Por MARIA CLARA BINGEMER
Quem vê Chico Buarque fica imediatamente impressionado com o tamanho e a cor de seus olhos. Verdes? Azuis? Uma mistura de ambos? O fato é que aqueles olhos claros tomam a frente da cena e captam a atenção de quem ouve suas canções, acrescentando ao encanto que elas provocam.
O olhar é mais que a paisagem que os olhos físicos conseguem desvendar através da retina. Trata-se da consciência e percepção de alguém, no caso um indivíduo sobre si mesmo e igualmente sobre outros indivíduos, outros coletivos e sobre o mundo que o circunda e no qual vive. Para a filosofia, o olhar está ligado à contemplação, à Theorein (Theoria), ou seja, ao pensar que se dá no gesto primeiro da atenção às coisas até a visão das ideias e conceitos.
Chico tem esse olhar aberto e atento para a realidade e as coisas. Suas composições sempre revelaram essa abertura consciente e crítica que percebe a injustiça e a opressão da realidade. Seu talento revelou em várias peças esse olhar agudo de cidadão brasileiro, alguém que embora nascido em família com meios e posses, formado em boas escolas e com possibilidades de beber da imensa cultura do intelectual que era seu pai não perdia a perspectiva da totalidade do real, consciente de que sua situação não lhe dava privilégios, mas sobretudo responsabilidade. Esse olhar aparece no lindo fado “Tanto Mar,” quando celebra a vitoriosa revolução dos cravos em Portugal, ao mesmo tempo em que questiona a ditadura que ainda persistia no Brasil. Igualmente na canção “Vai passar” que resgata as agruras do continente erguido e construído por pobres e pretos que encontram na música e na dança “uma alegria fugaz” que mostra a evolução da liberdade que os transforma em barões e príncipes mas só dura “até o dia clarear”; ou o pungente “Cálice”, que recorrendo à oração derradeira de Jesus antes da Paixão denuncia as torturas e a censura em seu país.
O olhar de Chico pousa-se também com ternura e compaixão sobre a alteridade daqueles e daquelas que formam o tecido da paisagem humana que observa. Com sua lira, destaca personagens que estão presentes no cotidiano brasileiro e denuncia suas tragédias pessoais, assim como o modo inclemente pelo qual são tratados. Todos sentimos e sofremos juntos com seu “Pedro Pedreiro” esmagado por uma rotina devoradora de esperar; ou com o operário de “Construção” que ama sua mulher pela última vez antes de cair feito um pássaro e encontrar a morte no chão ao lado do prédio que erguia com sua mão, seu suor e seu sangue todos os dias; ou ainda com a trans “Geni” a quem todos desprezam e que depois será a que salvará a cidade condenada; a “Carolina” que fica na janela vendo o tempo passar e tantos e tantas outras. É sobre a alteridade que forma coletivos que o poeta canta triste e melancolicamente, como “Gente Humilde”; ou irônica e divertidamente como o “Malandro” que aposentou a navalha, sustenta mulher e filhos chacoalhando diariamente num trem da Central para ir ao trabalho e sobreviver.
No entanto, o mais importante olhar que aqui desejo celebrar nesta festa de 80 anos do poeta é aquele que é lançado sobre a mulher. E não apenas sobre, mas a partir da mulher. O talento de Chico é tanto e a musa que o toma tão poderosa que ele chega a compor “como se fosse “ mulher, ou melhor “sendo” mulher. A inspiração liberta a anima que em sua lira convive com o animus de seu gênero masculino e fala com os sentimentos, as palavras, as emoções, as raivas das mulheres que povoam suas composições com abundância e destaque. As vezes anônimas como a garota de programa que é daquelas que só dizem sim e depois viram a página do “Folhetim” ou a esposa abandonada durante as noites que depois recebe o marido devasso em casa em “Com açúcar com afeto”, composição polemica, que Chico declarou que não faria hoje; ou Joana de “Notícia de Jornal” que atentou contra a existência num humilde barracão e é mais uma mulata triste que errou e ao voltar ao barracão percebe que “não se volta ao que acabou”.
O olhar verde/azulado (ou será azul/esverdeado?) contempla suas coexistentes representantes do outro gênero e lhes dá voz. E ao fazê-lo, são as próprias mulheres que se identificam e se encontram em sua arte e por isso tanto o admiram. Graças a suas canções muitas mulheres tomaram consciência da submissão indevida que suportavam caladas, ou criaram coragem para tomar posições que antes pensavam dever aguentar sem reclamar; ou deram o salto para entregar-se a um amor que antes lhes dava medo.
Por tudo isso e muito mais é justo hoje celebrar o olhar de Chico que sabe contemplar e enxergar longe e traduzir na magia das palavras o que percebem seus olhos ao se abrirem sobre a realidade de seu país e seus habitantes, sobretudo as mulheres. Que venham oitenta mais, oitenta vezes oitenta para esse artesão da língua e bardo da condição humana. Parabéns!
*Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo: Paixão por Deus em tempos de descrença” (Editora Rocco), entre outros livros.
Fonte: https://www.jb.com.br/cadernob/chico-buarque-80-anos/2024/06/1050622-chico-oitenta-anos-de-olhar.html
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