domingo, 16 de junho de 2024

Maria João Valente Rosa: “Envelhecer não é uma doença. E a reforma plena não faz bem à saúde

Vanda Marques

Uma das maiores especialistas em demografia explica que estamos a desperdiçar os mais velhos e a empurrá-los para o isolamento. A professora universitária aponta ainda as vantagens das migrações.

Quando lhe perguntam a idade responde 25 anos, porque essa é a vida que tem pela frente, explica à SÁBADO a demógrafa Maria João Valente Rosa. “Digo que tenho 25 anos porque é aquilo que sei que vou viver. Isso obriga-me a planear: o que é que eu vou fazer com estes 25 anos?” A professora da Universidade Nova de Lisboa explica que a forma como olhamos as pessoas mais velhas está incorreta. Defende que temos de saber tirar partido do seu conhecimento e que estamos a desperdiçá-las. A especialista sublinha ainda que a demografia nos ajuda a perceber as características da população e que devíamos mudar a forma como vemos o trabalho.

Com as novas medidas do governo, debate-se muito o problema da imigração. Como vê a situação das migrações em Portugal?
As migrações são uma realidade que nos acompanha ao longo do tempo, portanto não faz sentido dizermos que somos favoráveis ou não a algo que é uma realidade – esse é o primeiro ponto. Depois, há sempre um discurso muito carregado de carga ideológica e muitas vezes reduzimos aquilo que é complexo. A verdade é que não sei bem de que é que estamos a falar quando falamos de imigrantes, porque há vários tipos de imigrantes. Mas só vejo chamar imigrante a um certo tipo de pessoas e não às pessoas que vêm para cá viver. Não se diz que um francês, um alemão ou um inglês é imigrante, mas é. Mesmo assim, Portugal recebeu 118 mil imigrantes em 2022. Não somos dos principais países da União Europeia a receber imigrantes.

Mas a Europa precisa dos imigrantes?
A população só cresce por duas vias: pelo saldo natural – a diferença entre os nascimentos e as mortes, e em Portugal e na Europa desde 2012 que morrem mais pessoas do que nascem, logo o saldo é negativo. A outra forma é pelo saldo migratório. E este só aumenta se a diferença entre os que entram e os que saem for positiva e superior. Ora o que aconteceu, por exemplo, na Europa a 27 é que aumentou-se a população em virtude do saldo migratório. Além disso, os estrangeiros também contribuem para o saldo natural, porque acabam por ter cá os seus filhos. Aliás, é muitíssimo interessante ver que, entre 2022 e 2023, o número de nascimentos aumentou em Portugal e fez-se manchete de jornal com a notícia. Ora os nascimentos de mães de nacionalidade portuguesa diminuiu, enquanto o número de nascimentos de mães com nacionalidade estrangeira aumentou.

Mas ainda existem preconceitos?
O medo surge porque muitas vezes temos de atribuir aos outros muitos problemas que temos entre nós, nomeadamente em questões de segurança, ou de falta de emprego e dizemos: “Ah, os outros são os culpados.” Na demografia, a Europa está a perder protagonismo à escala mundial em termos de população.

Hoje, a Europa equivale a 9,4% da população mundial e nos anos 50, era 22%.
Sim, a Europa está realmente a diminuir e só não está a diminuir em alguns anos, mais uma vez à custa de saldos migratórios positivos. Precisamos de imigrantes e do ponto de vista económico não há dúvida – porque as pessoas preferem sempre falar da economia, apesar de ser óbvio em termos demográficos – mas as pessoas estrangeiras, grande parte deles, estão sobrerrepresentados em trabalhos menos atrativos, com remunerações mais baixas. Falamos de atividades como a hotelaria, a restauração, a agricultura intensiva, trabalhos no apoio a idosos, apoios domiciliares. Temos aqui uma série de áreas que, se estas pessoas não estiverem cá a ocupar estes lugares, não temos pessoas para os fazer. Além disso, no relatório do Observatório das Migrações refere-se, por exemplo, que os estrangeiros são importantes geradores de emprego, ou seja, há aqui uma dinâmica na economia com os restaurantes, as pequenas mercearias.

