sábado, 1 de junho de 2024

Tragédia no Rio Grande do Sul fez vítimas invisíveis que não foram reconhecidas

 José De Souza Martins*

 — Foto: Carvall

— Foto: Carvall

 

À medida que as águas baixam, emerge o principal da realidade. O problema da reconstrução social das comunidades e famílias nas áreas atingidas

A tragédia das inundações e escorregamentos no Rio Grande do Sul fez vítimas invisíveis que até este momento não foram reconhecidas pelos que se preocupam com o ocorrido. Neste caso, como em outros acontecidos no Brasil nos últimos anos, não são indivíduos. Os verdadeiros sujeitos da tragédia são sujeitos sociais, famílias e comunidades, sujeitos historicamente mais relevantes e menos reconhecidos da sociedade brasileira, cada vez mais ideologicamente individualista.

Os governos e a classe média, inquietos com essas ocorrências, pensam nos danos econômicos, nas perdas materiais, no desabrigo, no temor de que possam se tornar danos eleitorais. Desconhecem que os humanos não são coisas. São seres relacionais que se expressam em identidades sociais.

O empoderamento do neoliberalismo econômico, mesmo com a eventual e vacilante ascensão das esquerdas ao poder, confirmou, na crise do Sul, que nos fez sujeitos de uma alienação desumanizadora. O que induz à suposição de que verba pública e esmola são apropriados e suficientes para superar a adversidade. Veremos em poucos dias que o problema é outro. Quando se esgotarem os efeitos da caridade de urgência e começaram os complicados desafios do que é muito mais do que reconstruir casas, recolher lixo e remover lama.

Nossa sociedade vive, na tragédia gaúcha, mais um episódio de sua destrutiva crise por sua redução ao primado do PIB e do lucro fácil e falso. A tragédia do RS, assim como foi a de Minas e tem sido a das secas do Nordeste, bem como a dos efeitos da devastação ambiental na Amazônia, são produtos de uma concepção pobre de riqueza e de uma vazia concepção de problema social. Aqui, o social é adjetivo e secundário, economicamente não conta.

Quanto mais o Brasil se moderniza, do ponto de vista material e econômico, menos sensibilidade tem para reconhecer a identidade propriamente social e sociológica da vítima, a do brasileiro à margem do que é dominante. A maioria irrelevante tem tido acesso meramente residual ao que é propriamente o sistema econômico, em que se calculam ganhos, mas não se compreende que o ganho é o que sobra das irracionalidades da economia. Aqui, o prejuízo é parte do que resulta em ganho.

A história das crises econômicas no mundo mostra que o sistema, na indigente concepção atual, é mediado e definido por contradições fora de controle. O que vem acontecendo no Rio Grande do Sul e já também em Santa Catarina indica claramente que a natureza violentada reage em defesa de seu espaço, invadido e a ela usurpado, no pressuposto de que poder econômico e político é o mesmo que poder ambiental.

À medida que as águas baixam, emerge o principal da realidade: o problema da reconstrução social das comunidades e famílias nas áreas atingidas. A enchente destruiu as mediações materiais de uma sociabilidade que, no Sul, tem sido exemplar expressão da reforma agrária do século XIX, a da Lei de Terras de 1850, com a criação dos núcleos coloniais. A da infraestrutura fundiária da agricultura familiar e das belas cidades dela resultantes.

A situação no Sul não é consequência de pobreza. É consequência da equivocada destinação do dinheiro público a objetivos meramente econômicos e eleitorais. A guerrilha ideológica do economismo direitista tem tido por meta destruir a realidade e o imaginário pré-capitalista e familista de comunidade, que é o fundamento do progresso no Sul do país.

O imenso desafio desta hora é o recomeço da vida e a reconstrução da sociedade onde ela foi mutilada. Isso depende apenas da reconhecida criatividade das vítimas. No país inteiro, em situações adversas como essa, na boca do brasileiro comum, há, desde o século XIX, uma palavra que define sua concepção da vida, como luta contra as adversidades e os inimigos antissociais.

Não são muitos os países em que a vida é vista desse modo. São destinatários dela a família e os herdeiros e são seus heróis os antepassados. No Brasil subcapitalista, meramente econômico, não há heróis humanos em nosso passado, nem herdeiros da história da família e da comunidade em nosso futuro.=

Refazer a vida e começar de novo é o desafio das vítimas. Elas são os sábios em reconstrução social. Muitos dos solidários já estão atrapalhando, seja por se meterem onde são mais inúteis do que úteis, seja porque são oportunistas e aproveitadores, seja sobretudo porque não conhecem a densa visão comunitária de mundo das populações usualmente vitimadas por essas adversidades.

As vítimas precisam de apoio competente, com base no reconhecimento de sua visão de mundo, para reconstituírem sua sociedade alternativa e antagônica, baseada em valores que têm como primado a condição humana e o bem comum.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-tragedia-no-rio-grande-do-sul-fez-vitimas-invisiveis-que-nao-foram-reconhecidas.ghtml

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