Marcus Ianoni*
Apesar dos avanços
internacionalmente reconhecidos no combate à miséria extrema e na queda
da desigualdade na distribuição de renda, ainda que em ritmo lento,
ocorridos desde o primeiro governo Lula, o Brasil ainda é muito injusto
socialmente. No Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade
(IDHAD), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,
calculado a partir de 2010 com uma metodologia diferente em relação ao
IDH tradicional, enquanto a média da América Latina é de 0,570, a
pontuação do Brasil é 0,557, ou seja, inferior. Os governos petistas,
até 2014, priorizaram o combate a essa realidade trágica, em um país
campeão em concentração de renda, onde o 1% mais rico embolsou, em 2013,
o inigualável 27% da renda nacional, segundo estudo de Marc Morgan
Milá, orientado por Thomas Piketty, na Escola de Economia de Paris. E
segundo dados do IBGE referentes a 2013, os 10% mais ricos detinham
41,7% da renda familiar per capita nacional.
Como argumentou o
economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, a “preferência forte e clara
pelos trabalhadores e pelos pobres”, de governos de centro-esquerda, que
procuraram manter seu compromisso sociopolítico com os de baixo, foi
colocada em xeque, na primeira oportunidade – ensejada já no governo
Dilma 1, devido ao crescimento baixo, inflação e escândalos de corrupção
–, por um ódio coletivo da classe alta, algo inédito no Brasil, não à
toa emergido em um momento histórico ímpar da democracia brasileira.
Esse ódio é a fúria narcísica, invejosa, que está sempre cobiçosamente
prestes a projetar seu próprio fracasso no outro; vingança oportunista e
política e economicamente desastrosa do egoísmo-mor contra o partido
político que, no governo, ousou, em alguma medida, não reproduzir, por
meio das políticas públicas, as relações sociais à imagem e semelhança
do falso-eu narcisista dos ricos, alucinadamente perfeito, mas, na
verdade, apenas na construção da ordem social oligárquica e na
acumulação capitalista selvagem.
Como podem governos de esquerda,
justamente na pátria do autoritarismo social mantenedor das
desigualdades, ousarem dificultar o secular vampirismo narcisista da
elite rica (e com complexo de vira-latas) sobre os pobres, pelos quais
não nutre nenhuma empatia, considerando-os apenas meros objetos a seu
dispor? Como essa “raça” pode ter regulamentado o trabalho doméstico se
sua condição de contratação precária era um direito adquirido dos tempos
da escravidão? Como pode o populacho, ao invés de prosseguir
reverenciando barões e madames, ingressar nas universidades públicas
frequentadas pelos filhos da elite e começar a embarcar em aviões, meio
de transporte até então exclusivo dos privilegiados? Como a plebe pode
envolver-se com irregularidades no financiamento empresarial de
campanhas eleitorais se esse artifício era até então de propriedade dos
partidos da preservação da ordem desigual? Como pode essa “horda de
comunistas” – segundo a invenção da paranoia narcisista, que projeta de
modo invertido seu espírito capitalista selvagem – lograr que o STF
tenha proibido o financiamento eleitoral empresarial, imensa fonte dos
crimes de corrupção ativa e passiva identificados na Operação Lavo Jato?
Que coerência há na iniciativa das forças político-partidárias, a
começar pelo PSDB, defensoras com unhas e dentes da fonte empresarial de
fundos eleitorais – cronicamente contabilizados no caixa dois e
derivados de barganhas em contratação de obras públicas e compras e
vendas governamentais e das estatais (de nafta para a Braskem, por
exemplo) – recorrerem ao TSE para tentar impugnar a prestação de contas
da campanha presidencial de Dilma? Ora, petralhas, vocês só podem fazer o
que os coxinhas, avalistas do sistema político plutocrático, permitem
que seja feito, mas não o que eles fazem por prerrogativa oligárquica!
O
desempenho positivo dos governos Lula na economia propiciou que uma
parcela da elite rica valorizasse o presidente, mas apenas
circunstancialmente, pois a inevitável desvalorização e descarte do
ciclo narcisista não tardou a chegar com Dilma, que desafiou o rentismo e
não propiciou suprimentos narcísicos suficientes para entorpecer a
frustação da burguesia semiperiférica com o país que ela tem, expressão
aterrorizante de seu verdadeiro-eu, de baixíssimo teor nacional, pois
governado pelo ultra-egoísmo de classe, e consequentemente sem projeto
de Brasil melhor. Além disso, como o narcisista odeia intimidade,
sobretudo com quem tem certa autonomia em relação à sua voracidade de
poder e controle, quatro governos consecutivos encabeçados pelo PT é
algo insuportável e ameaçador. Novamente, a democracia brasileira está
ameaçada pelo reino da hipocrisia perversa dos ricos, especializada em
produzir bodes expiatórios, como fez em 1954 e 1964.
