domingo, 16 de junho de 2024

A tecnologia está desaparecendo?

Álvaro Machado Dias*

 Drones no chão durante a Korea Drone Expo 2024 em Incheon, na Coreia do Sul - Jung Yeon-je - 9.mai.24/AFP

Com onipresença de artefatos sofisticados no nosso cotidiano, tecnologia será sinônimo de cultura universal

Tecnologia é o conjunto de coisas com função prática que não entendemos direito como funcionam. Quando não entendemos e não enxergamos aplicação definida, chamamos de ciência. Já quando entendemos e conhecemos a função, chamamos de artefato.

O imaginário da tecnologia é como o da mágica. É esse tipo de incompreensão que conta. Tecnologia é aquilo que leva as pessoas a pensarem "eu não imaginava que isso era possível", em oposição à ciência, que leva a divagações do tipo "a capacidade humana é ilimitada".

Pessoas e países tecnológicos são aqueles que apresentam a mágica para seus pares, o que ocorre de maneira diametralmente oposta. Enquanto as pessoas estão principalmente situadas na esfera do consumo, os países estão no polo da oferta. Isso explica porque grandes futuristas desprezam gadgets. A ideia não é celebrar a prática de se tornar um produto vivo, mas compreender e orientar a lógica que gera vantagens competitivas a partir dos mesmos.

Outro aspecto da tecnologia é a sua temporalidade relativa. Costumamos classificar como tecnológicas as coisas aparentemente mágicas que surgiram após o nosso nascimento. Peça para alguém explicar como funciona um telefone. Exceto pelos poucos que leram e compreenderam Claude Shannon, a resposta será tediosa e vazia. Não obstante, o telefone não é visto como tecnológico, nem mesmo o celular sem conexão à internet, exceto por aqueles que lembram do seu surgimento.

Assim como o conceito de final de semana, que surgiu da junção do domingo católico com o shabat judeu no começo do século 20, a noção de tecnologia tem uma raiz antiga ("a partir de Sócrates, technē é utilizado para pensar sobre as conexões entre razão, fins e ação"), mas só ganhou espaço nas prateleiras mentais no começo do século 20. Até então, as pessoas não refletiam sobre diferenças culturais como nós, que automaticamente pensamos em tecnologia ao considerarmos as distinções entre a Califórnia e o Afeganistão, Tóquio e San'in (Japão).

Na segunda metade do século passado, discutia-se muito o impacto perceptivo das descrições que fazemos das coisas. Um exemplo muito utilizado pelos que acreditam que este impacto é imenso é o dos esquimós, com suas diferentes palavras para branco. Passadas algumas décadas, o consenso é que a riqueza conceitual de fato aguça a percepção, mas que o efeito tem teto baixo.

Não foi tanto o conceito de tecnologia que mudou nossa maneira de enxergar a realidade, quanto o fato de o mundo estar mesmo se tornando aceleradamente mais tecnológico, desde que o petróleo, a eletricidade e a linha de montagem passaram a dar o tom de nossas vidas e essa palavra passou a significar algo para a maioria.

A cada década, a velocidade de surgimento das coisas que julgamos tecnológicas aumenta, formatando subjetividades pelo uso, enquanto determina a relevância das nações na arena internacional pela oferta de bens de alto valor agregado e pelo incremento do seu potencial bélico. A aceleração tecnológica é o efeito agregado da aceleração de processos de transformação da realidade que Kevin Kelly decodificou com maestria.

Conforme Kelly argumenta, a tecnologia está cada vez mais concentrada, encapsulando mais informação e energia por unidade produzida do que nunca e muito menos do que em qualquer cenário futuro modelado consistentemente.

O celular tijolão é uma forma radicalmente específica de arranjar elementos que combinam outros de maneiras ainda mais particulares: a central de processamento (CPU), os circuitos integrados, a tela sensível ao toque, a bateria, o cartão SIM, os protocolos de telefonia, o sistema operacional e assim por diante.

Não existe um único grupo de pessoas no planeta capaz de criar um aparelho desses. Sua complexidade é tamanha que apenas uma rede distribuída de suprimentos pode gerar a informação organizada (peças) necessária para que os raros grupos capazes de montá-los tenham sucesso.

Cada componente exige muita energia na sua fabricação. O tijolão demanda bem mais do que a soma deles, smartphones multiplicam isso na base dez, enquanto óculos de realidade virtual o fazem na base cem. A aceleração tecnológica, que é a da informação por unidade produzida, converte-se em aumento crescente da demanda energética da humanidade, o que torna fundamental o desenvolvimento de tecnologias ainda mais avançadas (limpas).

Parece contraditório, mas esta é a única via politicamente aceitável para o problema. Frear o avanço tecnológico não está seriamente em pauta em país algum.

Como percebemos ao desmontarmos um celular, o principal ponto de contato de uma tecnologia é com outra e não com uma pessoa. Esta regra da aceleração tecnológica significa que, proporcionalmente, nossa relação com a mesma está diminuindo e não aumentando, como diria a intuição. Máquinas lidam com máquinas que possuem softwares que obedecem a pessoas. O distanciamento do "como" leva à aceleração das vantagens competitivas das pessoas, grupos e países que dominam uma parte disso e ao aumento da sensação de impotência de todo o resto.

