A armadilha neoextrativista do Sul Global pode ser uma oportunidade para renovar a teoria da dependência
Em outubro de 2020, quando mais de 1 milhão de pessoas em todo o mundo já haviam morrido em decorrência da Covid, pareceu que o pior da pandemia havia passado. Com a diminuição do número de internações, os hospitais em colapso estavam recuperando sua capacidade, enquanto se preparava a distribuição da primeira dose da vacina para dali a dois meses. O otimismo, porém, era fruto de mais uma ilusão, como outras tantas que tivemos depois: a Covid não arrefeceu nos meses seguintes. Apenas em maio de 2023, quase três anos mais tarde, a Organização Mundial da Saúde declarou o fim da pandemia.
Também foi naquele mesmo mês de outubro de 2020 que a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, anunciou: “Hoje, estamos diante de um novo ‘momento’ Bretton Woods.” Em 1944, os acordos de Bretton Woods criaram o próprio FMI, além do Banco Mundial, estabelecendo as bases para o comércio internacional e as políticas de reconstrução e desenvolvimento no pós-Segunda Guerra Mundial, tudo ancorado em uma moeda de referência, o dólar. Bretton Woods definiu também o que se chamou, então, de “ordem econômica internacional”, cujo objetivo era coordenar as políticas monetárias dos países, segundo os parâmetros estabelecidos nos acordos.
O que a diretora do FMI pretendeu dizer na época ao fazer a analogia entre o momento atual e o do fim da Segunda Guerra? Que a crise desencadeada pela Covid mostrava a necessidade de uma articulação global que está faltando? Que era preciso novamente fortalecer os Estados nacionais para enfrentar o novo quadro global? Que a pandemia lembrava uma guerra mundial? É uma analogia estranha, de qualquer modo. Mas que não foi esquecida. Em fevereiro de 2023, o secretário-geral da ONU, António Guterres, relançou a ideia, desta vez em termos mais enfáticos: “É tempo de um novo momento Bretton Woods.”
Na realidade, há outra analogia que pode explicar a estranheza de se propor para os dias atuais um acordo parecido com o do pós-Segunda Guerra, mas sem termos vivido um conflito mundial. Isto é, a analogia entre a crise econômica internacional do liberalismo a partir de 1929, que conduziu ao conflito mundial de 1939-45, e a crise econômica global do neoliberalismo, deflagrada a partir de 2008. Ou seja, o chamamento feito por Georgieva e Guterres é para uma transformação ainda mais profunda e abrangente, que vai além do estabelecimento de uma nova “governança econômica global”. É um chamamento parecido com o que foi feito, também em outubro de 2020, pelo economista Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial: “Temos de deixar para trás o neoliberalismo na era pós-Covid.”
Na intersecção entre os apelos por um novo Bretton Woods e por uma reorganização pós-neoliberal do capitalismo, ocorre um processo de desglobalização que corre o risco de adquirir caráter bélico mais ou menos generalizado. Os anos de pandemia foram seguidos por anos de guerras que ameaçam se ampliar, militarizando totalmente as relações internacionais. Isso significa colocar em risco a democracia e a segurança, ferir de morte a luta contra as mudanças climáticas e relegar a segundo plano o combate às desigualdades em todas as suas dimensões.
O plano para superar o neoliberalismo – seja viável ou não um novo acordo à maneira de Bretton Woods – é um apelo às elites neoliberais para se converterem a um novo credo. Trata-se de um credo que ainda precisa ser fixado, pois é um trabalho em curso, uma batalha que está sendo travada dentro do próprio establishment neoliberal. Mas é um credo, mesmo assim, algo que desde a era neoliberal costuma ser chamado de “consenso”. Ou mais exatamente um “novo consenso”, como afirmou em abril de 2023 o conselheiro de Segurança Nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan.
