Contra a destruição da universidade pública
1.
Lula declarou não ter medo dos reitores; não foram eles que lhe
teriam mordido o dedo que perdera em uma fábrica. A declaração parece
estapafúrdia. Os reitores não expressam hoje nenhuma resistência
especial ao governo, nem se posicionam como seus principais adversários,
como se estivessem na linha de frente do combate à política do governo
para a educação superior. Lula pareceria estar, assim, chamando para a
briga quem está tão somente disposto a colaborar.
Caberia até duvidar que um político experiente a tenha proferido,
sobretudo estando na condição de presidente – como duvidamos um dia que
um ministro da educação pudesse dizer que as universidades eram lugar da
balbúrdia. Na verdade, o contexto da fala, ao assistirmos o vídeo,[i]
dá a entender algo bem diverso. Ele simplesmente não se constrangeria
com reitores, não se incomodaria em recebê-los e, à diferença do
inominável antecessor, já o teria feito mais de uma vez, não tendo
ademais motivo algum para ter raiva dos reitores, que, afinal, não lhe
arrancaram o dedo.
Em suma, Lula não estava confrontando os reitores, nem os chamava
para uma briga. A fala é bem mais clara e generosa que sua transcrição
inquinada, embora a frase continue sendo infeliz. E não há contexto que a
redima por completo, sendo, ademais, triste a constatação: Lula, que,
para tantos de nós, vocaliza a esperança, passa agora a incluir a
palavra “medo” em seu discurso – no caso, um medo que ele certamente não
precisaria nem deveria ter, mas que nos obriga à reflexão, pois, como
já se disse, as palavras não caem no vazio.
Em sendo assim, outra questão se impõe. As universidades têm motivo
para ter medo de Lula? Parece também que não. Afinal de contas, a
comunidade universitária não se arrepende de, em ampla maioria,[ii] ter apoiado sua eleição, nem se constrange pelos muitos títulos de doutor honoris causa que
lhe foram concedidos. Não esquece, entre diversos aspectos, a expansão
das universidades, o apoio às ações afirmativas; não esquece os recursos
destinados às ciências e à cultura. Além de tudo, é cristalina a
certeza de não haver termo de comparação entre o eventual erro que ele
possa cometer em atos e falas e o puro lixo obscurantista que derrotamos
e tudo faremos para que não retorne.
Feita essa ponderação, temos, contudo, muitos motivos para temer,
sim, ameaças que continuam a tomar corpo inclusive no atual governo.
Continua em curso e é acelerado um processo de destruição da
universidade pública tal como a conhecemos ou, melhor ainda, como a
desejamos, enquanto parte essencial de um projeto de nação soberana e
radicalmente democrática. Os sinais são muitos, alguns antigos, enquanto
outros tornam-se agora mais fortes. Vejamos brevemente alguns desses
traços.
2.
A universidade tem se desfigurado como lugar de produção autônoma de
ciência, cultura e arte, de modo que se amesquinha por muitas formas.
Nesse sentido, já foram feitos alguns importantes diagnósticos, que bem
podemos considerar complementares.
Por exemplo, ao longo de décadas, Marilena Chauí tem insistido na
corrosão interna da universidade, que ora se transformaria em
operacional. Sua reflexão é, sem dúvida, uma das mais consistentes
contribuições intelectuais a esse respeito, flagrando razões externas e
internas à degradação da essência mais virtuosa da universidade.
A universidade operacional seria, em suas palavras, “a expressão mais
alta do neoliberalismo”. Enquanto tal, ela promove a substituição da
criação acadêmica pelo simples produtivismo, subordina o interesse geral
do conhecimento ao interesse privado, demole, enfim, o processo de
formação, uma vez que transforma a pesquisa em quase o seu contrário,
pois esta, em tal ambiente, deixa de ser “a busca daquilo que não foi
pensado ainda e daquilo que precisa e pode ser pensado, mas se torna
resolução de problemas empresariais”.[iii]
Competição, privatização, rebaixamento de horizontes, tudo isso
constrói um cenário demolidor de uma universidade que deveria ser
sobretudo crítica, de modo que, para nos contrapormos a essa corrente
avassaladora, precisaríamos reiterar nosso compromisso mais radical com a
liberdade.
