Marcelo Roubicek
Manifestante
Estudos estimam efeitos do direito à interrupção voluntária da gravidez sobre indicadores como nível de educação, trajetória profissional e condições financeiras das mulheres.
O tema do aborto mobiliza discussões em diferentes âmbitos: de saúde, de direitos humanos, na área jurídica, de moralidade, de religião, de política e outros. Para além desses aspectos, há diversos estudos que buscam entender os impactos econômicos de restringir ou ampliar o direito ao aborto.
O Congresso Nacional brasileiro discute em 2024 a proposta do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e de outros 31 deputados e deputadas — a maioria homens integrantes do PL — que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos três casos em que o procedimento é legal no país: gravidez resultante de estupro, quando a gestação traz risco à vida da mulher ou quando o feto é anencéfalo.
Na prática, a proposta busca dificultar ainda mais o aborto no Brasil — um país com uma das legislações mais restritivas do mundo. Neste texto, o Nexo reúne alguns dos estudos que tentam entender os efeitos econômicos de limitar a legislação sobre a interrupção da gravidez.
A questão da educação
Em 1996, os economistas Joshua Angrist — vencedor do Nobel de Economia em 2021 — e William Evans publicaram um artigo que investigava os efeitos econômicos, para adolescentes, de retirar obstáculos ao aborto.
O estudo olhou para mudanças em leis estaduais nos EUA que aconteceram nos anos 1960 e 1970, favorecendo em alguma medida o acesso ao aborto. Isso antes da decisão Roe contra Wade, da Suprema Corte, que em 1973 tornou a interrupção da gravidez um direito constitucional no país (até ser revertida em 2022).
Os economistas compararam casos de adolescentes que foram expostas a essas mudanças com aquelas que continuaram sujeitas a restrições mais fortes. Uma das conclusões é que as taxas de fertilidade em adolescentes caíram nos lugares com maior acesso ao aborto — assim como o casamento na adolescência.
Mais que isso, a probabilidade de continuar estudando era maior para as jovens com acesso ao aborto. O efeito era maior entre adolescentes negras, que aumentaram as taxas de conclusão do ensino médio e elevaram a taxa de ingresso no ensino superior após as mudanças legais.
Diversas outras pesquisas feitas após Angrist e Evans avaliaram de forma parecida os impactos de retirar restrições ao aborto e chegaram a conclusões parecidas: maior acesso ao aborto geralmente leva a impactos positivos sobre a educação das mulheres.
Em 2021, a economista Kelly Jones publicou um estudo similar, com algumas diferenças metodológicas. Jones concluiu que os efeitos do acesso ao aborto sobre a educação eram ainda maiores que os estimados nos anos 1990.
Por exemplo, jovens americanas com acesso ao aborto entre as idades de 15 e 23 tinham uma chance 41% maior de ingressar no ensino superior e 72% maior de conseguir um diploma universitário, na comparação com aquelas sujeitas a condições mais restritas. Mais uma vez, o efeito era maior para jovens negras.
O impacto sobre o emprego
Uma realidade conhecida — e amplamente comprovada pela ciência — é que mulheres costumam dedicar uma parcela significativa do tempo ao cuidado dos filhos, muitas vezes em detrimento de uma participação maior no mercado de trabalho. Nessa mesma linha, pesquisas econômicas indicam que o acesso ao mercado de trabalho também muda a depender das restrições ao aborto.
No mesmo estudo citado acima, Jones estima que entre jovens que engravidaram não intencionalmente antes dos 20 anos, a probabilidade de estar trabalhando entre os 24 e os 45 anos aumenta em quase 40% quando se tem acesso ao aborto. Da mesma forma, a probabilidade de conseguir um cargo mais alto também aumenta significativamente (150%).
Em 2023, o economista Ali Abboud chegou a resultados similares, também a partir de casos de estados que afrouxaram restrições ao aborto nos EUA nos anos 1960 e 1970. Abboud também concluiu que maior acesso ao aborto tem efeitos positivos sobre as carreiras de mulheres, inclusive com ganhos salariais — sobretudo para mulheres negras.
Há também pesquisas que, num nível agregado, indicam que possa haver um efeito macroeconômico relevante ao retirar restrições ao aborto, como maior participação de mulheres no mercado de trabalho e maior massa salarial. Esse argumento apareceu em fala de 2022 da secretária do Tesouro americano, Janet Yellen.
