Por Mariana Vick
Chuvas no RS: pessoas tentam atravessar ruas alagadas no bairro Navegantes, em Porto Alegre — Foto: Carlos Fabal / AFP
Iporã Possantti, engenheiro ambiental e hidrólogo, afirmou ao Nexo que sente como se tivesse sido “treinado por toda a vida” para o desastre que atinge o Rio Grande do Sul. Doutorando na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) em Porto Alegre, ajudou a criar, em maio, a plataforma “Cheias do Rio Grande do Sul”, com dados e mapas sobre projeções de inundações. As informações ajudaram a população a tomar decisões nos piores dias da crise.
“Psicologicamente, foi muito difícil. Era como se eu estivesse num painel de controle. Tinha que empregar um espaço mental muito grande. Não parava nunca e dormia só por puro cansaço”, afirmou o hidrólogo. Mesmo com o fim da fase emergencial das cheias, o trabalho continua. “A reconstrução do Rio Grande do Sul deve ser pensada a partir da adaptação climática”, disse.
Possantti é o terceiro entrevistado da cobertura especial que o Nexo faz para dar espaço a profissionais que estão na linha de frente da tragédia no Rio Grande do Sul. A iniciativa traz entrevistas com representantes de diferentes categorias que contam quais são os desafios de trabalhar neste momento e como o desastre os afetou. Mostra também o que os motiva num cenário de tantas adversidades.
O que te motivou a ser hidrólogo?
IPORÃ POSSANTTI A profissão de hidrólogo ainda não é regulamentada. É muito comum que pessoas que estudaram engenharia — civil, ambiental, hídrica — vão para o lado da hidrologia. Sou engenheiro ambiental de formação. Quando me alistei no vestibular — faz 14 anos —, a engenharia ambiental era tida como uma profissão do futuro. Hoje ela é uma profissão do presente. Estudamos na faculdade duas frentes: uma envolvendo saneamento e outra envolvendo questões ambientais maiores. Nessas questões mais amplas, existe a ciência da água, que é a hidrologia. Essa ciência é fascinante e me atraiu muito na graduação. Por isso, na pós-graduação, fui me envolvendo com a interface entre ciência e aplicação, que é a gestão dos recursos hídricos. Estudo um desastre silencioso, que são as estiagens — a escassez de água. É um pouco irônico que eu tenha tido destaque com o excesso de água que temos agora no Rio Grande do Sul. De qualquer forma, são dois extremos da mesma moeda.
Quais são os desafios de estar na linha de frente neste momento, cobrindo a tragédia no Rio Grande do Sul? Como foi a construção da plataforma?
IPORÃ POSSANTTI Existe uma piada na hidrologia de que existem os hidrólogos secos e os molhados. Alguns estão no campo, medindo o nível de água — fluxos, chuva, vazão, unidade do solo —, e são os hidrólogos molhados. Outros, os secos, estão nos computadores, mapeando e modelando previsões de níveis, simulações e escoamentos. Sempre tentamos fazer as pontes entre esses dois grupos. Eu, pessoalmente, gosto do campo, mas sou mais hidrólogo seco do que molhado. Gosto de transformar os dados que vêm do campo em informações úteis para a tomada de decisão.
A história da plataforma que criamos na crise de maio é interessante. O instituto em que faço pesquisa como doutorando [o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS] tem um grupo que faz modelagem dos dados dos meteorologistas, assimilando as previsões de chuvas e simulando no computador o funcionamento dos rios e das bacias. Com isso, conseguimos ter estimativas do nível da água.
Esse engenheiro, que também é hidrólogo, o Matheus Sampaio, orientado pelos professores, obteve nos dias 1º e 2 de maio [primeiros dias da crise no Rio Grande do Sul] níveis que me deixaram assombrado. Sabíamos que estava acontecendo um desastre grave na região serrana, mas eu não tinha noção, naquele momento, de que os níveis poderiam subir tão rapidamente em Porto Alegre e na região metropolitana. Quando vimos aqueles dados, ficamos muito preocupados. Sou conhecido como o hidrólogo dos mapas. A engenheira Sofia Moraes, também hidróloga, falou que a gente tinha que fazer um mapa logo — porque, em 2023, a gente tinha feito um mapa, mas depois no desastre. Agora, a gente tinha que fazer antes, porque ele poderia ajudar muito na tomada de decisão. Fizemos o mapa, divulguei num blog — o site caiu depois de tantos acessos — e ele acabou sendo também divulgado num grande jornal do Rio Grande do Sul. Nossa chamada inicial era que a população preparasse uma eventual evacuação, porque, se o sistema de proteção contra cheias falhasse, milhares de pessoas ficariam ilhadas ou seriam atingidas pelas águas. E aconteceu o que a gente tinha previsto. Foi assombroso, como um filme. Todos os sistemas de contenção falharam em Porto Alegre nos dias 3 e 4 de maio. Os diques e casas de bomba entraram em colapso. A água invadiu as casas das pessoas em Canoas, São Leopoldo e Porto Alegre. Botei o pé na água para ver de perto a coisa acontecer, e vi que o que tínhamos feito tinha sido importante, porque diversas decisões tinham sido tomadas em função dos mapas que a gente tinha feito.
