domingo, 16 de junho de 2024

Monogamia é puxada pela colonização e marcada por religião e economia, dizem pesquisadores

Por Renata Moura* Natal (RN)

Duas escovas de dente frente a frente no mesmo pote
 Vladimir Bikhovskiy/adobe stock

Definições sobre herança e controle de povos indígenas orientaram a instauração do regime como forma dominante de se relacionar


Mesmo para os pesquisadores, a pergunta "de onde vem a monogamia?" pode assustar. A psicanalista e doutora em sociologia Mônica Barbosa é direta ao replicar: "Como se diz na Bahia, quem souber essa resposta morre", diz, usando uma expressão local para algo difícil de explicar.

A origem, longe de ser natural ou romântica, está, segundo estudiosos, muito mais relacionada a interesses religiosos, econômicos e de dominação. "Não há consenso científico sobre a monogamia, mas uma série de teses sobre o seu surgimento. E não é possível pensar na consolidação dela sem considerar o que chamamos de modernidade, um período longo, dos últimos 500 anos, marcado pelo colonialismo, pela hegemonia da cultura cristã, e que tem o capitalismo como base", diz Barbosa.

A socióloga, parte do grupo Afetos, Políticas e Sexualidades Não-Monogâmicas, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), observa que "a monogamia é a norma" e está longe de ser "uma moda que passou".

"Temos uma produção cultural massiva que nos induz a pensar que podemos viver um único amor de cada vez. Além disso, temos um regime político, econômico e social que favorece as relações monogâmicas. O status social do casamento, da família, os financiamentos que você consegue fazer em casal, o aluguel que você divide, a sensação de amparo, num Estado que não nos ampara. A lista de ilusões é longa."

O relacionamento romântico e sexual com um único parceiro ou parceira compõem, segundo a professora do Instituto de Psicologia da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Edna Ponciano, uma configuração normativa que surge com o Estado moderno e com a preocupação de manter a ordem social e econômica, restringindo a herança a um contrato matrimonial.

"Ela é associada a valores éticos e morais. Pode funcionar, mas nem sempre. O amor romântico com a exigência de exclusividade não funcionam para todo mundo", diz, apontando que o maior problema da monogamia é a imposição, que gera sofrimento a quem fracassa em manter a exclusividade.

No livro "Monogamia", do psicanalista britânico Adam Phillips, a monogamia é associada a ingredientes como honestidade, afeto, segurança, escolha, vingança, desejo, lealdade, mentiras, risco, direitos, culpa, amor e violência.

"Se pensarmos a partir da América Latina, podemos dizer que a monogamia começa a se instaurar como norma a partir da colonização, no século 16, que deposita nos jesuítas a missão de impor os valores da Igreja Católica aos povos originários", diz Barbosa.

"A instauração desse sistema como regra era parte do projeto de disciplinamento da sexualidade indígena, e o não cumprimento dela era severamente punido com práticas que podiam levar à morte, como a tortura e o banimento."

O pesquisador e doutor em filosofia espanhol Pablo Perez Navarro, da Universidade de Coimbra e se debruça sobre frentes como o poliamor e a monogamia no Brasil contemporâneo, em parceria com a UFBA (Universidade Federal da Bahia), observa que a estrutura monogâmica tem origem associada às culturas patriarcais.

Um momento que considera crítico para a construção desse regime ocorre por volta da Revolução Francesa, quando o casamento civil é instituído, e, poucos anos depois, quando é promulgado o Código Napoleônico —conjunto de leis civis estabelecido por Napoleão Bonaparte no início do século 19. "Digamos que o Estado começa a dividir com a Igreja a tarefa de santificar esse tipo de união, só que agora de forma administrativa, burocrática", diz Navarro.

"É um momento juridicamente muito significativo para entender o lugar que a monogamia ocupa no presente. É um momento em que também se institui uma noção que tem tudo a ver com a organização monogâmica dos afetos, das relações de parentesco, da reprodução, que é a noção de ordem pública. É nesse código em que a ordem pública é referida como o limite para tudo que cidadãos e cidadãs podem acordar entre eles, incluído o acordo matrimonial."

Essa ordem, segundo o pesquisador, está ligada à necessidade de se impor um limite aos arranjos familiares e de ver instituída a monogamia como modelo único. "Muitas vezes para explicar o que significa a ordem pública na atualidade, se usa como exemplo a ideia de que a monogamia é o limite do que se pode reconhecer, ou muitas vezes tolerar ou permitir por parte do Estado."

Segundo o filósofo, o problema é que existem diversas formas de relação que escapam a essa definição monogâmica —e elas acabam demonizadas e censuradas socialmente e juridicamente.

"Temos que construir uma ordem social que não imponha um modelo relacional, seja a monogamia, seja qualquer outro."

* Repórter colaboradora da Folha em Natal. Formada em jornalismo pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), com mestrado em Investigative Reporting pela Birkbeck University of London, MBA em Agronegócios pela Esalq/USP e graduação em andamento em Ciências Econômicas (UFRN).  Trabalhou na Tribuna do Norte e na BBC News Brasil, em Londres.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2024/06/monogamia-e-puxada-pela-colonizacao-e-marcada-por-religiao-e-economia-dizem-pesquisadores.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsfolha

Nenhum comentário:

Postar um comentário