Jéssica Moreira*
Thiago de Souza durante caminhada pelo Cemitério da Consolação -
Projeto "O que te assombra?" revela histórias em caminhadas por cemitérios
Sábado de lua cheia. Noite iluminada. Cenário perfeito para…? Uma caminhada noturna no Cemitério da Consolação (SP), ora!
Convidei diversos amigos e amigas. Alguns estranharam. "Deus me livre".
"Que medo". "Misericódia". Eu acho graça. Venho de Perus (SP), onde o Cemitério Dom Bosco é carregado de memórias da Ditadura Civil-Militar.
Meu tio, ex-sepultador, morou em frente à necrópole peruense por muitos
anos. A expressão "ir ao cemitério" era sinônimo de passeio com meu pai
– que pelo menos uma segunda-feira de cada mês acendia velas às almas.
Meu marido e duas amigas toparam – quem tem amigo tem tudo. Tamanha foi
minha surpresa ao descobrir que, além de mim, mais de 100 pessoas também
nutrem esse gosto – digamos peculiar – por cemitérios e ouviam atentas à
fala de abertura do nosso mediador, Thiago de Souza.
Em um megafone branco com uma luz vermelha na ponta, as falas de Thiago vinham acompanhadas de um reflexo também vermelho no rosto, em meio à escuridão do cemitério naquela noite. Antes de sair para a caminhada, alguns avisos importantes. "Regra um: nunca mate uma barata". Vai que alguém tropeça em um túmulo, não é mesmo? Regra dois: "nunca pise nos jazigos dos túmulos". Se eu fosse dar uma dica, diria: vá de calças compridas e sapatos fechados para não dar sorte para nenhuma barata.
Criador do projeto "O Que Te Assombra ?", Thiago é um advogado, compositor e roteirista curioso pelas memórias e histórias que rondam a cidade. O projeto nasceu em 2021, em meio à pandemia de Covid-19. "Eu tinha perdido uma tia e aquilo me mobilizou muito. Tinha pais idosos e duas filhas pequenas. Estava morrendo de medo de morrer mesmo. Procurei um jeito de dialogar e me conciliar com o tema da morte e das coisas inexplicáveis que estavam cercando a gente", conta.
Inspirado no livro "Assombrações do Recife Velho", de Gilberto Freyre, Thiago e outros amigos organizaram um acervo na cidade de Campinas, interior de SP. "Inicialmente, eram pesquisas na internet. Depois, fiz pesquisa de campo, e quando conseguimos voltar a circular, fizemos dois passeios em Campinas, em 2022".
Passados quase dois anos, o "O que te Assombra?" já realizou diversas caminhadas ressuscitando memórias locais. Seja em São Paulo ou outros estados pelo país, Thiago perdeu a conta de quantas necrópoles já conheceu. Somando todas as atividades, o projeto já realizou caminhadas com mais de 7 mil pessoas, tanto em cemitérios, como pelas ruas e esquinas das cidades
‘Consolação e suas vozes’
Mais antigo cemitério da capital paulista em funcionamento, o Consolação
foi inaugurado oficialmente em 15 de agosto de 1858. Um fato curioso é
que a Marquesa de Santos, conhecida popularmente como a padroeira das
prostitutas, doou recursos para a construção da Capela do Cemitério e
mais 4 contos de réis. "Dizem que ela é uma fantasma e sempre aparece
por aqui".
A caminhada é cheia desses momentos de humor e graça, que Thiago
chama de "momento fofoca" do tour, já que além do tom sério das
explicações e contextos históricos, ele traz uma pitada de informações
adicionais que fazem até o mais medroso dos visitantes cair na risada.
Pessoalmente, acredito ser importante desmistificar o tema e mostrar que
falar sobre morte também pode ser cômico.
Em meio aos prédios pontiagudos do centro de São Paulo, o Cemitério da
Consolação impera, dando um respiro à paisagem com esculturas, árvores e
edificações rebuscadas. O mausoléu da milionária Família Matarazzo —
ou, melhor, do "tataravô do Supla" — deve ser maior do que a minha casa,
com certeza. O túmulo do presidente Campos Salles parece um anfiteatro,
com colunas que relembram a arquitetura antiga.
São vários os túmulos estilizados, seja com esculturas de Marias
erguendo as mãos ao alto ou imagens que contam histórias da pessoa
morta, como uma escultura que se transforma em um ponto de interrogação
quando viramos a cabeça para interpretá-la. "As artes estão
representadas tanto no inestimável valor dos monumentos tumulares
dispostos em seus domínios, a começar pelo portal de entrada projetado
pelo imenso Ramos de Azevedo – também sepultado no Cemitério da
Consolação – como em muitos outros personagens", explica Thiago.