Abriu o sol no dia 6 de maio, e o satélite conseguiu capturar de cima o que tinha acontecido. A partir de então, um grupo grande de pesquisadores da UFRGS, inclusive egressos, começou a acompanhar [a situação], ainda de forma desestruturada. No início foi bem estressante articular tantas pessoas. Mas, aos poucos, no dia 10, a gente conseguiu lançar, via plataforma, um repositório das iniciativas diversas de voluntários e pesquisadores. Foi um esforço muito grande, envolvendo muitas mãos. E a informação foi muito utilizada. Quando já tinha passado o pico da primeira cheia, no dia 6 — porque teve uma segunda cheia depois, no meio do mês —, os resgates estavam sendo finalizados. Era uma fase, agora, de abrigos. O mapa interativo que a gente fez, usando uma ferramenta do Google, nos revelou que naquele dia a gente teve 500 mil visualizações. Tive retornos de pessoas dizendo que alguns abrigos importantes, como um no estádio Gigantinho, em Porto Alegre, haviam sido cancelados porque o mapa dizia que a região iria inundar — e de fato foi inundada. Produzimos a informação num tempo ágil o suficiente para que decisões fossem tomadas e resgates fossem prevenidos.
Como o desastre afetou seu cotidiano? Tem sido possível separar trabalho e vida pessoal num momento como este?
IPORÃ POSSANTTI Tenho certeza de que o que passei foi moleza comparado ao que outras pessoas passaram, fazendo resgate ou trabalhando no saneamento básico — que não podia parar de jeito nenhum, porque as pessoas precisavam ter água potável, e isso foi crucial para que a tragédia não fosse pior. Tenho certeza de que o que passei foi relativamente mais fácil. Mas, de qualquer forma, psicologicamente, foi muito difícil. Era como se eu estivesse num painel de controle. Tinha que empregar um espaço mental muito grande. Não parava nunca e dormia só por puro cansaço.
A primeira semana foi realmente muito estressante em função da desorganização [da plataforma]. Não tínhamos protocolos estruturados até a segunda semana. Mas foi um momento para o qual, ao mesmo tempo, eu sentia que estava treinado. Apesar de todo o estresse, senti uma gratidão grande por poder exercer o trabalho de hidrólogo. E, na verdade, conhecer a hidrologia não é suficiente. É importante também ter uma rede de informação, conhecer outros contatos. Tenho colegas que são hidrólogos, como eu, mas que não estavam numa posição como a minha, de ter que articular tantos grupos. Essa tarefa coube a mim e a outras pessoas — como a arquiteta Laura Azeredo, o arquiteto Guilherme Iablonovski, a professora Geisa [Rorato], da Faculdade de Arquitetura, a professora Tatiana [Silva], do Instituto de Geociências —, diversos pesquisadores de várias outras instituições, não só da UFRGS, mas externas. Tivemos muitas lideranças. Mas, na minha história, foi um momento em que me senti um pivô de muitos nós. Era um papel que exigia minha capacidade profissional e analítica, científica, para entender o que significavam as informações, mas também a capacidade de articular os movimentos. Foi um período que vai ficar na minha memória pelo resto da minha vida.
O que mais te surpreendeu nas últimas semanas? Há algo que o sr. nunca havia visto nos seus anos de trabalho?
IPORÃ POSSANTTI Diversas coisas me impressionaram. Não me surpreenderam, mas me impressionaram. Os fenômenos que vimos são sem precedentes. Não tem registro histórico do que aconteceu. Tivemos uma cheia grande em 1941 e outras cheias inferiores a 1941 depois. Mas esta de 2024 foi extraordinária. Superou 1941 em todos os lugares, sem exceção — talvez alguma exceção, mas na maior parte dos lugares, os níveis observados foram superiores a 1941. Choveu muito. Tivemos uma chuva generalizada, persistente, que foi sem precedentes, que deixou um sinal muito claro da mudança climática. Tive acesso a um gráfico que está disponível faz meses, que é o gráfico da temperatura média dos oceanos nos últimos meses. Ano passado bateu todos os recordes [de temperaturas], e, neste ano, todos os meses bateram os recordes do ano passado. Temos uma escalada de aumento da temperatura dos oceanos, o que é claramente um sinal grave, que pode ser cada vez pior em relação à mudança climática. Esses sistemas são não lineares. Eles podem atingir certos limiares e mudarem de forma irreversível. Isso me deixou impressionado.