“Eliminar o direito de mulheres de tomar decisões sobre quando e se vão ter filhos poderá ter um efeito muito negativo sobre a economia e faria as mulheres retrocederem décadas”, afirmou Yellen em uma audiência do Senado americano.
Outros efeitos sobre as finanças
Muitos estudos — como os citados acima — fazem comparações entre mulheres em estados americanos com maior e menor acesso ao aborto, normalmente tomando como base as mudanças legislativas dos anos 1960 e 1970. De modo geral, as conclusões apontam para os mesmos resultados: um maior acesso ao aborto gera efeitos positivos sobre a educação, a ocupação e a remuneração das mulheres, sendo todos os impactos positivos maiores para mulheres negras.
Mas há também outros métodos usados para tentar captar os impactos econômicos de restringir ou não o aborto.
Em 2022, as pesquisadoras Sarah Miller, Laura Wherry e Diana Foster publicaram um artigo em que usam dados do Turnaway Study, uma pesquisa que acompanhou durante cinco anos cerca de 1.000 mulheres que procuraram 30 clínicas de aborto nos EUA entre 2008 e 2010.
Miller, Wherry e Foster compararam as mulheres que conseguiram um aborto pouco antes do limite de tempo de gestação permitido por lei (que varia a depender do estado americano) com aquelas que não conseguiram por estar logo acima desse limite.
A conclusão é que mulheres que não conseguiram abortar tiveram dificuldades financeiras importantes nos anos seguintes. Essas dificuldades se manifestaram de diferentes maneiras, como maior chance de se endividar, piora no score de crédito e atrasos no pagamento de contas.
“Nosso estudo indica que as leis que impõe limites de gestação ao aborto resultam em piora da trajetória econômica e financeira das mulheres que têm um aborto negado”, afirmam as autoras. Elas também afirmam que “é provável” que os efeitos negativos sejam repassados para os filhos daquelas que não conseguiram abortar.
Outros estudos também indicam que, em lugares com acesso ao aborto, há uma tendência menor de que crianças crescam na pobreza ou dependam de assistência do poder público.
O aborto em debate no mundo e no Brasil
Os estudos acima são apenas alguns dos que tratam dos impactos econômicos do aborto. As pesquisas citadas tratam apenas de dados colhidos nos EUA, o que significa que é possível que os resultados sejam influenciados por fatores locais — como, por exemplo, o fato de que o sistema legal americano não prevê uma licença maternidade-remunerada obrigatória. Ainda assim, é possível tomar os casos americanos como referência no Brasil.
Além disso, há discordâncias internas importantes entre economistas. Por exemplo, há aquelas que dizem que a maior parte das melhorias nas condições socioeconômicas das mulheres na segunda metade do século 20 pode ser atribuída ao avanço de métodos contraceptivos; de outro lado, há quem diga que esses movimentos são mais relacionados com o acesso ao aborto.
Ainda assim, a economista americana Caitlin Myers, da Middlebury College, disse à revista New Yorker em 2022 que “economistas como um todo não discordam muito” sobre os impactos que o acesso ao aborto pode ter sobre a educação, a carreira e as finanças de mulheres.
Em 2021, Myers ajudou a organizar um relatório assinado por 154 economistas e “pesquisadores com vasta experiência na área de inferência causal”, enviado à Suprema Corte dos EUA. Entre os signatários está a economista Claudia Goldin, da Universidade de Harvard, vencedora do Nobel de economia de 2023. O relatório resume a literatura a respeito dos impactos econômicos do aborto, defendendo que o acesso ao aborto gera efeitos positivos para mulheres.
O documento foi elaborado em meio ao debate sobre a decisão Roe contra Wade — que determinava que os governos estaduais não poderiam interferir em uma escolha individual da mulher. Em junho de 2022, a Suprema Corte americana derrubou a decisão, permitindo que estados proibissem o aborto no país, restringindo os procedimentos, na prática.
Dois anos depois, o Brasil discute o projeto de lei que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples. Isso em um contexto de um país que já restringe bastante o procedimento mesmo nos poucos casos em que ele é permitido por lei. Há diversas dificuldades em conseguir um aborto legal no Brasil: só 3,6% dos municípios oferecem esses serviços em suas redes de saúde.
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