Alguns chamam este e outros cemitérios de "museu a céu aberto". Thiago,
no entanto, vai além, e reivindica a importância do lugar do cemitério
na cidade por ele mesmo. "Este importante aparelho público, além de suas
aplicações sanitárias, traz na essência verdadeira vocação
cívico/democrática em várias vertentes. Em suas raízes, é possível
verificar os pulsos políticos, sociais, artísticos, arquitetônicos,
religiosos e místicos".
"Muita gente se interessa pelas histórias de fantasma. Mas eu diria que o
próprio cemitério tem uma mística muito particular. Acho que o sucesso
[das caminhadas] se dá porque há um interesse represado sobre o tema da
morte em geral. Sinto que as pessoas não conseguiram viver o luto da
pandemia, por isso tem mais gente interessada no tema", tenta explicar
por que 100 pessoas caminham por ali num sábado à noite.
As figuras ilustres do Consolação
É aqui que moram os restos mortais de figuras conhecidas de nossa
história. Para Thiago, o "morador" mais ilustre desta necrópole é o
advogado, poeta, escritor e abolicionista Luiz Gama. Confesso,
envergonhada, que não sabia. Pode parecer bobeira para alguns, mas falar
de seus feitos em frente ao seu túmulo é como evocar toda a força e
luta contra a escravidão em todo o país. Gama é o patrono da abolição no
Brasil.
"No dia de seu sepultamento, uma multidão de 4 mil pessoas fez um
cortejo por São Paulo, do Brás até o Cemitério da Consolação. Pensando
que a capital paulista tinha cerca de 40 mil habitantes naquela época, é
possível imaginar como ele era querido e respeitado", reitera Thiago.
Além de Gama, outras figuras amplamente divulgadas nos livros
de História também estão no Consolação. É o caso dos integrantes do
"grupo dos cinco" da Semana de Arte Moderna de 1922: Mário de Andrade,
Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Em meio a cruzes e imagens, o
cemitério cumpre seu papel pedagógico. É possível até mesmo imaginar
aulas inteiras de História e Artes no local. Talvez, os estudantes
aprendessem muito mais do que dentro dos modelos pré-formatados que
engessam nossa inventividade.
Cemitérios e memória da cidade
"Os cemitérios carregam muito da memória das cidades". Mesmo relembrando
os grandes nomes, Thiago é, antes de tudo, um contador assíduo de
causos de assombrações que atravessam ruas e viram a catraca do ônibus.
Cético e respeitoso em relação às histórias, Thiago vê todas elas —
dos ricos aos pobres; dos populares aos anônimos — como patrimônio
imaterial da cidade. "Eu não gosto da espetacularização da assombração.
Por que tem que ser uma assombração ruim? Por que não falamos da
assombração que aparece de dia?", reflete.
Isso me fez lembrar do livro "O Corpo Encantado das Ruas", de Luiz Antônio Simas,
em que ele mostra como os orixás estão presentes no cotidiano. "As ruas
são de Exu em dias de festa e feira, dos malandros e pombagiras quando
os homens e mulheres vadeiam e dos ibêjis quando as crianças brincam."
Depois da caminhada de sábado, diria que as ruas são também das
assombrações. Ou, então, de gente que morreu, mas continua no imaginário
popular dos cemitérios e das regiões onde estão enterradas.
É o caso dos chamados Milagreiros e Milagreiras de Cemitérios.
Crianças, mulheres, idosos: gente que viveu alguma morte trágica e,
ainda hoje, centenas continuam indo aos seus túmulos em busca de graças e
milagres.
"Milagreiros e Milagreiras de Cemitério eclodem de um fenômeno
devocional que possui muitas características sociais, ritualísticas,
mas, fundamentalmente regionais. E não tenho qualquer reserva em dizer
que a devoção atribuída a esta categoria devocional faz parte do
patrimônio imaterial das cidades", conta o mediador Thiago.
