Joelma Ferreira*
“Sem omí a panela não vai para o fogo, sem omí a comida queima”. O manifesto, reverberado por dona Lurdinha, mulher negra, matripotência, marisqueira artesanal da comunidade tradicional pesqueira e quilombola Acupe, localizada no Recôncavo Baiano, reflete a essencialidade da água na sua função mais óbvia e tão necessária para as famílias negras brasileiras. Ela também nos apresenta “omí”, que carrega consigo um reencontro com a língua yorubá e resgate da oralidade e da memória ancestral. “Omí” é água.
Além desses dois ensinamentos, que transbordaram da sua vivência afrodiaspórica, em uma análise mais profunda poderíamos traduzir que a existência se extinguiria sem água. As formas de vida conhecidas seriam dizimadas, uma vez que a água é o elemento central e estruturador da sobrevivência e desempenha papéis vitais na dinâmica territorial. Água é fundamento nas comunidades tradicionais.
De acordo com João Augusto dos Reis Neto, Mestre em educação pela Universidade Federal de São João del Rei, a água está relacionada com toda a nossa experiência de vida, já que desde o útero de nossas mães vivemos da água. Desde a concepção a água está em nós. Na encruzilhada sagrada da vida, que também pertence a Oxum, no interior de nossas mães, somos envolvidas pelas águas sagradas. Ali, na cabaça-útero, é que nós crescemos. A água é a nossa primeira morada.
Confluindo nessa mesma cosmopercepção, a água é a nossa primeira necessidade e o recurso capaz de explicar como nós ocupamos o espaço a partir dessa relação. Em Acupe, por exemplo, os poços cacimbas, ou cisternas comunitárias como são cotidianamente denominadas, estão também nessa dimensão. Sua presença em pontos estratégicos do território revela como a população construtora dessas tecnologias sociais formaram núcleos tradicionais considerando a possibilidade de obter água, condição substancial para estabelecer vínculos permanentes com a terra e desenvolver sistemas agroalimentares sustentáveis.
Por isso a importância do estudo “Água porque te quero – a qualidade da água das cisternas de Acupe”, realizado por meio do edital de apoio a iniciativas relacionadas com água, saneamento e higiene em territórios populares no Norte e Nordeste, promovido pela Habitat Brasil. O material político-pedagógico apresenta um estudo sobre a qualidade da água dos principais pontos de coleta da comunidade, destacando o potencial hídrico.
O objetivo da publicação é não apenas mostrar os resultados das medições realizadas, mas, também, pensar ações estratégicas para a proteção do território. As omissões do poder público somadas às ações de exploração do território resultaram no descaso e abandono das principais cisternas da comunidade, ameaçando nosso modo de existir e interagir com a terra. Iniciativas como essa tornam-se uma referência de como é possível fortalecer organizações locais que desenvolvem um trabalho essencial para a garantia e a luta pelo direito à água, acesso ao saneamento e demais direitos fundamentais. Um estudo realizado pelo Trata Brasil em 2022 trouxe à tona dados muito preocupantes: aproximadamente 35 milhões de brasileiros ainda não contam com água tratada em suas residências, enquanto mais de 100 milhões não têm acesso a serviços de coleta de esgoto. Aqui se faz necessário destacar quem é mais afetado por essa situação: a população negra, pobre e periférica.
A água é a nossa primeira necessidade e o recurso capaz de explicar como nós ocupamos o espaço a partir dessa relação
Esses projetos trazem esperança de um futuro mais digno para essas comunidades, mostrando que, com esforço coletivo e protagonismo das lideranças locais, é possível democratizar o conhecimento sobre o tema e pautar de forma incisiva as problemáticas acerca dessa falta de acesso a direitos básicos.
Na análise dos dados, realizada pelo Laboratório Bahia Analítica em um minadouro e em cinco cisternas do local, foram identificadas duas cisternas com bactérias presentes em fezes de animais e humanos e com quantidades elevadas de ferro e cobre, o que provocou a desativação de ambas para o consumo.
Existe um provérbio africano que diz “a água suja não pode ser lavada”. Por isso, cabem estudos e soluções baseadas nos ensinamentos da própria natureza para assegurar o acesso à água limpa e segura. Questões como poluição, escassez de água, gestão inadequada dos recursos hídricos e mudanças climáticas estão colocando pressão sobre os sistemas de água em muitas comunidades. Sobretudo nas comunidades tradicionais que, historicamente, vivem conflitos e desafios para acessar o direito à água.
Outro ponto relevante referente às comunidades tradicionais sobre a preservação dos corpos d’água está relacionado à cadeia de uso desse bem natural, que passou a ser tratado como recurso dotado de valor econômico, mediante a gama de interesses lucrativos e devastadores. Essas comunidades muitas vezes mantêm práticas ancestrais de gestão e conservação da água, baseadas no respeito ao sagrado, ao meio ambiente e possuem a compreensão de sua importância para a sobrevivência de seus povos, sendo elas responsáveis pelo que ainda temos de preservação, encantamento e diversidade ambiental.
Contudo, o “omí” que alimenta e que fundamenta a sobrevivência é finito. Sua finitude manifesta a fragilidade e brevidade da vida. É vital que reconheçamos a importância de cuidar e preservar esse recurso necessário para garantir não apenas nossa própria existência, mas a sustentabilidade dos territórios para as gerações futuras, que, assim como dona Lurdinha, dependerão da água nos afazeres básicos do dia a dia.
*Joelma Ferreira é cofundadora e diretora-executiva do Instituto Rainhas do Mar, e Marina Cysneiros é Assessora de projetos da ONG Habitat para a Humanidade Brasil.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2024/06/01/omi-que-alimenta-a-agua-como-fundamento-da-sobrevivencia?utm_medium=email&utm_campaign=03062024_a_nexo&utm_content=03062024_a_nexo+CID_63aa5ffa14a645047f2d47b405744342&utm_source=Email%20CM&utm_term=nexo
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