Um rápido confronto entre o “consenso de Washington” dos anos 1990 com o “novo consenso” dos anos 2020 é suficiente para mostrar que o establishment neoliberal está dando um notável cavalo de pau ideológico – que vem sempre acompanhado de uma notável cara de pau ideológica. Mas o movimento não é novo, muito menos inédito. Acontece sempre que o capitalismo precisa se reinventar. A novidade é o projeto de que essa reinvenção do capitalismo seja feita não apenas dentro da ordem capitalista, mas, sobretudo, sem promover rupturas drásticas, como uma guerra mundial – no contexto dos anos 1930, a outra ruptura possível era a da alternativa soviética, o que hoje não está no horizonte.
Mas nem mesmo isso é inteiramente novo. No fundo, o chamamento para uma reorganização pós-neoliberal do capitalismo pretende mimetizar o próprio processo de ascensão e consolidação do neoliberalismo. Um certo senso comum indica que isso teria se dado da seguinte forma: primeiro, como formulação de um novo paradigma econômico, com sua teoria e seus preceitos de política econômica, com sua visão própria de sociedade, e, em seguida, como tomada das instituições e estabelecimento do novo paradigma como hegemônico.[1] O neoliberalismo ascendeu no contexto da Guerra Fria. De modo análogo, para alguns países centrais, o momento atual seria caracterizado por uma nova forma de Guerra Fria, que, permanecendo fria, permitiria uma transição para uma ordem pós-neoliberal nos moldes da ascensão do próprio neoliberalismo.
O apelo a uma reorganização pós-neoliberal do capitalismo dentro da ordem tem o propósito de fortalecer nomes e versões da teoria econômica antes marginalizados pelo mainstream neoliberal, sem alterar substancialmente a correlação atual de forças. É uma transição que se pretende fazer no interior mesmo das instituições existentes. É uma proposta pensada de cima para baixo, a partir do ambiente rarefeito dessas mesmas instituições globais.
Se o lastro da proposta fosse apenas as posições de poder atuais das elites globais, a ideia não seria viável. O que torna o projeto plausível – mesmo que não se concretize – é o fato de dispor de pelo menos dois outros trunfos, além do poder institucional e econômico que tem hoje: a irredutibilidade das transformações sociais realizadas pelo neoliberalismo e a divisão política que se consolidou com sua crise.
A vitória do neoliberalismo sobre as formas anteriores de regulação do capitalismo foi definitiva: não há retorno possível aos modelos anteriores de sociedade. Muito disso se deve ao fato de que o neoliberalismo estabeleceu raízes sociais profundas. Diante disso, é ilusório o voluntarismo político que prega a “volta” a um momento anterior da regulação capitalista. Essa é a irredutibilidade do neoliberalismo, mesmo em um momento de queda, como agora.
O sucesso do neoliberalismo em desmantelar mecanismos universais de solidariedade, tanto estatais como sociais, exacerbou disputas distributivas, com efeitos destrutivos e autodestrutivos. A forte divisão política atual é resultado desse processo – e é também funcional para o projeto de transição dentro da ordem.
Hoje, a divisão política em países ainda democráticos se dá entre a direita sem medo de se aliar à extrema direita e um novo progressismo que pretende reformar o neoliberalismo, livrando-se de suas versões mais extremistas (sobre a versão brasileira dessa divisão escrevi o ensaio O Centrão sem medo e a encruzilhada do PT, na piauí_204, de setembro de 2023). Devido a essa divisão, ninguém de um dos campos partilha o que quer que seja com alguém do outro lado. E, no entanto, ambos os lados partilham um terreno comum.
O terreno comum não é a democracia, ou o que ela deve ser, apesar do fato de, nos países ainda democráticos, mesmo a extrema direita se apresenta hoje como campeã da democracia (o que não aconteceu há cem anos, na crise do liberalismo, quando a extrema direita era abertamente antidemocrática). O terreno partilhado pelos dois lados é o próprio neoliberalismo. O objeto principal das disputas, com alianças e rupturas de vida e morte, é o que deve ser preservado e o que deve ser descartado do período neoliberal. Não se trata, portanto, de descartar todas as transformações introduzidas no período neoliberal, mas de selecionar quais delas devem permanecer, a depender de que lado se está na divisão política atual.