Em comum, todos sentem a intensificação do senso de que vivemos uma era tecnológica, que só não é mais intensa do que em qualquer outro momento do futuro projetável. Isso não significa que a tecnologia tenda a se tornar cada vez mais ostensiva, como no imaginário dos Jetsons. Na minha visão, é o contrário. A orientação é em direção à invisibilidade.

Primeiramente, é preciso considerar que a onipresença de algo reduz a prática de pensar sobre a sua existência. Uma vez a maior parte das coisas a nossa volta pareça feita de mágica, a equivalência entre tecnologia e artefato será reestabelecida.

Depois, quase todo o mundo prefere o que se adequa às suas experiências cotidianas da realidade, em oposição àquilo que as coloca em xeque. O metaverso não decolou até agora porque requer que usemos um bloco de acrílico aquecido na cara.

À medida que dispositivos de boa ergonometria permitirem este acesso, a sobreposição de uma camada digital sobre a realidade percebida diretamente deverá decolar nos países mais ricos, levando à subsequente disseminação em escala global destes dispositivos, que por fora serão indistinguíveis dos óculos e lentes de contato com que estamos acostumados, ao contrário dos atuais headsets da Meta ou Apple.

Finalmente, as tecnologias efetivamente vão se tornando mais concentradas à medida que evoluem. Para visualizar isso, considere um filme em alta velocidade indo do estado atual das coisas até o horizonte do Big Bang. Percebe como nesta partícula de tamanho desprezível que lhe vem à mente concentra-se todo o cosmos?

Juntar celular, câmera, GPS, internet etc. em um só aparelho significa alterar o mundo nessa mesma direção, na contramão da entropia que existia quando cada coisa ocupava um lugar no espaço, tinha um manual de instrução e assim por diante. Mais energia concentrada significa menos dispersão pela superfície do planeta e, portanto, menor ostensividade material.

A mesma coisa deverá acontecer na robótica daqui a algumas décadas. Hoje temos sistemas robóticos muito específicos, em grandes indústrias e armazéns, enquanto engatinhamos no desenvolvimento de robôs antropomórficos igualmente limitados.

A tendência de longo prazo é a fusão de vários em um, gerando máquinas multifuncionais que diminuirão a visibilidade das geringonças, até porque cada uma delas valerá por centenas das anteriores. No mesmo sentido, neste ano foram lançadas duas soluções para um futuro sem celulares, o Rabbit r1 e o AI Pin. Nenhum deles deverá ter sucesso, assim como o Spacetop, o computador sem tela (a interface é por realidade aumentada). Mas isso não os impede de sinalizar a aproximação de uma nova fase na computação pessoal em que a visibilidade das partes e apps será bem menor.

A inteligência artificial não deverá servir de exceção. Conforme argumentei na coluna anterior, acredito que a IA seguirá o curso da web, conectando múltiplos algoritmos/softwares, que as pessoas irão consumir sem necessariamente saberem quem é o fornecedor de cada coisa. Assim, a IA deixará de estar tão associada a empresas específicas e passará a ser vista como parte da realidade comum, tal como a web para qualquer pessoa que tenha nascido nos últimos 20 anos. Aliás, a própria distinção entre IA e web será cada vez menor.

Se isto que disse acima está correto, existe uma relação inversa entre o quanto uma tecnologia é ostensiva e o quanto exerce de atração espontânea sobre aqueles que com ela não tinham contato.

"De acordo com um líder local, poucos meses após o início da oferta de internet por satélite (Starlink) na aldeia, os jovens Marubos (um povo isolado da Amazônia profunda) aderiram às redes sociais e alguns vêm assistindo à pornografia digital, ainda que isso não esteja ocorrendo de forma tão alarmante quanto originalmente divulgado por diferentes portais de notícias.

Fenômenos vigorosos como esse apenas são possíveis porque a oferta de internet é pouco intrusiva, assim como os tijolinhos de vidro usados para acessá-la. Compare mentalmente o grau de resistência gerado com o de uma proposta de mudança em seu padrão habitacional. É óbvio que a tecnológica traz muito menos oposição de grupo, apesar de ser tão ou mais transformadora.

Na virada do milênio, muitos apostavam que a internet iria trazer a harmonia e também homogeneizar pensamentos de grupo e culturas. Aconteceu o oposto. À medida que permite que encontremos ao menos alguns outros que pensam como a gente, por mais disfuncionais que sejamos, levou à multiplicação dos subgrupos e à oposição crescente na esfera pública.

O diagnóstico estava errado, mas a intuição de base não. A grande tendência da tecnologia é convergir à cultura universal. Em algumas décadas, ou menos, será impossível encontrar qualquer grupo organizado que não tome parte em sua dinâmica, e a possibilidade de existência de uma subjetividade independente de suas manifestações praticamente desaparecerá.

* Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alvaro-machado-dias/2024/06/a-tecnologia-esta-desaparecendo.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

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