Desde o
pedido de condução coercitiva de Lula, a Operação Lava Jato passou a
explicitar claramente seu enraizamento no narcisismo perverso da elite
rica, que, não por mera coincidência, é onde se situa socialmente o juiz
Sergio Moro. Embora empresários de peso tenham sido presos e
condenados, o foco maior da grande mídia e da força-tarefa está em Lula,
Dilma e no PT, visando arruinar a candidatura do primeiro às eleições
de 2018, depor o governo da segunda, não sem antes enfraquecê-lo o
quanto possível para facilitar o abate psicopata, e varrer do mapa o
maior partido de esquerda.
O vazamento criminoso e politicamente
orientado das escutas telefônicas envolvendo Lula e Dilma foi o clímax
da estratégia de difamação destruidora típica do narcisismo perverso
contra suas vítimas. Recentemente, o vazamento obscuro da lista,
assumidamente não divulgada pelo Jornal Nacional, com 316 políticos de
24 partidos que receberam contribuições eleitorais da Odebrecht, cuja
maioria defende o impeachment, seguido pela decisão de Moro sobre seu
sigilo, mostra a farsa da oposição sociopolítica e parlamentar, que está
à caça de um bode expiatório, a presidente Dilma. Segundo se desenha,
após o almejado impeachment, o próximo passo seria esvaziar a Lava Jato,
dela protegendo os políticos interessados no governo pós-deposição, e a
desmobilização dos coxinhas das ruas. Evoca à lembrança o escândalo da
parabólica, em 1994, quando o então ministro da Fazenda, a serviço do
conservadorismo-liberal, afirmou: "Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a
gente fatura, o que é ruim a gente esconde".
A fúria narcísica
das elites ricas e de seus pares nas instituições públicas é destrutiva,
mas a reação das forças politicamente saudáveis da sociedade civil veio
vigorosa nas manifestações do dia 18, motivadas pelo pedido de prisão
preventiva de Lula e pelo veto provisório do STF à sua posse na Casa
Civil, e prossegue até hoje com diversos posicionamentos de juristas,
jornalistas da imprensa nacional e internacional, intelectuais e
artistas, movimentos sociais, enfim, em defesa das instituições do
Estado Democrático de Direito. Reação salutar contra a política de terra
arrasada do narcisismo perverso, que afunda a economia e violenta a
democracia, cujo centro nevrálgico é a vingança da minoria rica contra o
governo que se preocupou com os pobres.
Não se trata de aprovar a
política econômica dos dois mandatos de Dilma, muito menos a corrupção,
endêmica ao capitalismo e moeda corrente nas relações entre Estado e
grupos empresariais no Brasil, onde também está muito próxima do
arraigado clientelismo no sistema político. Mas juízes, procuradores e
policiais federais instrumentalizarem politicamente o combate à
corrupção e violarem direitos civis, organizações de mídia promoverem um
imenso bullying contra um partido e suas lideranças, cidadãos colocarem
dedo em riste na cara de quem defende o governo, mesmo não concordando
com seus erros, pessoas serem agredidas nas ruas por usarem roupa
vermelha e todos os demais tipos de violência, intolerância e ameaças,
inclusive contra o ministro Teori Zavascki e sua família, isso tudo é
expressão do novo autoritarismo que coloca em risco o desenvolvimento da
democracia.
Diante de tantos problemas que o Brasil possui, a
começar pela gigantesca desigualdade social, passando pela violência
criminosa das polícias militares contra os pobres, por que motivo os
holofotes foram colocados na corrupção, sobretudo aquela em que uma
parte específica, ainda que a mais importante, de uma coalizão
partidária se envolveu, o PT, principal partido governista? Uma
explicação, não a única, pode estar na perversão da política, um tema da
obra de Maquiavel, a serviço do poder socioeconômico narcisista da
elite rica.
“Narciso acha feio tudo que não é espelho”, diz a
canção. Para os ricos, pobres e negros são feios. Sim, os ricos, que,
além de corromperem agentes públicos, são especialistas em sonegação e
evasão fiscal, estão cinicamente liderando a campanha antipetista.
Segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, a
sonegação somou, em 2013, R$ 415 bilhões e R$ 501 bilhões em 2014. Mas a
Operação Zelotes da Polícia Federal, que investiga montantes de
sonegação de valor maior que o desviado na Lava Jato, envolvendo grandes
grupos econômicos nacionais e internacionais, vai sendo levada no
banho-maria, a não ser quando se trata de tentar capturar Lula e
familiares. Aí, então, a mídia divulga, mas jamais para tornar público,
por exemplo, que a RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul, é uma
das principais investigadas.
Enfim, se confirmada, a autorização
de processo de impeachment por pedalada fiscal, com Eduardo Cunha na
presidência da Câmara, será a maldade final da farsa golpista. Mas o
custo dessa inconsequência terá nome ou já tem: instabilidade social.
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Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de
Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador
das relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da
Universidade de Oxford
Fonte: http://www.jb.com.br/marcus-ianoni/noticias/2016/03/29/politica-do-narcisismo-perverso/
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