatar a dimensão pública do Estado: Como podemos ter mecanismos
reguladores que funcionem se é o dinheiro das corporações a regular que elege
os reguladores? Se as agências que avaliam risco são pagas por quem cria o
risco? Uma das propostas mais evidentes da última crise financeira, e que
encontramos mencionada em quase todo o espectro político, é a necessidade de se
reduzir a capacidade das corporações privadas ditarem as regras do jogo. A
quantidade de leis aprovadas no sentido de reduzir impostos sobre transações financeiras,
de reduzir a regulação do banco central, de autorizar os bancos a fazerem toda
e qualquer operação, somado com o poder dos lobbies financeiros, tornam
evidente a necessidade de se resgatar o poder regulador do estado, e para isto
os políticos devem ser eleitos por pessoas de verdade, e não por pessoas
jurídicas, que constituem ficções em termos de direitos humanos. Enquanto não
tivermos financiamento público das campanhas, políticos que representem os
interesses dos cidadãos, prevalecerão os interesses econômicos de curto prazo e
a corrupção. Veja regulamentação em O
Estado Empreendedor.
II – Não Farás
Contas erradas
As contas têm de refletir os objetivos que visamos. O
PIB indica a intensidade do uso do aparelho produtivo, mas não nos
indica a utilidade do que se produz, para quem, e com que custos para o
estoque de bens naturais de que o planeta dispõe. Contamos como aumento
do PIB os desastres ambientais, o aumento de doenças, o cerceamento de
acesso a bens livres, o comércio de drogas. O IDH já foi um imenso
avanço, mas temos de evoluir para uma contabilidade integrada dos
resultados efetivos dos nossos esforços, e particularmente da alocação
de recursos financeiros, em função de um desenvolvimento que não seja
apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e
ambientalmente sustentável. As metodologias existem, aplicadas
parcialmente em diversos países, setores ou pesquisas. A adoção em todos
as cidades de indicadores locais de qualidade de vida tornou-se hoje
indispensável para que seja medido o que efetivamente interessa: o
desenvolvimento sustentável, o resultado em termos de qualidade de vida
da população. Muito mais do que o output, trata-se de medir o outcome. A recente Economia Donut ajuda muito .
III – Não Reduzirás o Próximo à
Miséria
Algumas coisas não podem faltar a ninguém. A pobreza
crítica é o drama maior, tanto pelo sofrimento que causa em si, como
pela articulação com os dramas ambientais, o não acesso ao conhecimento,
a deformação do perfil de produção que se desinteressa das necessidades
dos que não têm capacidade aquisitiva. Os custos de se tirar da miséria
e da pobreza a massa de pessoas que vivem situações dramáticas são
ridículos, frente aos custos adicionais que a desigualdade gera. E são
custos ridículos quando se considera os trilhões transferidos para
grupos econômicos financeiros no quadro da última crise financeira. O
benefício ético é imenso, pois é inaceitável morrerem de causas
ridículas milhões de crianças por ano. O benefício de curto e médio
prazo é grande, na medida em que os recursos direcionados à base da
pirâmide dinamizam imediatamente a pequena e média empresa, agindo como
processo anticíclico, como se tem constatado nas políticas sociais de
muitos países. No mais longo prazo, será uma geração de crianças que
terão sido alimentadas decentemente, o que se transforma em melhor
aproveitamento escolar e maior produtividade na vida adulta. A teoria
tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda, é simplesmente
desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, e o dinheiro é
simplesmente mais útil onde é mais necessário. O dinheiro na mão do
pobre vira consumo, produção e emprego. Na mão do rico vira dívida
pública e conta no Panamá. Veja País Estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras , Oxfam.
