Bruno Ribeiro Nascimento*
As ideologias são fenômenos
religiosos. Mais precisamente, são fenômenos religiosos que fazem parte
de uma categoria mais ampla: a idolatria. A ideologia é um tipo
especifico de idolatria. Essa percepção foi desenvolvida,
principalmente, por dois cientistas políticos cristãos: Bob Goudzwaard (Idols of Our Time) e David Koyzis (Visões e Ilusões Políticas).
A tese é muito valiosa para compreendermos a atual situação da política
brasileira – bem como o que acontece nas redes sociais.
O que seria a idolatria? A teologia judaico-cristã sempre denunciou
fortemente a idolatria como um pecado gravíssimo. Isso porque a
idolatria consiste em escolher um elemento da criação e o elevar ao
nível da divindade, colocando acima da barreira que deveria separar o
Criador da criatura. Quando esse elemento do mundo é divinizado,
esperamos que ele nos traga salvação, segurança, conforto e shalom (paz), além de nos livrar do mal – porque é isso que esperamos dos deuses ou do Deus judaico-cristão.
Goudzwaard e Koyzis aplicaram esse princípio na análise política: a
ideologia tem seu viés religioso porque transforma uma ideia importante
em um ídolo, um deus imaginário, que procura sujeitar toda realidade
aquela ideia deificada, prometendo “salvação” aos seus “seguidores”. A
ideologia atribui status ontológico, como mal e salvação, a elementos
intrínsecos da realidade. Elas identificam os bons elementos da
realidade, mas superestimam esses elementos, enquadrando toda a
realidade a partir deles, combatendo tudo que se opõem ao ídolo
escolhido.
É possível perceber essa leitura idólatra da política nos posts
políticos, principalmente depois dos eventos da semana passada. Temos
nossos messias, nossas crenças, nossos elementos de salvação e nossas
fontes do mal. No Facebook, não se discorda sobre ideias
políticas: se briga ferozmente porque o que está em jogo é um
deus-ideia. As discordâncias políticas sobre a operação Lava Jato e o
ex-presidente Lula não são simplesmente debates sobre ideias e justiça;
nas redes sociais, elas se transformam em falhas morais.
Ideias prontas, simplificadas, idolatradas
Você não é simplesmente alguém que discorda de mim, mas alguém
moralmente errado porque a minha ideia central é a verdadeira. Ela
salva, redime. É um deus e, como todo deus, merece adoração e louvor. O
componente idólatra na ideologia obscurece a visão. Ela enxerga
elementos intrínsecos da realidade em si como fontes do mal. A partir
daí, o debate passa a não ser sobre ideias, mas sobre moral.
Por que você não concordaria em ver a realidade redimida? Só há uma
única explicação: existe uma falha moral em você. Uma vez que toda
salvação consiste no resgate de algo pecaminoso, e uma vez que você não
quer ser salvo, nem quer a salvação da realidade, talvez seja porque
você faz parte desse mal. Você talvez não goste dos pobres viajando de
avião; ou entrando na universidade pública; ou você talvez não quer
trabalhar e quer receber bolsa família; ou quer defender bandidos; ou
quer manter alguns privilégios; o quer acobertar as denúncias da mídia
golpista e da crise inventada.
Os elementos utilizados pelas ideologias não são completamente
falsos; as realidades que eles apontam não são completamente criadas. Há
realmente desigualdade, opressão, parcialidade da mídia, falta de
segurança e de liberdade. Há realmente elitistas, antipobres, machistas,
racistas, intolerantes, vadios, aproveitadores e preconceituosos. O
problema é que a idolatria é uma simplificadora excessiva da realidade. A
realidade é mais complexa que uma única ideia central pronta. O que o
componente religioso das idolatrias faz é colocar suas ideias como
divinas, salvadoras, como chaves para a realidade redentora do amanhã.
A salvação vem através da maximização da liberdade individual e da
soberania do indivíduo; ou da propriedade comum e da igualdade a
qualquer preço; ou das regras morais conservadoras. Todas essas coisas,
liberdade individual, igualdade, regras morais, são bons elementos da
realidade. Merecem ser defendidos. Mas como eles foram divinizados, as
pessoas procuram ler toda a realidade social e histórica a partir dessa
única ideia central. E isso encaixa bem com o Facebook, onde o
meio incita a superficialidade. Afinal, ninguém tem paciência de ler um
texto mais longo no celular; ou de refletir melhor sobre um fato em
frente ao computador. Não há tempo para pensar e raciocinar: é preciso
postar. Ser rápido. Opinar sobre tudo. E nada melhor que ideias prontas,
simplificadas, idolatradas.
O debate político se transformou em debate religioso
Os adeptos da ideologia, segundo Goudzwaard, são “possuídos por um
fim”. Ao abraçarem uma ideia central nas redes sociais, as pessoas
constroem um alvo e querem que todos os elementos da realidade se
adaptem a esse alvo supremo. Os fins justificam os meios porque é
preciso chegar ao objetivo que meu deus impõe.
Quando as ideologias enquadram toda a realidade a uma ideia central,
surge um problema: a realidade é maior que qualquer ideia central. É
mais complexa. Mais difícil. Com mais variantes. Ela não é binária, mas
cheia de nuances. Por isso, afirmava Hannah Arendt que toda ideologia
possui um viés totalitário, uma vez que, ao tentar ler a realidade a
partir dessa ideia suprema, seus integrantes buscam moldar a realidade
de acordo com a lógica inexorável da sua preciosa ideia central. Nas
redes sociais, se os fatos não concordam com minha preciosa ideia
central, azar para os fatos. Millôr Fernandes definiu bem o viés
totalitário da ideologia ao falar sobre o comunismo: “O comunismo é uma
espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no
cliente.”
Assim, pouco importa se faço distorções da justiça, da realidade, das
ideias dos outros e até dos princípios que defendo. O importante é que,
com minha ideia central implantada, o mundo de amanhã será melhor. Por
isso, vale a pena fechar os olhos para corrupção dos meus candidatos ou
se ele é descaradamente antiético e homofóbico. Vale a pena esquecer as
denúncias – o importante é que os fatos, de alguma forma, sirvam ao
propósito último da salvação da realidade. O mundo amanhã será melhor,
penso, por isso, ainda que eu não seja machista, vale a pena
compartilhar um post maldoso e sexista sobre a ética sexual da jornalista da IstoÉ.
O mundo melhor de amanhã superará essa “falha”, esse sacrifício, esse
mal necessário. Não é a justiça em si que está em jogo e que precisa ser
defendida, mas minha ideia central.
Na teologia judaico-cristã, a ideologia sempre foi combatida porque
ela trazia falsas esperanças. Apesar dos deuses serem falsos, eles
tinham um poder sobre seus adoradores que os cegava. Paradoxalmente,
mesmo não existindo, eles faziam as pessoas serem a imagem e semelhança
deles. Isso trazia intolerância e opressão. No Brasil, é inegável que o
debate político se transformou claramente em um debate religioso. Mas,
infelizmente, esse debate não pegou os aspectos positivos e profundos da
religião judaico-cristã, como sacrifício pelo outro, esquecimento de si
mesmo, combate a injustiça, necessidade de reflexão racional intensa e
constante, mas o que ela tem de mais nocivo, como fanatismo, cegueira,
sentimentalismo irracional e intolerância. Infelizmente, com a
idolatrização da política, veremos cada vez mais esses elementos nas
redes sociais.
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*Bruno Ribeiro Nascimento é mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas
Fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/dilemas-contemporaneos/o-debate-politico-se-transformou-numa-polemica-religiosa/
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