Cultuado e conhecido em todo o país, o túmulo do milagreiro Antoninho da
Rocha Marmo é coberto de placas de agradecimento. Gente que conseguiu
passar em provas, livrou-se de doenças, e tantas outras placas
agradecendo o garoto que morreu ainda jovem. Thiago resume essa
história:
"O menino milagreiro, que tinha como brincadeira favorita ministrar
missas católicas no quintal de sua casa, previu a data de sua morte, que
ocorreu em 21 de dezembro de 1930, depois de ser acometido de
tuberculose. Em 19 de outubro de 2021 seus restos mortais foram exumados
e levados do Cemitério da Consolação para a Cidade de São José dos
Campos, onde repousa atualmente sob o altar da Capela de Nossa Senhora
da Saúde, situada no instituto hospitalar que leva seu nome". A Prefeitura de São Paulo reconhece – por meio de edital – 12 desses milagreiros espalhados pela cidade,
o que garante minimamente a proteção e manutenção de seus túmulos.
Thiago, porém, descobriu outros milagreiros pelo estado, totalizando 23.
Em 2023, realizou pedido formal de inclusão dessa descoberta, mas sem
sucesso.
"Eu pedi a inclusão desses "novos" milagreiros no rol a ser protegido.
Como não tivemos resposta, escrevi um livro sobre essa busca dos
milagreiros nos cemitérios públicos de SP", conta. O livro, intitulado
'Milagreiros de Cemitério' será lançado em breve pela Pontes Editores e
Thiago promete que será em uma necrópole, hein?
Se a curiosidade bater por aí, você pode ir ao cemitério mais próximo
e, para quem acredita, pedir a intercessão desses milagreiros na graça
que deseja alcançar. Eu mesma já pedi a intercessão à Milagreira Maria
Judith de Barros, também "moradora" do Consolação.
Para quem gosta de acompanhar "true crime",
a caminhada também entrega tudo. Afinal, os crimes de verdade também
são carregados de místicas e memórias que contam sobre um determinado
período da cidade. É o caso do túmulo da Família Dos Reis, que nos
remete imediatamente ao "Crime do Castelinho da Rua Apa", próximo ao Elevado Presidente João Goulart, o "Minhocão", em SP.
A mãe, Maria Cândida Guimarães dos Reis, 73, e os dois filhos, Armando
César dos Reis e Álvaro dos Reis, foram encontrados mortos. Algumas
histórias apontam que Álvaro matou a mãe e o irmão e depois se suicidou.
Mas as circunstâncias do crime nunca foram esclarecidas. Desde 1996, a
ONG Clube de Mães tem autorização para utilizar o local.
Mas não só de histórias de terror de filme vivem os cemitérios. E nesse tour
há espaço, inclusive, para momentos de fofura. Com certeza, o momento
mais fofo de nossa visita foi quando conhecemos o túmulo do Spike, o
primeiro cachorro – e único até hoje – a ser enterrado neste cemitério.
Ainda em construção, a placa de Spike mostra o carinho dos
trabalhadores cemiteriais com o bichinho: "amigo fiel, obrigado pela
alegria de cada dia de trabalho juntos. Guardião dos amigos". Abandonado
na necrópole, Spike acompanhava os cortejos até o sepultamento.
Detalhe: sempre respeitando as famílias, sem nem latir. "Quando o
enterro finalmente acontecia, ele deitava sobre o túmulo, quase dizendo
‘podem ir, que agora eu cuido’". Sobre a terra do túmulo de Spike há uma
bolinha azul de plástico em sua homenagem. Confesso: pedi para ele
interceder pela saúde da Tuca, minha cachorra de três anos.
Passamos por pelo menos 20 jazigos. Cada um com sua história, suas
assombrações, lembranças de medos, risos ou fofocas. São trajetórias que
ajudam a montar o mosaico que constroi a História de nossa cidade, só
que todas reunidas neste local, ora abandonado pelo poder público, ora
visto apenas como um espaço de medo e dor.
É claro que esses sentimentos estão, também, impregnados em cada quadra,
cada árvore, cada túmulo de um cemitério. Mas, antes de tudo, esses
lugares marcam a concretude de histórias que existiram e continuam
importantes para toda a sociedade. Voltar ao passado sempre nos ajuda a
conhecer o presente e projetar o futuro. Como me disse a psicanalista
Ingrid Yurie, que também acompanhou a caminhada: "agora, não acho mais o
cemitério um lugar assustador. Acho mais um livro de pedras cheio de
curiosidades."
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O próximo passeio será em Campinas, em datas ainda a serem confirmadas,
mas prometem ser à meia noite. Você pode conferir na página do "O que te assombra?".
* Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/morte-sem-tabu/2024/06/uma-noite-no-cemiterio-da-consolacao.shtml
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