Isso quer dizer que ambos os lados da divisão atual são herdeiros legítimos do neoliberalismo. Para utilizar os termos de Gary Gerstle, em The rise and fall of the neoliberal order: America and the world in the free market era (Ascensão e queda da ordem neoliberal: os Estados Unidos e o mundo na era do livre mercado), que fez uma impressionante síntese do neoliberalismo americano, são dois lados da mesma moeda. Um é herdeiro do “neovitorianismo” (o neoliberalismo conservador do governo Ronald Reagan, na década de 1980). O outro lado é herdeiro do “cosmopolitismo” (o neoliberalismo progressista a partir de Bill Clinton, nos anos 1990). A diferença em relação a essas origens é que a nova versão do neovitorianismo, a direita sem medo, é um produto controlado em muitos lugares pela extrema direita, com a violência explícita e brutal que a caracteriza, ao passo que a versão atual do cosmopolitismo, o novo progressismo, é hoje o próprio establishment em boa parte dos países ainda democráticos.
É nesses termos que, no horizonte político atual, se dá a transição dentro da ordem estabelecida. Assim, nos lugares em que o capitalismo e a democracia ainda convivem, a transição para um capitalismo pós-neoliberal transcorre em um clima de chantagem próprio de uma divisão entre democracia e autoritarismo. Mesmo do lado do novo progressismo a ameaça autoritária, vinda do campo adversário, funciona como mecanismo de chantagem política para que sua própria base se mantenha não apenas unida, mas incorpore o máximo possível de quadros antes devotados à implantação de programas neoliberais.
Essa camisa de força política, de alguma maneira, interessa ao establishment, que é agora o neoliberalismo progressista repaginado na forma de um novo progressismo. É justamente desse establishment que vem o chamamento para um novo Bretton Woods.
Para conferir concretude ao “novo consenso” proposto pelo novo progressismo, a representante de Comércio dos Estados Unidos, Katherine Tai, afirmou em junho do ano passado que “a busca de eficiência e de baixos custos em todas as coisas levou a cadeias de fornecimento vulneráveis e de alto risco”. Abandonar essa “busca de eficiência e de baixos custos” significa nada menos do que abandonar o neoliberalismo no que ele tem de mais essencial. O “consenso” neoliberal pregava a ideia de que a globalização das “vantagens comparativas” da divisão do trabalho levaria a um desenvolvimento e uma prosperidade sem precedentes. Indo em sentido contrário, Tai acrescentou: “O consumidor que desfruta dos preços baixos dos bens importados é também um trabalhador que deve suportar as pressões da concorrência por parte de trabalhadores de outras partes do mundo que trabalham em condições penosas e abusivas.”
Na geopolítica da desglobalização atual, a consequência mais direta desse raciocínio é a adoção da prática conhecida como friendshoring. É quando o comércio internacional passa a ser, ele mesmo, enquadrado por diretrizes geopolíticas: comercializar o quanto possível, mas de preferência exclusivamente, com nações “amigas”. A mudança de orientação é clara. Na ordem das prioridades, a eficiência deve dar lugar a alianças e lealdades políticas e geopolíticas. Essas alianças e lealdades devem ser justificadas tanto em termos de segurança nacional como de proteção ao trabalho e ao trabalhador.
Ocorre que, embora feito pelo campo do novo progressismo, o apelo para um novo Bretton Woods envolve, claro, muito mais do que países ainda democráticos e seus blocos progressistas. Para ser bem-sucedido, o apelo tem de ser dirigido também às autocracias consolidadas e aos países com governo de partido único. E a países em vias de se tornarem uma coisa ou outra.