Tendo em conta que Marilena Chauí é uma referência intelectual que
Lula jamais ignoraria, haveríamos de imaginar que, em tese, sua política
para a educação superior não levaria água para o moinho de tal
destruição. Não é, porém, o que temos visto, sobretudo se tomamos a
universidade por seu funcionamento mais estrutural.
Ao longo do tempo, tem sido enfraquecida a estrutura administrativa
das universidades. Podemos falar de uma universidade que ora padece os
efeitos deletérios de uma precarização do trabalho – uma terceirização
extensiva, que, por enquanto, só não atinge inteiramente o quadro
docente. Não obstante, temos, sim, uma brutal diferença na carreira que
precariza o trabalho dos docentes que ingressaram mais recentemente na
universidade, assim como tem se descuidado da situação dos aposentados,
que veem diminuídos seus rendimentos.[iv]
Além de tal enfraquecimento, o orçamento das universidades tem
padecido na última década uma redução significativa, tanto em recursos
de capital (que podem ter agora alguma reversão com o PAC, mas isso
seletivamente e por escolhas não necessariamente feitas pelas próprias
universidades), quanto em recursos discricionários de custeio. O absurdo
atual está no fato de que o orçamento destinado à gestão dos campi pelas administrações centrais não cresceu e é flagrantemente insuficiente.
Por outro lado, têm afluído recursos de diversos ministérios (em
especial, do Ministério da Educação), mas na forma de termos de execução
descentralizada (TEDs). Com isso, o recurso comum não cresce, ao tempo
que se amplia o volume de recursos por meio dos quais a universidade
passa a ser contratada.[v]
É dupla, então, a condenação dos nossos reitores e respectivas
administrações centrais. Por um lado, eles se tornam maus síndicos, uma
vez que não têm recursos para garantir o funcionamento adequado de
nossos campi. Por outro lado, eles passam a fazer a mediação
entre os interesses parciais do governo e os interesses ainda mais
particulares de grupos ou indivíduos que são contratados e devem
doravante entregar produtos – cabendo aqui, é claro, ter a confiança de
que tais procedimentos, sendo lícitos como não poderiam deixar de ser,
sejam também corretos, algo que somente um adequado acompanhamento e
total transparência podem garantir.
O risco na hipertrofia desses dois papéis é claro. A universidade, de
forma brutal, conquanto possa ter um volume significativo de recursos,
passa a ser uma prestadora de serviços e não lugar autônomo de ensino,
pesquisa e extensão, com o agravante de que tais contratações costumam
escapar da gestão direta da universidade e de seus mecanismos de
controle, sendo amiúde geridas através das fundações.
3.
Esses dois papeis (de síndico e de mediador), salvo melhor juízo,
comprometem a autonomia da instituição, seu brilho e valor, além de
amesquinharem o lugar dos reitores. E não se trata de um mero poder
pessoal, que é quase um poder nenhum, mas sim do simbolismo de uma
instituição que é o espaço do pensamento crítico, dependendo assim para
sua proteção e realização de uma efetiva capacidade de gestão
administrativa autônoma da universidade.
Não posso deixar de mencionar o simbolismo. Não se trata, insisto, do
poder hierárquico do reitor, mas sim da própria expressão de uma
instituição cuja medida é o conhecimento e cujo tempo é a longa duração.
Apenas nesse sentido o cargo de reitor pode ter uma solenidade própria.
Tem sido assim em nossa história e é preciso que assim o seja, de modo
que possa resistir também por seus gestos e por sua palavra a qualquer
ataque desferido contra a aura e a autonomia da universidade e, de modo
prático, possa ser defendido todo e qualquer membro da comunidade que
esteja no exercício da produção e transmissão de conhecimento, com
liberdade plena.