IV – Não Privarás Ninguém do Direito de
Ganhar o seu Pão
Universalizar a garantia do emprego é viável. Toda
pessoa que queira ganhar o pão da sua família deve poder ter acesso ao
trabalho. Num planeta onde há um mundo de coisas a fazer, inclusive para
resgatar o meio ambiente, é absurdo o número de pessoas sem acesso a
formas organizadas de produzir e gerar renda. Temos os recursos e os
conhecimentos técnicos e organizacionais para assegurar, em cada vila ou
cidade, acesso a um trabalho decente e socialmente útil. As
experiências de Maharashtra na Índia demonstraram a sua viabilidade,
como o mostram as numerosas experiências brasileiras, sem falar no New
Deal da crise dos anos 1930. São opções onde todos ganham: o município
melhora o saneamento básico, a moradia, a manutenção urbana, a
policultura alimentar. As famílias passam a poder viver decentemente; e a
sociedade passa a ser melhor estruturada e menos tensionada. Os gastos
com seguro-desemprego se reduzem. No caso indiano, cada vila ou cidade é
obrigada a ter um cadastro de iniciativas intensivas em mão de obra.
Dinheiro emprestado ou criado desta forma representa investimento,
melhoria de qualidade de vida, e dá excelente retorno. E argumento
fundamental: assegura que todos tenham o seu lugar para participar na
construção de um desenvolvimento sustentável. Na organização econômica,
além do resultado produtivo, é essencial pensar no processo estruturador
da sociedade, através da inclusão produtiva. A dimensão de geração de
emprego de todas as iniciativas econômicas tem de se tornar critério
central. Veja o relatório da OIT Trabalhar para um futuro mais prometedor .
V – Não Trabalharás Mais de Quarenta
Horas
Podemos trabalhar menos, e trabalharemos todos, com tempo para fazermos mais coisas interessantes na vida. A
sub-utilização da força de trabalho é um problema planetário, ainda que
desigual na sua gravidade. No Brasil, o setor informal situa-se na
ordem de 40% da PEA. Uma imensa parte da nação “se vira” para
sobreviver. Somando com 13 milhões de desempregados, são 50 milhões de
pessoas. No lado dos empregos de ponta, as pessoas não vivem por excesso
de carga de trabalho. Não se trata aqui de uma exigência de luxo: são
incontáveis os suicídios nas empresas onde a corrida pela eficiência se
tornou simplesmente desumana. O stress profissional está se
tornando uma doença planetária, e a questão da qualidade de vida no
trabalho passa a ocupar um espaço central. A redistribuição social da
carga de trabalho torna-se hoje uma necessidade. As resistências são
compreensíveis, mas a realidade é que com os avanços da tecnologia os
processos produtivos tornam-se cada vez menos intensivos em mão de obra,
e reduzir a jornada é uma questão de tempo. A redução da jornada não
reduzirá o bem-estar ou a riqueza da população, e sim a deslocará para
novos setores mais centrados no uso do tempo livre, com mais atividades
de cultura e lazer. Não precisamos necessariamente de mais carros e de
mais bonecas Barbie, precisamos sim de mais qualidade de vida. Veja o
livro O pão nosso de cada dia: processos produtivos no Brasil.
VI – Não Organizarás a Tua Vida em Função do Dinheiro
A mudança de comportamento, de estilo de vida, não constitui um sacrifício, e sim um resgate do bom senso. Neste
planeta de 7,8 bilhões de habitantes, com um aumento anual da ordem de
80 milhões, toda política de bom senso envolve também uma mudança de
comportamento individual e da cultura do consumo. O respeito às normas
ambientais, a moderação do consumo, o cuidado no endividamento, o uso
inteligente dos meios de transporte, a generalização da reciclagem, a
redução do desperdício – há um conjunto de formas de organização do
nosso cotidiano que passa por uma mudança de valores e de atitudes
frente aos desafios econômicos, sociais e ambientais. Hoje 95% dos
domicílios no Brasil têm televisão, e o uso informativo inteligente
deste e de outros meios de comunicação tornou-se fundamental. Frente aos
esforços necessários para reequilibrar o planeta, não basta reduzir o
martelar publicitário que apela para o consumismo desenfreado, é preciso
generalizar as dimensões informativas dos meios de comunicação. A mídia
científica praticamente desapareceu, os noticiários navegam no atrativo
da criminalidade, quando precisamos vitalmente de uma população
informada sobre os desafios reais que enfrentamos. Grande parte da
mudança do comportamento individual depende de ações públicas: as
pessoas não deixarão o carro em casa (ou deixarão de tê-lo) se não
houver melhor transporte público, não farão reciclagem se não houver
sistemas adequados de coleta. Precisamos de uma política pública de
mudança do comportamento individual. Veja A terra inabitável.