A grande divisão entre a direita sem medo e o novo progressismo em países ainda democráticos organiza os espaços políticos nacionais, mas não produz alinhamentos geopolíticos. Ao enunciar o apelo para um “novo consenso”, o novo progressismo pretende derrotar a extrema direita no campo de batalha nacional, isolando-a no cenário global. Mas o fato é que os governos do novo progressismo nos Estados Unidos e em alguns países da Europa nada estão fazendo para produzir um bloco do “novo progressismo” em escala global. Apenas cuidam de alianças pontuais e da defesa de interesses mais imediatos.
Com isso, governos do novo progressismo no Sul Global – como o do Brasil atualmente – encontram mais espaço para seus produtos no regime de partido único da China do que nos mercados de países do Norte Global cujos governos também estão sob o novo progressismo. Não há identificação entre a prática do friendshoring e governos do novo progressismo, não há identificação entre o “amigável” comercial e estratégico e a defesa da democracia nos moldes do novo progressismo. Mais do que isso, não há sequer um plano concreto para construir um bloco geopolítico nesses moldes, com crédito para uma reindustrialização calcada em transição energética, transferência de tecnologia e abertura de mercados para países com governos do novo progressismo.
Parte importante dessa ausência de plano e de organização geopolítica se deve, evidentemente, à própria divisão política interna em países ainda democráticos. Os governos do novo progressismo podem deixar de ser governo nas próximas eleições, podem perder para a coalizão da direita sem medo – e o caso da eleição presidencial nos Estados Unidos em novembro tem grande destaque na correlação de forças global. Ao mesmo tempo, o novo progressismo só conseguirá derrotar e, eventualmente, isolar a direita sem medo nos países ainda democráticos se houver alguma articulação global que venha a sustentar esse enfrentamento.
Os rumos de uma possível ordem pós-neoliberal estão sendo disputados hoje, fundamentalmente, entre o novo progressismo e a direita sem medo. A ideia de um novo Bretton Woods representa o projeto de produzir uma nova ordem sem ter de passar por guerras de caráter global. Ocorre que o pano de fundo da disputa é o de um descasamento entre política e geopolítica, entre embates nacionais e globais. Os conflitos nacionais entre a direita sem medo e o novo progressismo são semelhantes no Norte e no Sul Global. Mas, nos países do Sul não encontram correspondência nas divisões geopolíticas. As dependências comercial e estratégica desses países são, hoje, inescapáveis – e não estão relacionadas apenas a governos do novo progressismo. São resultado de quatro décadas de neoliberalismo.
A globalização do princípio das “vantagens comparativas” da divisão do trabalho reforçou a primarização – economias sustentadas fundamentalmente na produção e venda de produtos primários, em vez de industrializados – ou produziu desindustrialização e a reprimarização das economias da América Latina, por exemplo, transformando a maior parte de seus países em neoextrativistas. O Brasil não é exceção. Embora tenha conseguido manter algo de sua indústria, há quem diga que por aqui ela está “à beira da extinção”.[2]
Tudo isso se dá mesmo que governos de esquerda na América Latina tenham formulado programas e ações contra o neoliberalismo. Não há razão para atribuir-lhes intenções neoliberais, já que esses governos as rejeitam explicitamente. Mas é necessário distinguir entre o seu discurso político e as práticas que, diante do caráter inescapável do neoliberalismo como regulação global do capitalismo, são obrigados a adotar para se manterem como governos.
A divisão política entre a direita sem medo e o novo progressismo não deixa espaço para terceiras vias. Hoje, tanto em termos nacionais como globais, governos de esquerda ou governos simplesmente progressistas passaram a fazer parte do novo progressismo. Gostem ou não, é esse o seu lugar político no mundo, hoje.
Como ordem global, o neoliberalismo supera intenções e estabelece previamente as margens de ação disponíveis aos países periféricos. “Resistir” ao neoliberalismo significa, nesse caso, explorar brechas de ação em um quadro geral pouco elástico. Muito menos elástico que nas formas anteriores de regulação do capitalismo.