Enfraquecida a administração e reduzido o corpo técnico da
universidade, é natural a dificuldade que as instituições tiveram, por
exemplo, para cuidar do volume de licitações no período do REUNI, assim
como a têm ainda para a gestão cotidiana de obras e manutenção. Agora,
porém, fazendo da necessidade virtude, algumas universidades decidiram
passar a gestão de mais recursos para as fundações – o que, todavia,
compromete ainda mais uma capacidade administrativa já abalada.
Assim, além de cuidarem de um orçamento global de projetos que, em
certos casos, é superior ao orçamento discricionário sob a
responsabilidade de suas pró-reitorias de planejamento e administração,
as fundações passam a competir diretamente com a administração central.
Alguns podem dizer, amparados em consultas às suas respectivas
procuradorias, que tal passagem de recursos destinados a obras e
serviços para as fundações (outrora restritas ao apoio da pesquisa e da
extensão) é algo plenamente lícito. Devemos lembrar, contudo, os riscos
de um procedimento tornado abusivo – à semelhança do açúcar, que é uma
droga lícita, mas cujo consumo excessivo, como bem sabemos, faz muito
mal à saúde.
Aliás, apesar de sua inanição teórica, o gerencialismo como filosofia
administrativa parece também cada vez mais vigente, sendo desprovido de
uma reflexão que vá além da reiteração dos resultados ou, por vezes, da
defesa do conforto mais individual do emprego. Por vezes, com um
discurso de modernização, de utilização de tecnologias e, sobretudo, de
eficiência, vemos bordões liberais antigos sendo assumidos como se
fossem de esquerda, horribile dictu, uma esquerda neoliberal.
Com isso, quebra-se em muito o alicerce da cidadania universitária,
retirando-se da instituição as condições de conformação de um espírito
de corpo cujo fundamento em muito depende da presença e do convívio, bem
como de certos procedimentos por vezes morosos, pacientes, como
paciente deve ser a vida do conceito.
Parece-nos óbvio também que o enfraquecimento da administração direta
e de sua necessária orientação por um planejamento associado às
atividades finalísticas da instituição, mesmo quando amparado em suposta
licitude e feito em nome da eficiência, pode causar danos estruturais à
autonomia das universidades. Afinal, se outrora temíamos que as
fundações funcionassem como uma espécie de puxadinho das universidades,
cabe temer agora que as universidades se tornem um puxadinho das
fundações.
Em se consolidando tal processo, veremos esvaziada a relação entre
meios e fins da universidade pública, o modo interno e singular por que
se relacionam as formas de gestão e os interesses da autonomia
acadêmica. Com isso, ao fim e ao cabo, o planejamento será simplesmente
determinado pela administração, como se fôssemos uma repartição pública a
mais.
Os números devem falar mais alto que qualquer consideração abstrata.
Que se vejam os relatórios das universidades e das fundações. Os dados
são públicos e claros, mostrando as distorções de papeis, com a plena
vigência de mecanismos que só podem agradar a quem considera que as
universidades não são um valor como um todo e devem ser apenas
solicitadas a colaborar em projetos de interesse imediato dos
governantes ou ainda do legislativo, sem que estejam garantidos o
interesse precípuo da formação, a liberdade de pesquisa, a equanimidade
entre as áreas e, enfim, o fortalecimento de sua representação coletiva.[vi]
4.
A situação parece-nos, sim, grave e ameaçadora. Tempos atrás,
confrontados que fomos com a situação dos hospitais universitários, foi
apresentada (e, em alguns casos, empurrada goela abaixo) a proposta de
transferência de sua administração para a Empresa Brasileira de Serviços
Hospitalares (EBSERH). Às universidades continuaria a caber a indicação
dos superintendentes, bem como, em tese, teriam a garantia de os
hospitais se destinarem não apenas à assistência, mas sobretudo e
condicionalmente à pesquisa e ao ensino.