A demografia ajuda a perceber os problemas ou desafios de um país?
A demografia evidencia tendências e características da população, não os problemas. Os problemas já têm a ver com o modo como a sociedade está a lidar com essa tendência. Um bom exemplo é o envelhecimento. As causas que o motivaram são fantásticas, deveríamos estar radiantes com o envelhecimento – porque tem a ver com o desenvolvimento das sociedades, o que faz com que os níveis de mortalidade sejam mais baixos, por exemplo. Agora, se isto constitui um problema ou não, depende do modo como a sociedade se preparou para uma alteração do seu perfil de estrutura etária. Porque ninguém quer voltar ao tempo em que eu nasci, nos anos 60, em que Portugal era dos países menos envelhecidos da Europa.

Porquê?
Pelas piores razões. Porque éramos um país pobre, com níveis de mortalidade elevadíssimos, com escolaridade baixíssima, etc. Isto mudou e o que acontece é que muitas pessoas entendem o envelhecimento como um problema grave, porque não querem adaptar a organização da sociedade ao novo perfil etário.

Como assim?
Eu costumo dar este exemplo: imagine uma pessoa que é magra e tem uma roupa que lhe assenta lindamente. Depois, a pessoa engorda e continua a insistir em vestir a mesma roupa. É claro que lhe fica mal. E é isto que está a acontecer connosco. Continuamos a olhar para pessoas com 65 anos e classificamo-las como idosas, de acordo com o modelo que existia no passado e que funcionava. Mas era num passado em que a sociedade estava muito baseada na utilização intensiva de mão de obra física. Hoje, o que faz a diferença nas sociedades é o conhecimento, e o conhecimento não tem idade. Mas continuamos a achar que as pessoas com 65 ou mais não interessam do ponto de vista do seu contributo em ermos de mercado de trabalho.    

"Nos anos 60, Portugal era dos países menos envelhecidos da Europa pelas piores razões: éramos um país pobre"

Maria João Valente Rosa
O que é que seria mais importante de fazer para mudar isso?
Estamos a desperdiçar um capital humano riquíssimo. O ciclo de vida, dividido em três fases, segmentadas por balizas etárias que raramente se cruzam: formação; trabalho; reforma/descanso é um modelo herdado do passado. Era um tempo de vidas curtas, em média, em que a maior escolaridade e a aquisição de saberes não representavam requisitos sociais a valorizar e que o potencial humano correspondia essencialmente à força física para trabalhar. Hoje, em tempos de vidas mais longas, em média, e perante sociedades progressivamente mais complexas, a adoção deste modelo trifásico é altamente questionável. Por exemplo, a população em idade ativa está a diminuir, como refere a Comissão Europeia, [e esta atitude potencia] o desperdício de capital humano que representam os mais velhos.

Não estamos a falar de pessoas com problemas de saúde?
Não. Só que quando começamos a falar de envelhecimento, normalmente, acabamos por falar de doenças. É claro que a partir de uma certa idade há certas patologias que ganham prevalência, mas envelhecer não é uma doença. Portanto, colocamos um rótulo e existe um nome para isso: o idadismo, que é uma discriminação com base na idade. E não é só a idade mais avançada.

Porquê?
Por exemplo, o Eurobarómetro de maio de 2023 coloca a seguinte questão: “Quando uma empresa pretende contratar alguém e a escolha recai sobre dois candidatos com iguais competências e qualificações, quais dos seguintes critérios podem, em sua opinião, desfavorecer um candidato?” E o critério que desfavorece é a idade, quer seja mais jovem ou mais velho. Portanto, deveríamos estar a olhar para as competências. Embora, no caso das pessoas mais velhas, esta situação seja particularmente complicada porque estamos a retirar-lhe as alternativas.

Como assim?
A mensagem que é passada é: já não temos nada para lhe oferecer, por isso pagamos-lhe a reforma. Quase um: “Esteja sossegado, ou vá fazer ginástica, ou veja televisão, ou arranje uma atividade qualquer, mas nós já não esperamos nada de si”. Isto é retirar o propósito de uma pessoa. As pessoas vivem com propósitos. Precisam de uma razão para se levantarem de manhã. Quando isso não acontece temos problemas gravíssimos.