VII –
Não Ganharás Dinheiro com o Dinheiro dos Outros
Racionalizar os sistemas de intermediação financeira é viável.
A alocação final dos recursos financeiros deixou de ser organizada em
função dos usos finais de estímulo e orientação de atividades econômicas
e sociais, para obedecer às finalidades dos próprios intermediários
financeiros. A atividade de crédito é sempre uma atividade pública, seja
no quadro das instituições públicas, seja no quadro dos bancos privados
que trabalham com dinheiro do público, e que para tanto precisam de uma
carta-patente que os autoriza a ganhar dinheiro com dinheiro dos
outros. A crise financeira de 2008 no plano internacional, e a crise
brasileira a partir de 2014 demonstraram com clareza o caos que gera a
ausência de mecanismos confiáveis de regulação no setor. O dinheiro não é
mais produtivo onde rende mais para o intermediário: devemos buscar a
produtividade sistêmica de um recurso que é público. A intermediação
financeira é um meio, não é um fim. A intermediação financeira com juros
extorsivos apenas gera uma pirâmide especulativa e insegurança, além de
desorganizar os mercados e as políticas econômicas. Leia A era do capital improdutivo.
VIII – Não Tributarás as Ações que mais nos
Ajudam
A filosofia do imposto, de quem se cobra, e a quem se aloca, precisa ser revista.
Uma política tributária equilibrada na cobrança, e reorientada na
aplicação dos recursos, constitui um dos instrumentos fundamentais de
que dispomos, sobretudo porque pode ser promovida por mecanismos
democráticos. O eixo central não está na redução dos impostos, e sim na
cobrança socialmente mais justa e na alocação mais produtiva em termos
sociais e ambientais. A taxação das transações especulativas (nacionais
ou internacionais) deverá gerar fundos para financiar uma série de
políticas essenciais para o reequilíbrio social e ambiental. O imposto
sobre grandes fortunas é hoje essencial para reduzir o poder político
das dinastias econômicas (1% das famílias do planeta detém mais riqueza
do que os 99% seguintes). O imposto sobre a herança é fundamental para
dar chances a partilhas mais equilibradas para as sucessivas gerações. É
importante lembrar que as grandes fortunas do planeta em geral estão
vinculadas não a um acréscimo de capacidades produtivas, e sim à
aquisição maior de empresas por um só grupo, gerando uma pirâmide cada
vez mais instável e menos governável de propriedades cruzadas, impérios
onde a grande luta é pelo controle do poder financeiro, político e
midiático, e a apropriação de recursos naturais. O sistema tributário
tem de ser reformulado no sentido anticíclico, privilegiando atividades
produtivas e penalizando as especulativas; no sentido do maior
equilíbrio social ao ser fortemente progressivo; e no sentido de
proteção ambiental ao taxar emissões tóxicas ou geradoras de mudança
climática, bem como o uso de recursos naturais não renováveis. O poder
redistributivo do Estado é grande, tanto pelas políticas que executa –
por exemplo as políticas de saúde, lazer, saneamento e outras
infra-estruturas sociais que melhoram o nível de consumo coletivo – como
pelas que pode fomentar, como opções energéticas, inclusão digital e
assim por diante. A democratização aqui é fundamental. A apropriação dos
mecanismos decisórios sobre a alocação de recursos públicos está no
centro dos processos de corrupção, envolvendo as grandes bancadas
corporativas, por sua vez ancoradas no financiamento privado das
campanhas. Leia Democracia Econômica.