Tendo sido correto ou não tal processo, não se pode voltar atrás
nesse caso. Criar uma empresa não era a única forma de atender à
exigência do TCU de eliminar a terceirização que estava se dando via
fundações de apoio. O resultado agora não pode mais ser desfeito. As
vantagens de gestão são muitas, os recursos são deveras mais abundantes e
avanços na eficiência se verificaram, ao preço, todavia, de uma dura
realidade que tampouco pode ser desconhecida, como pressão acentuada da
assistência e uma progressiva diminuição da importância dos quadros
remanescentes das universidades.
Entretanto, aquilo que poderia até ser debatido no caso desses
equipamentos específicos, os hospitais universitários, não pode nem deve
jamais estender-se às próprias universidades. A ocorrência pura e
simples da palavra “medo” faz, porém, despertar muitos fantasmas.
Será que, nesse contexto de diminuição da aura da instituição e de
aprisionamento de seu orçamento a interesses externos ou parciais, algum
iluminado não aparecerá com solução de uma Empresa Brasileira de
Serviços Universitários, uma EBSERU? Os reitores poderiam talvez
tornar-se uma espécie de superintendentes (decerto indicados por suas
comunidades e com uma gratificação de fazer inveja), mas ao preço de uma
subordinação da instituição a princípios de gestão e a interesses que
escapam à autonomia universitária? Não seria a contratação de serviços
mais fácil e generalizada nesses casos, sem controle além dos próprios
resultados e arrumando assim a vida de muitas pessoas?
Se acaso podia ser discutida uma tal empresa no caso dos hospitais,
para as universidades ela seria o mais puro pesadelo. Que a questão
possa ocorrer nessa forma agora fantasiosa, isso se deve a que talvez já
estejamos sorvendo aos poucos desse fel, de sorte que, mesmo sendo
absurdas, propostas equivalentes (como um todo ou em pedaços) podem vir a
sair de dentro de alguma gaveta, na qual já podem estar sendo curadas.
O terrível, portanto, é esse cenário de ficção, essa distopia, já não
parecer distante da realidade, ou seja, que tal ameaça, mesmo sendo
improvável, tenha deixado de ser uma mera alucinação. Precisamos, então,
combatê-la em sua origem, em seus mínimos indícios, mesmo enquanto
apenas na fantasia; combater tantos os desvios concretos quanto as mais
fantasmagóricas possibilidades, identificando todos os vestígios ora
presentes de enfraquecimento da administração, sem que fiquemos
simplesmente satisfeitos pela eventual abundância de recursos, caso não
estejam garantidos os destinados ao interesse comum do ensino, da
pesquisa e da extensão.
5.
Não só para tornar-se “operacional”, a universidade tem avançado
profundamente na precarização dos trabalhos, assumindo sua vida
ordinária a lógica própria da terceirização. Em um cenário assim,
devemos convir, o programa Future-se pode ter sido um mero
ensaio de amadores. Aliás, em minha experiência na instituição, nos
diálogos que pude ter quando um governo fascistóide tentou impingir-nos a
proposta, identifiquei adeptos do Future-se em lugares os mais
improváveis. Diziam, por vezes, a proposta é um absurdo, mas essa ou
aquela ideia poderia ser aproveitada. E tais adeptos, parece-me agora,
agem ainda, sorrateiramente ou em gestos largos.
Tenho convicção de que Lula não tem em conta esses aspectos ao
admoestar reitores e grevistas. Em sendo assim, mais que a um cálculo de
reposição salarial, mais que a uma conta orçamentária, precisamos
chamar sua atenção para o fato de que a universidade precisa reagir a
ameaças. E Lula tem papel essencial nisso tudo, caso lembre, como tem
tudo para lembrar, que a universidade não é mesmo lugar de fazer medo,
mas sim de trazer esperança e de cultivar a liberdade.
