Anselmo Borges*
Concretamente
nestes tempos de globalização, torna-se mais claro que não haverá paz
entre as nações sem diálogo inter-religioso. Como não se cansou de
repetir o teólogo Hans Kung: “Não haverá paz entre as nações sem paz
entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre
as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos
globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global,
um ethos mundial.”
O diálogo inter-religioso é mais do que
simples tolerância religiosa, pois é exigência do próprio Absoluto a que
todas as religiões estão referidas. Precisamos de todas as religiões
para tentar dizer melhor, embora sempre na gaguez quase muda, o Mistério
que sempre transcenderá o que dele possamos pensar e dizer. As
religiões estão referidas ao Absoluto, mas não são o Absoluto. Neste
sentido, o místico diria: Deus é “nada” de todas as religiões. Mestre
Eckhart pedia a Deus que o libertasse de “Deus”, isto é, dos seus
conceitos, imagens e representações de Deus.
Deste diálogo fazem
parte também os ateus, não os ateus vulgares, mas os ateus que sabem o
que isso quer dizer, porque são eles quem constantemente pode colocar,
tem colocado e coloca os crentes de sobreaviso quanto ao perigo da
superstição, da idolatria e da desumanidade que as religiões muitas
vezes transportaram e transportam consigo.
Quando se pensa na
coragem heróica necessária para, em tempos de hegemonia religiosa
confessional e sabendo que se corria o risco da prisão, da morte no
cadafalso e da “certeza” do inferno, ousar, em nome da dignidade humana,
do respeito para com Deus, das exigências mínimas da razão, lutar
contra a superstição e contra o ridículo clerical-eclesiástico,
surge-nos do mais íntimo e fundo de nós o sentimento de veneração e de
reconhecimento de “santidade” em relação a muitos daqueles que, a maior
parte das vezes em sentido pejorativo, ficaram na história como críticos
da religião e até ateus. Esses não são santos de nenhuma igreja, mas
são com certeza “santos” da Humanidade.
Impressiona que hoje o
cristianismo, que é uma fonte de liberdade e de libertação - estou
convicto de que é a maior na história da Humanidade -, para muitos já
não exerça fascínio. Surpreende que, frente a Deus, enquanto o Infinito é
a verdade do finito, grande número de homens e mulheres se mantenham
indiferentes ou até O recusem pura e simplesmente. Há múltiplas razões
explicativas desta indiferença e recusa. Uma delas, que não será a
menor, prende-se com a imagem de Deus transmitida pelos crentes. Muitas
vezes o Deus que aparece é um Deus menor, triste, invejoso, impeditivo
da liberdade, da autonomia, do novo, que envenena o amor, a alegria e a
criação. Depois, os crentes teriam de cindir a vida: a vida propriamente
dita e uns enclaves de beatice. Não se caminha livre, erguido, inteiro,
autónomo, solidário, na busca, correndo riscos. Como homens e mulheres
humanos, justos, criadores. Perante uma imagem de Deus que humilha e
atemoriza, ergue-se então, como escreveu o filósofo Carlos Díaz, a
tentação de “matar Deus com medo que Deus me mate a mim”.
Hoje, a
questão essencial é que se corre o risco de já nem sequer se colocar a
questão de Deus, nem sequer como questão. Ora, não é o que já está a
acontecer nesta nossa sociedade de imediatismo disperso, de
hiperactividade, num tempo descontinuado?... Como escreveu Byung-Chul
Han no seu recente livro Vita Contemplativa referindo-se a esta
sociedade: “A actual crise religiosa não se pode simplesmente atribuir
ao facto de termos perdido toda a fé em Deus ou determinadas crenças
terem passado a inspirar-nos desconfiança. A um nível mais profundo,
esta crise indica que estamos a perder cada vez mais capacidade
contemplativa. A crescente compulsão para produzir e comunicar dificulta
a permanência no contemplativo. A religião requer uma atenção especial.
Malebranche refere-se à atenção como a oração natural da alma. Hoje, a
alma já não ora. Pelo contrário, produz-se. É precisamente à sua
hiperactividade que se deve a perda da experiência religiosa. A crise
religiosa é uma crise de atenção.”
Espíritos eminentes preveniram
para os perigos, sendo urgente preparar-se para o pior. Václav Havel, o
grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer surpreendeu
muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global” e
“também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que
perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por
isso, que caminhe para a catástrofe. Karl Rahner, talvez o maior teólogo
católico do século XX - tive o privilégio de tê-lo como professor -,
perguntava: “O que aconteceria se a simples palavra ‘Deus’ deixasse de
existir?” E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte
que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por
ninguém, de que o Homem morreu.” Neste domínio, o perigo maior provém de
a questão de Deus já não ser sequer questão. Como escreveu o
historiador Georges Minois, o mundo parece encontrar-se hoje perante um
facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta
positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade
de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na
sua história, a Humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão
fragmentária do aqui e agora e “abdica da sua procura de sentido”.
*Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Fonte: https://www.dn.pt/4372550441/sem-deus-que-futuro/
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