IX – Não Privarás o Próximo do Direito
ao Conhecimento
Travar o acesso ao conhecimento e às tecnologias sustentáveis não faz o mínimo sentido.
A participação efetiva das populações nos processos de desenvolvimento
sustentável envolve um denso sistema de acesso público e gratuito à
informação necessária. A conectividade planetária que as novas
tecnologias permitem constitui uma ampla via de acesso direto. O
custo-benefício da inclusão digital generalizada é simplesmente
imbatível, pois é um programa que desonera as instâncias administrativas
superiores, na medida em que as comunidades com acesso à informação se
tornam sujeitos do seu próprio desenvolvimento. A rapidez da apropriação
deste tipo de tecnologia até nas regiões mais pobres se constata na
propagação do celular e das plataformas colaborativas. O impacto
produtivo é imenso para os pequenos produtores que passam a ter acesso
direto a diversos mercados tanto de insumos como de venda, escapando aos
diversos sistemas de atravessadores comerciais e financeiros. A
inclusão digital generalizada permite destravar um conjunto de processos
de mudança que hoje se tornam indispensáveis. A criação de redes de
núcleos de fomento tecnológico online, com ampla capilaridade, pode se
inspirar da experiência da Índia, onde foram criados núcleos em
praticamente todas as vilas do país. É particularmente importante a
flexibilização de patentes no sentido de assegurar ao conjunto da
população mundial o acesso às informações indispensáveis para as
mudanças tecnológicas exigidas por um desenvolvimento sustentável. Leia
A sociedade de custo marginal zero .
X – Não Controlarás a Palavra do Próximo
Democratizar a comunicação tornou-se essencial. A
comunicação é uma das áreas que mais explodiu em termos de peso relativo
nas transformações da sociedade. Estamos em permanência cercados de
mensagens. As nossas crianças passam horas submetidas à publicidade
ostensiva ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantástica
concentração internacional e nacional – e a sua crescente interação
entre os dois níveis – gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um
consumismo obsessivo que reforça o elitismo, as desigualdades, o
desperdício de recursos como símbolo de sucesso. O espectro
eletromagnético em que estas mensagens navegam é público, e o acesso a
uma informação inteligente e gratuita para todos é simplesmente viável.
Expandindo gradualmente as inúmeras formas alternativas de mídia que
surgem por toda parte, há como introduzir uma cultura nova, outras
visões de mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em
vez de fundamentalismos religiosos ou comerciais. Leia IHU, Outras Palavras, Carta Maior, Diplô, GGN, Diálogos do Sul, Brasil 247, Guardian, Intercept e outras tantas fontes confiáveis de informação.
O copyright da presente edição
revista e ampliada dos Dez Mandamentos é aberto, na linha do Creative Commons. Sendo
o Alto Secretariado hoje bem equipado, dispondo das mídias sociais mais
avançadas, os que por acaso tenham dificuldades técnicas na aplicação da
presente versão dos Mandamentos, poderão recorrer a textos de Exegese no blog http:///dowbor.org. Ignacy Sachs, Carlos Lopes e
Ladislau Dowbor expressaram aqui transcrições pessoais, e as pessoas que
encontrem dificuldades políticas na aplicação dos presentes Mandamentos deverão
dirigir as suas reclamações às Instâncias Superiores. Sim, as leituras aqui
recomendadas mencionam apenas os títulos, sem os autores. Na era da internet,
procure, e acharás.
PS: Respeitarás a mulher, e não apenas a do próximo.
------------------
*Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de
Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de
Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é
professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e
administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas
agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias
organizações do sistema “S” (Sebrae e outros). Atua como Conselheiro no Instituto Polis, IDEC, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outras instituições.
Fonte: http://dowbor.org/2019/09/os-dez-mandamentos-versao-atualizada-para-elites.html/
Nenhum comentário:
Postar um comentário