domingo, 20 de março de 2016

METÁFORAS

Luis Fernando Veríssimo*
 

Comparamos mulheres a frutas e revoluções a omeletes, dizemos que as pessoas envelhecem como o vinho – ou ficam melhores ou azedam, com o tempo – e reduzimos tudo a metáforas culinárias. O neoliberalismo dominante, por exemplo, precisa lidar com um reincidente problema de cozinha: o do ponto.
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Qual é o ponto em que a ganância humana deixa de ser um propulsor econômico e volta a ser pecado? Da senhora Thatcher, disseram que ela queria o impossível: devolver à Inglaterra os valores morais da era vitoriana ao mesmo tempo em que desencadeava a era do egoísmo sem remorso. Para Margaret, essa coisa chamada sociedade não existia, só existia o indivíduo. Mas o egoísmo do indivíduo precisa conviver com a moral burguesa, e a mistura só pode dar certo se acertarem o ponto em que a ganância é absolvida pela hipocrisia, que teve sua apoteose na era vitoriana. O capitalismo e a moral burguesa devem definir esse ponto.
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Qual é o ponto da ganância? Quando é que a mistura começa a desandar, o molho queima e o que era para ser um pudim vira uma vergonha? Há quem diga que o ponto se identifica com instinto e controle. Você sabe, nas suas entranhas, que é um outro nome para a consciência, quando e como intervir para salvar o pudim. Digo, a moral burguesa. Claro que para isso funcionar é preciso confiar que todas as pessoas sejam, no fundo, social-democratas, ou capitalistas só até um ponto certo do cozimento, ou de bom coração.
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Há tempos, a respeito de um dos tantos escândalos financeiros e desastres sociais que pululam por aí, um apologista do capital sem controle disse que não adianta esperar que a ganância se autocorrija, é preciso confiar na vergonha inata das pessoas. Estava, no fundo, pedindo para termos a vergonha que falta ao sistema financeiro, na sua pregação de austeridade para todo o mundo e liberdade irrestrita para os poucos donos do dinheiro. E para confiarmos que uma solidariedade instintiva prevalecerá no seu convívio com a moral do lucro acima de tudo, como ingredientes compatíveis num bolo.

Em outras palavras, é preciso acreditar que é possível destruir uma ideia de sociedade solidária e esperar que ela sobreviva nas pessoas como uma espécie de nostálgica produção de comida caseira.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a5115121.xml&template=3916.dwt&edition=28608&section=4572
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