Cabe-nos, sim, chamar o governo (ao menos, na parte que congrega
progressistas que respeitam a universidade) a combater procedimentos, a
recusar mecanismos que ora tendem a submeter o orçamento da universidade
a interesses que escapam ao controle e ao bem mais comum – não sendo de
descartar, inclusive, a possibilidade de que, em tal cenário
desordenado, o uso de alguns recursos se mostre incompatível com os
princípios mais elevados da gestão pública ou do interesse estritamente
acadêmico.
Nesse momento, é preciso que, para além das justas reivindicações
salariais e orçamentárias, os atores principais da cena universitária
coloquem na mesa a própria natureza e essência da universidade e a
defendam. Que a ANDIFES, por exemplo, brigue por condições para que sua
matriz orçamentária possa ser rodada, e não aceite simplesmente, como se
fora uma lei da natureza, que TEDs e emendas parlamentares se avolumem
descontroladamente.
Que também reponha o debate sobre a lei orgânica e a autonomia da
universidade. Que, com isso, esteja irmanada à mobilização das diversas
entidades da educação e de cada universidade, de sorte que esse debate
urgente perpasse nossos órgãos colegiados e mesmo nossas assembleias.
Não há, afinal, vida universitária nem capacidade de resistência, se a
rotina burocrática e os procedimentos gerenciais assumem o lugar da
mobilização democrática de docentes, técnicos e estudantes, em todas as
formas possíveis.
Precisamos de algum refinamento crítico e muita mobilização coletiva,
em uma luta que também ela é de longa duração. A universidade é lugar
de diálogo e crítica, bem como do permanente ativismo de docentes,
técnicos e estudantes. Não deveria ser um simples emprego, mas sim uma
vocação. Com tal empenho, podemos identificar e combater melhor, para
além do imediato, as formas mais mesquinhas de uma agressiva razão
instrumental, que pode assumir as faces do liberalismo, do fordismo ou
do mais abjeto pragmatismo em nossas relações, minando a própria
natureza da instituição.
Não podemos esquecer. A universidade conseguiu unir-se diante de
absurdo obscurantista do governo anterior. Não pode falhar agora. Nos
anos vindouros, deve resistir aos encantos mais imediatos, em meio a um
ambiente mais progressista, no qual, todavia, também proliferam
conservadores, reacionários e, com grande galhardia, carreiristas
interesseiros.
Não se trata, pois, de resistir apenas às ameaças externas. Devemos
combater os gestos internos de cumplicidade com o absurdo. Afinal de
contas, membros de nossa comunidade podem vir a ser cúmplices de uma
destruição com a melhor das retóricas, cujas justificativas costumam ser
típicas, tais como eficiência, agilidade, mais recursos, economicidade.
E dirão ainda, como se fora um consolo, que os prejuízos atuais serão
mínimos ou talvez sejam pagos apenas pelas futuras gerações. Exatamente
as gerações que são o cerne de nosso compromisso social.
Sejamos otimistas. Contaremos nessa luta com muitos aliados,
inclusive com Lula, se ele está disposto a se pôr, como é do seu perfil,
como um militante da liberdade. Aliás, podemos bem imaginar: Lula é tão
sagaz que, sem querer, em uma fala desastrada, trouxe à baila algo que
deve incomodá-lo inconscientemente. Como alguém que apostou e aposta nas
universidades, talvez ele próprio esteja decepcionado com quem acaso
estiver sendo cúmplice de um mecanismo indesejável ou da degradação,
inclusive salarial, de nosso ambiente de trabalho.
Como um sindicalista, talvez esteja insatisfeito com algumas
manifestações superficiais ou ostensivas de sabujice que pode ter
presenciado. Quem sabe, ao fim e ao cabo, ele não está, em sua
inadvertida sabedoria, incomodado com os rumos atuais da educação.
Deveria estar, com certeza.