A redução da margem de ação de países periféricos com a consolidação do neoliberalismo significou o fim da única alternativa efetiva de desenvolvimento autônomo e autossuficiente surgido na região, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial: a “substituição de importações”. O instrumento estava a serviço de um projeto nacional de industrialização que pretendia criar um mercado interno relevante, capaz de permitir em algum grau a diminuição e mesmo a superação da dependência típica de países com economias fundadas na exportação de bens primários.
Como política de Estado, a “substituição de importações” estimulava o desenvolvimento de áreas consideradas estratégicas, ao mesmo tempo que protegia esses produtos da competição de produtos importados, com uma combinação de barreiras tarifárias e subsídios à produção. Nada foi posto em seu lugar, a não ser o princípio das “vantagens comparativas”, que levou à exploração superintensiva de minérios e produtos agropecuários, justamente o que fez a América Latina voltar um passo atrás e transformar-se numa região neoextrativista por excelência.
No atual momento de declínio do neoliberalismo, a reduzida margem de ação dos países latino-americanos, além de muito menor que no passado, deriva dessa posição neoextrativista da região. Defender a democracia e lutar contra a extrema direita, porém, impede esses países de abandonarem o neoextrativismo. A armadilha neoextrativista aprisiona um país como o Brasil entre a catástrofe climática em curso no Rio Grande do Sul e a chance de conter a extrema direita, que, retornando ao poder federal, aprofundará a exploração predatória de recursos naturais sem reservas nem obstáculos, utilizando plenamente os resultados em seu benefício político. A impossibilidade de desistir do neoextrativismo significa que a direita sem medo já venceu, que seu programa é vitorioso.
Os países ainda democráticos do Sul não podem se dar ao luxo de se desvincularem de parceiros econômicos que são autocracias ou regimes de partido único. Na desglobalização, a dissociação está reservada apenas às nações que podem pagar por ela, como os Estados Unidos em relação à China, como a Alemanha em relação à Rússia. Como prática e política de segurança nacional, friendshoring está reservado aos que podem escolher seus amigos.
Assim, pelo menos por enquanto, a única saída à vista para os países do Sul viria de uma concertação internacional que aliviasse as suas dívidas, financiasse a manutenção de combustíveis fósseis debaixo da terra e colocasse à sua disposição novas tecnologias e fontes de financiamento para uma transição ecológica efetiva. É isso que um novo “momento Bretton Woods” pode significar para os países ainda democráticos do Sul Global.
Esse pode ser um horizonte para o pensamento e a ação. A questão é saber se e em que medida as tendências de médio e longo prazos convergem para esse horizonte. Nesse sentido, é certo que, de um lado, o atual processo de desglobalização oferece uma oportunidade única para que muitos países do Sul Global possam reverter a reprimarização de suas economias. É um processo que levará tempo e não significará uma dissociação total dos parceiros comerciais tradicionais, mas poderá remodelar a correlação de forças em bases nacionais, permitindo a sobrevivência de alguma democracia. Poderá também, até certo ponto, reequilibrar o tabuleiro do xadrez político, desafiando a atual hegemonia do neoextrativismo.
Mas, mesmo que os esforços de reforma das instituições de financiamento internacionais, como o FMI ou o Banco Mundial, tenham sucesso em algum momento, a conta não sairá barata – implicando, por exemplo, o alinhamento geopolítico, mesmo que os países ainda democráticos do Sul Global não possam pagar por isso. O preço será especialmente proibitivo se vier casado com a adoção de um “novo consenso” de reorganização pós-neoliberal do capitalismo no Norte Global.
Por outro lado, entretanto, uma segunda tendência de desenvolvimento se apresenta em termos de uma ordem pós-neoliberal que não se abra igualmente a todos os países. Porque resta saber até que ponto os laços institucionais do neoliberalismo serão realmente rompidos, mesmo nos países centrais. Na Argentina, o FMI endossou até o momento todas as medidas de austeridade neoliberais adotadas por Javier Milei.