Quais?
O desenraizamento social, o isolamento social, porque muitas vezes estas idades também correspondem a uma altura em que se perdem amigos, perde-se o marido ou a mulher que morrem. Portanto, são idades em que a pessoa sente o seu mundo a começar a fechar. Depois, existe a vulnerabilidade financeira. Porque muitas destas pessoas estão dependentes das transferências sociais para não caírem na pobreza. Ou seja, a maioria das pessoas com 65 ou mais anos seria pobre, se não existissem transferências sociais, sendo a mais importante as reformas. É claro que as pessoas também não querem, depois de terem carreira de êxito, estar a pedir a alguém um emprego. Temos de encontrar outra alternativa. Contudo, a pessoa tem uma vida à sua frente, mas retiram-lhe o sonho.

Então o que se pode fazer?
Eu proponho um modelo de vida multifásico. Temos a fase inicial de formação [juventude], mas depois precisamos de continuar a formação ao longo da vida. O que nós aprendemos na escola não é suficiente, porque a sociedade está em permanente transformação. No fundo, seria o exercício de várias atividades profissionais ao longo da vida, não necessariamente em continuidade com as atividades até aí desenvolvidas, e adaptadas à evolução das capacidades de cada um. Teríamos pausas [sabáticas] para a reorientação de planos profissionais e de vida, independentemente do nível de formação, subsidiadas através de bolsas, a distribuir ao longo da vida adulta. Porque o que fazia aos 30 anos e se adorava, aos 40 se calhar já não se gosta assim tanto. Uma pausa é algo muitíssimo importante para a pessoa repensar. Imaginando que hoje sou carpinteiro e amanhã gostaria de ser cozinheiro, o que devo fazer. A formação em todas as fases da vida adulta, de atualização e de aquisição de novos saberes transversais de capacitação financeira, digital, estatística ou outra. E trabalharíamos menos horas, o que não reduz a produtividade. Repare, nós trabalhamos, em média, mais nove horas por semana que os alemães e não somos mais produtivos por causa disso.

Mas em termos económicos não seria prejudicial?
Na verdade, nunca ninguém se questionou sobre quanto custa a existência do atual modelo. Eu digo que é mais caro o atual do que o que proponho. Além de contribuirmos para uma sociedade mais harmoniosa e com maior bem-estar. Porque para resolver os problemas da Segurança Social usam-se paliativos: ou se aumenta as contribuições ou se diminuem as pensões, mas não se discute o que é importante. Em termos económicos, isto funcionava porque o custo da situação que temos é fortíssimo, a começar pelo desperdício de capital humano. As Nações Unidas já avaliaram o impacto sobre a saúde de sair do trabalho e é enorme. Envelhecer não é uma doença. E a reforma plena não faz bem à saúde. Precisamos que todos tenham um papel na sociedade.

Já disse que em Portugal faz diferença nascer-se homem ou mulher, continua a ser assim?
As mulheres entraram em força no espaço público. Como eu costumo dizer, os homens não entraram com a mesma força no espaço privado. Portanto, eles têm de entrar com a mesma força no espaço privado. As mulheres apostaram muito na sua escolaridade, neste momento já são mais escolarizadas do que os homens. Isto não é uma guerra de sexos, não é disso que eu falo, mas, na realidade, há situações que são, no mínimo, muito complicadas fora de casa. E, por exemplo, quando olhamos para algo que é importante para todos que é o nosso salário, percebemos que, para idênticas qualificações, as mulheres ganham menos que os homens. Sendo que é interessante que essa diferença é particularmente elevada quando falamos de cargos superiores. Por exemplo, na vida académica, há mais mulheres com doutoramentos do que homens, mas há mais professores catedráticos – são 75,7% de homens, contra 24,3% de mulheres. Fica aquela ideia de que só existirá realmente igualdade entre sexos quando um dia tivermos uma CEO mulher incompetente à frente de uma empresa. 
 
Fonte: https://www.sabado.pt/entrevistas/detalhe/maria-joao-valente-rosa-envelhecer-nao-e-uma-doenca-e-a-reforma-plena-nao-faz-bem-a-saude?&utm_source=Newsletter&utm_campaign=Editorial_S%c3%a1bado_EdicaoManha+-+Alive&utm_medium=email&sfmc_segment=Alive&sfmc_term=Alive##utm##

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