Mas o que me impressionou, talvez, mais, e trouxe sentimentos negativos, foi o despreparo informacional das instâncias de governo no Rio Grande do Sul. Esta é uma crítica séria, mas todos sabem que é justa. Não é uma crítica frívola. Houve um apagão de dados quando a gente mais precisava. Eu mesmo chamei pessoalmente a água entrando no Centro Administrativo do Estado do Rio Grande do Sul, e depois fiquei sabendo que essa mesma água inundou o subsolo do prédio, onde fica a central do data center do estado. Nesse momento caíram os sites pelos quais acessávamos informações importantes. Só conseguimos acessá-las [depois] porque tínhamos cópias já feitas desses dados. Foi uma cena de filme — cérebro do governo do estado sair do ar porque entrou água.
A Prefeitura de Porto Alegre e o Dmae (Departamento Municipal de Água e Saneamento) estavam entrando em colapso. Não havia decisões acertadas por muito tempo. Sei que o pessoal do Dmae é muito competente, por isso, o que concluí — e o que outras pessoas concluíram — é que houve má gestão, falta de seriedade em relação ao que estava acontecendo. Já tínhamos tido um exercício em 2023. Tivemos no ano passado um momento em que o Guaíba subiu e foi necessário fechar as comportas e usar as casas de bomba. Tivemos vários sinais da fragilidade desse sistema.
Foram muitas emoções, digamos assim. Tanto pelo lado do fato de que houve um desastre ambiental substantivo na região — não foi brincadeira o que aconteceu — quanto pelo desespero. Enquanto, por um lado, era um grande desastre acontecendo, por outro, havia uma baixa capacidade de resposta, na minha opinião, em relação às informações e à gestão daquele problema.
O que tem te motivado agora? Qual é a importância dos profissionais de hidrologia neste momento?
IPORÃ POSSANTTI A água é essencial. Ninguém vive sem água. É natural que as pessoas que trabalham com água sejam importantes de alguma forma. Parece que é preciso ter um desastre como este para que essa ciência seja levada a sério e valorizada. E essa ciência não envolve só a água nos rios: envolve a água no solo, nas plantas, nas florestas, no ar — o que já é do campo da meteorologia — e nos oceanos. Com a mudança climática, o ciclo hidrológico vai ficar mais potente e com mais energia. Os fluxos vão ser mais intensos. Sem dúvida, este é o momento para conseguirmos gerenciar melhor esses recursos.
Faço de novo uma crítica ao meu estado, o Rio Grande do Sul, que está atrasadíssimo em relação à Política Nacional de Recursos Hídricos. Não há no estado agências de bacia hidrográfica. Isso é um escândalo. Parte do caos e do apagão de dados que tivemos ocorreu um desleixo com essa política. Criar e valorizar agências para as bacias é valorizar a profissão dos hidrólogos.
Talvez uma coisa que seja importante demarcar é que a reconstrução do Rio Grande do Sul deve ser pensada do ponto de vista da mudança climática e da adaptação climática. Não podemos reproduzir a visão anterior. É possível sermos mais ousados. Nossos antepassados, que construíram nossas cidades, não conheciam a paisagem como conhecemos hoje. Não podemos reproduzir os mesmos erros. Temos condições de pensar uma nova estrutura de ocupação territorial, que valorize os serviços ecossistêmicos que as planícies de inundação expressam. Muitas infraestruturas entraram em colapso no Rio Grande do Sul. Mas teve uma que não entrou: o Parque Estadual do Jacuí.
Esse é um parque que fica na planície de inundação do rio Jacuí, onde pouquíssimas pessoas foram afetadas, porque é uma unidade de conservação. É uma solução — as chamadas soluções baseadas na natureza — na escala de paisagem. É pensar a paisagem, lê-la e entender as funções de suas partes. Reproduzir os mesmos erros — construir diques mais altos, infraestruturas mais complexas, mais caras… Claro que não coloco essa questão como uma questão binária — ou isso ou aquilo —, e acho que existem nuances, mas depender cada vez mais da infraestrutura física do século 20 é um erro. Acredito que a gente pode aprender com essa crise e construir uma ocupação territorial no Rio Grande do Sul que seja mais adequada aos novos paradigmas e visões de mundo do século 21.
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