É possível que os países neoextrativistas fiquem por um bom período presos ao neoliberalismo. É também possível que o neoliberalismo e o pós-neoliberalismo coexistam em condições desiguais durante muito tempo, estratificados de acordo com o poder e a autonomia relativa de cada país. Talvez a própria transição energética tome o caminho arriscado de acontecer em ritmo desigual entre os países do Norte e do Sul. Sem mencionar a convivência provável entre ordens neoliberais ainda democráticas e ordens autoritárias, e entre ordens pós-neoliberais democráticas e ordens pós-neoliberais autoritárias. Na transição para uma reorganização pós-neoliberal persistem dois elementos do arranjo neoliberal, contra os quais o novo progressismo se levantou: desigualdades insustentáveis e meio ambiente à beira do colapso.
Há uma sobreposição de riscos e urgências. É difícil pensar em algo muito diferente de um novo Bretton Woods para evitar guerras de caráter mais ou menos generalizado no momento atual. Ao mesmo tempo, para que um novo Bretton Woods possa acontecer, é preciso antes que um dos lados da divisão em países ainda democráticos derrote e isole o outro lado.
A solução não parece próxima, não se podendo descartar nem mesmo a hipótese de que disputas hoje ainda democráticas venham a se tornar disputas bélicas. Se a experiência das décadas de 1920 e 1930 tem algo a ensinar é que, hoje, uma vitória da direita sem medo levará não só a uma destruição de formas democráticas de vida, mas aumentará a probabilidade de uma solução bélica para a crise atual.
O imperativo categórico de evitar a qualquer custo soluções bélicas para conflitos internacionais se confunde agora, em países ainda democráticos, com a defesa do novo progressismo. Somente uma vitória generalizada do novo progressismo em países ainda democráticos poderá preservar alguma democracia e poderá permitir a criação de um bloco capaz de negociar de maneira eficiente uma coexistência o quanto possível pacífica. Mais que isso e ainda mais fundamental: uma paz mais ou menos generalizada é condição inescapável de qualquer acordo global efetivo para enfrentar a urgência ambiental. Somente o novo progressismo organizado em bloco geopolítico pode negociar um acordo como esse com países autocráticos e de partido único.
Alcançar esses objetivos parece distante hoje. Mas segue sendo prioritário e primordial lutar para chegar lá e evitar o pior.
Enquanto esses objetivos não são alcançados, o que é possível fazer? Preparar-se para uma situação em que tais metas terão sido atingidas. Em termos teórico-práticos, isso significa, por exemplo, desenvolver ferramentas eficazes para que, quando vier o momento, elas estejam disponíveis para serem implementadas numa transição ecológica orientada pelo combate às desigualdades em todas as suas formas e dimensões.
Um possível futuro bloco geopolítico do novo progressismo não será homogêneo, mas caracterizado por grandes assimetrias de poder entre os países que poderão vir a compô-lo. De modo que, para além de configurações pós-neoliberais capazes de evitar a guerra e realizar a transição ecológica, há que desenvolver ferramentas para pensar a posição que países ainda democráticos do Sul Global podem ocupar nesse bloco geopolítico do novo progressismo.
Se as mudanças se limitarem aos países centrais, a própria ideia de uma ordem pós-neoliberal deixará de fazer sentido para a reconfiguração global do capitalismo, fortalecendo riscos sistêmicos. Se o alívio internacional para as democracias no Sul Global chegar e uma transição ecológica tiver pelo menos início, ainda assim esses países enfrentarão dificuldades, em razão da falta de ferramentas teóricas e práticas, como ocorreu quatro décadas atrás, quando o neoliberalismo ascendeu. E as coisas tendem a continuar assim, a menos que a luta por uma reforma efetiva da governança global – a econômica, em particular – venha acompanhada de um esforço concentrado para produzir tais ferramentas.