Toda manifestação pública, qualquer o assunto, deve ser sopesada e
pode ser bastante custosa, não nos cabendo a bravata de nos dizermos
corajosos. Ao contrário. Sabemos bem que o medo não diminui a dignidade
do ato que se faz necessário. Não podemos assim deixar de temer o quadro
atual nem as implicações de qualquer fala que indigite mesmo as mazelas
mais flagrantes. Apenas não podemos silenciar, e em nossa voz coletiva
desenha-se a promessa, a esperança.
Não podemos renunciar à nossa condição de professores e de membros da
comunidade universitária; não podemos abrir mão da própria
universidade, que, afinal de contas, é nosso horizonte e nossa razão de
ser. Recorrendo a uma bela imagem de Borges, a universidade é nosso
centro, nossa álgebra; e a vida não teria para nós o menor sentido sem
sua permanente defesa.
*João Carlos Salles é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Ex-reitor da UFBA e ex-presidente da ANDIFES.
Notas
[i] O vídeo está disponível na matéria “Lula diz não temer reitores: ‘Dedo que falta não foram eles que morderam’” (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/06/22/lula-reitores-greve-universidades-federais-dedo-medo.htm). A transcrição da Folha, bem como a de O Globo (https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/06/21/lula-se-queixa-de-greve-das-federais-e-diz-que-nao-tem-medo-de-reitores-este-dedo-nao-foram-eles-que-morderam.ghtml), é quase de má fé, procura o escândalo, mas o vídeo restabelece o sentido, sendo este bem mais sutil.
[ii]
Em sua ampla maioria, sem que estejam, por isso, sob o domínio da
esquerda, como costumam pensar seus aliados e também seus detratores.
“Esse foi sempre o fantasma útil da repressão” – como bem o afirma Muniz
Sodré. “A realidade se matiza por silenciosa maioria conservadora, uma
coorte de progressistas (centro-esquerda, social-democracia) e nichos
convictos das utopias religiosamente reveladas pelo determinismo
histórico.” Muniz Sodré, “Direita, volver”, Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2024 (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/muniz-sodre/2024/06/direita-volver.shtml).
[iii] Marilena Chauí, “A universidade operacional” (https://aterraeredonda.com.br/a-universidade-operacional/).
Cabe observar que a pressão da privatização não corre em uma linha
paralela, podendo atropelar de dentro a educação pública. De todo modo,
tais pressões insidiosas dão-se em um cenário no qual cerca de 90% das
instituições de “educação superior” são privadas. E, com as exceções de
praxe, elas não se conformam em universidades, cujas exigências não
conseguem satisfazer, tomando assim a forma sobretudo de faculdades, sem
compromisso com os laços internos entre ensino, pesquisa e extensão,
além de avançarem no formato de uma educação à distância deficiente, uma
vez que sem lastro em autênticas universidades.
[iv]
Precarização do trabalho e, também, quebra de uma solidariedade
intergeracional, para retomar uma preciosa colocação de Roberto Leher,
in “A greve das Universidades e Institutos Federais” (https://aterraeredonda.com.br/a-greve-das-universidades-e-institutos-federais/).
[v]
Chamamos a atenção para esse fenômeno de desagregação da universidade,
em relação ao qual a própria instituição pode manter uma indesejável
cumplicidade, no texto “A mão de Oza” (https://aterraeredonda.com.br/a-mao-de-oza/).
[vi]
As fundações podem ser sérias, sem dúvida. Dou aqui meu enfático
testemunho da seriedade, por exemplo, de nossa FAPEX, da qual um dia fui
presidente de seu Conselho Deliberativo. Entretanto, simplesmente não
cabe a uma fundação estabelecer os procedimentos de controle, segundo
padrões adequados à dimensão propriamente acadêmica, nem tal controle
pode ou deve escapar à própria universidade – por vezes, pela pura e
simples ausência da devida regulação por seus conselhos superiores.
Fonte: https://aterraeredonda.com.br/o-medo-e-a-esperanca-2/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-06-24