A teoria da dependência, elaborada nos anos 1960, buscou compreender a posição específica dos países em desenvolvimento, em particular os latino-americanos, na economia e na política mundial. No caso da América Latina, a teoria da dependência está intimamente associada com a diretriz da substituição de importações e com o “estruturalismo” típico do trabalho desenvolvido pela Comissão Econômica para a América Latina, a Cepal, posteriormente ampliada para incluir o Caribe.
Um caminho para produzir as ferramentas teóricas e práticas necessárias ao momento atual é renovar a teoria da dependência – caminho que deve partir de uma teoria econômica renovada. Mas, se o objetivo for compreender como o neoliberalismo realmente funciona, se for discernir com precisão as tendências de desenvolvimento de uma reconfiguração pós-neoliberal do capitalismo, é fundamental evitar uma postura economicista. Sem um esforço interdisciplinar colaborativo não será possível produzir as ferramentas teóricas e práticas que o momento exige.
Esse esforço não pode se limitar ao trabalho de um único grupo de pesquisa, nem de uma única região do mundo. Precisa ser uma plataforma global de pesquisa e colaboração. Não haverá de ser uma única equipe de pesquisa, em um único país ou região que conseguirá desenvolver novas ferramentas para compreender as atuais formas globais da dependência capitalista.
Além disso, uma teoria da dependência renovada não pode significar uma mera adaptação das antigas formulações às circunstâncias vigentes. Atualizações frutíferas devem tratar da identificação do neoliberalismo com o neoextrativismo em muitas partes do Sul Global como a diferença mais evidente em relação à situação das três décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, deve levar em conta não só as críticas que foram feitas à teoria da dependência como as autocríticas dos seus autores, a partir da década de 1980.
Neste texto, minha intenção não é apresentar os requisitos para uma teoria da dependência renovada, já que estes são também um tópico do debate colaborativo. O objetivo é apenas enunciar a proposta da construção de uma plataforma de colaboração orientada por uma referência histórica compartilhada e um objetivo comum. O que, aliás, a própria teoria da dependência sempre foi.
É possível que o novo Bretton Woods não aconteça. Talvez a armadilha neoextrativista permaneça ainda por longo tempo. A batalha para derrotar e isolar a direita sem medo nos países ainda democráticos será longa. Mas há algo que o Sul Global pode fazer mesmo assim: já que as analogias estão na moda, que o chamamento para um novo Bretton Woods venha acompanhado do chamamento para uma teoria da dependência renovada.
No momento das negociações de Bretton Woods, a substituição de importações e a teoria da dependência não existiam. Hoje, da mesma forma, faltam instrumentos para que o Sul Global entre em negociações com o objetivo de construir uma nova governança econômica global – ou qualquer tipo de governança global –, seja quais forem sua viabilidade e sua efetividade.
Em 1974, porém, quando a Nova Ordem Econômica Internacional foi proposta pelos países em desenvolvimento, a teoria da dependência já estava disponível – e foi efetivamente utilizada nas propostas apresentadas à ONU. Na busca de uma referência para a ação colaborativa, pode ser que 1974 seja um horizonte mais efetivo e interessante para o Sul Global do que 1944. Um esforço coletivo mundial como esse pode demorar a tomar corpo, como ocorreu nas negociações de Bretton Woods. Mas, por maior que seja a distância entre a timidez da ação e as urgências do presente, por mais intimidante que seja a magnitude de tantas tarefas simultâneas, proibitivo de fato é não fazer nada.
[1] Não se deve subestimar a importância do livro Globalistas: o fim do império e o nascimento do neoliberalismo, de Quinn Slobodian (Enunciado Publicações), que estabeleceu a compreensão do neoliberalismo nesses termos. Dito de maneira sumária: em termos da formulação de um projeto e de sua progressiva implementação por meio da ocupação de espaços institucionais estratégicos.
[2] Claudio Considera e Juliana Trece, À beira da extinção. Rio de Janeiro: FGV/Ibre, 7 de outubro de 2022 (Textos para discussão #6).
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