Pe. Alfredo J. Gonçalves*
Cinco
conceitos básicos, a bem dizer, formam as bases do chamado paradigma da
modernidade: razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia. São
cinco chaves de leitura ou cinco janelas para melhor entender a cultura
que acompanha os "tempos modernos”. - See more at:
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Cinco conceitos básicos, a bem dizer,
formam as bases do chamado
paradigma da modernidade:
paradigma da modernidade:
razão,
ciência,
tecnologia,
progresso e
democracia.
São cinco chaves de leitura ou cinco
janelas para melhor entender a cultura
que acompanha os "tempos modernos".
De olho nas cinco janelas
A razão tudo desvenda, tudo descortina,
tudo "desencanta”. Desfaz os segredos e mistérios que por séculos
aterrorizaram os seres humanos e os mantinha de joelhos. Adquire instrumentos
para explorar e dissecar os movimentos do universo, as leis da natureza, as
motivações da história e o funcionamento do corpo humano. No processo de emergência
da subjetividade e da individualidade, do humanismo e do racionalismo
iluminista, a razão se emancipa da divindade. Toma o lugar desta e senta-se no
trono vazio, tornando-se a referência última para todo conhecimento.
A ciência é filha direta da razão, sua
menina dos olhos. Desencadeia um processo de inventos e experimentos que
haverão de culminar, justamente, na revolução científica: física, química,
astrologia, mecânica, medicina, filosofia, economia, sociologia, história...
Com o método cartesiano, passa a
duvidar das "certezas” absolutas, eternas e imutáveis. Em seu lugar,
prevalece a hipótese de trabalho a ser experimentada e verificada
cientificamente.
Novas perguntas substituem as antigas respostas,
novos desafios exigem instrumentos novos. Mais do que uma descoberta, adequação
ou contemplação diante do plano natural e divino da criação, a "verdade”
torna-se uma construção laboriosa e coletiva, passível de busca e correção
contínuas.
A tecnologia nasce da fusão entre razão
e ciência. Ambas geram uma série de artefatos, máquinas e implementos, espécie
de braços técnicos, mecânicos e artificiais que se tornam um prolongamento dos
membros humanos. Aumenta em escala vertiginosa a capacidade de produção e de
produtividade, que desembocará na Revolução Industrial.
Com semelhante ritmo motriz sem precedentes, diminui a distância entre o crescimento populacional e o
crescimento dos bens de consumo. Elimina-se, com isso, o fantasma da escassez e
o medo da carência. As oficinas, transformadas em fábricas, produzem
quantidades superiores ao que a humanidade é capaz de consumir.
A ideia de progresso mergulha suas
raízes na teoria da seleção natural, de Charles Darwin, em sua obra A origem
das espécies. Se no mundo vegetal e animal o mais forte luta com o mais fraco e
sobrevive, a mesma lei pode ser aplicada ao campo da sobrevivência humana. O
processo de relacionamento interpessoal, grupal, social, político e cultural
tende a selecionar os mais capacitados, descartando os débeis e ineptos. Assim,
em linha de máxima, cada geração torna-se superior àquela que a precedeu e
inferior à que haverá de segui-la. Resulta que, associada à razão, à
ciência e à tecnologia, tal ideia de progresso cria a concepção de que as
sociedades avançam como por uma escada, ascendendo indefinidamente e de forma
progressiva.
Com a democracia, o poder deixa de ter
sua origem na vontade e na filiação divinas. Também ele, como a razão,
emancipa-se da esfera do sagrado. O direito ou dever de governar não vem de
cima, mas emerge a partir de baixo: governo do povo, pelo povo e para o povo.
Pouco a pouco, as dinastias hereditárias tornam-se obsoletas e vão sendo
abolidas. Estabelece-se o contrato social, segundo o qual, implicita ou explicitamente,
o poder nasce e se fundamenta no equilíbrio entre as forças e interesses em
jogo. Sua legitimação, em última instância, não está na bênção dos que fazem a
intermediação entre a esfera divina e humana, mas na vontade popular.
Entretanto, com o correr dos anos, os
cinco conceitos do paradigma moderno revelam uma série de nós, impasses,
contradições e, digamos, efeitos colaterais. O otimismo do "século das
luzes”, por exemplo, vai aos poucos cedendo o lugar primeiro à suspeita aberta
ou velada, depois à crítica teórica e prática e, por fim, ao pessimismo e à
oposição direta e frontal.
Inicia-se o que muitos autores passarão
a chamar de transição paradigmática. Não se trata de uma época de mudanças, mas
de uma mudança de época. E esta questiona pela raiz os próprios fundamentos
sobre os quais se assenta a modernidade. Em outras palavras, interpelam-se os
valores modernos.
Tempos de crise e de crítica
Com o tempo, instala-se uma crise
epocal onde os "tempos modernos” cedem o passo à pós-modernidade ou à
modernidade tardia, de acordo com a visão predominante de determinados
estudiosos. Instabilidade e insegurança, medos e angústias, dúvidas e
interrogações, temores e inquietudes prevalecem sobre a euforia do positivismo
progressista.
Sem dúvida, as barbáries do século XX
(duas grandes guerras mundiais, conflitos localizados, genocídos, colonialismo,
totalitarismo, bomba atômica, holocausto, guerra fria, injustiça e disparidade
socioecônomica entre pobres e ricos, corrupção crônica...), tais formas de
barbáries, vale repetir, contribuem vigorosamente para o discurso da mudança,
da transição e do questionamento dos valores fundantes.
Se, por um lado, ciência e tecnologia são responsáveis pelos
benefícios do progresso, por outro, são igualmente responsáveis por sua
acumulação escandalosa nas mãos de poucos privilegiados
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A razão, por mais lúcida e iluminada,
gerou um mundo irracional, sob diversos aspectos. Irracional em termos de
distribuição equitativa dos bens de produção. A férrea lei do mercado – lucro,
competição, concorrência – tende a uma acumulação progressiva da riqueza e da
renda. Agravam-se as distorções da sociedade piramidal, ampliando-se a distância entre a base e os andares superiores.
Irracional também em termos ecológicos.
A cobiça e a ambição usa de forma indiscriminada todos os recursos naturais
disponíveis. Os resultados se revelam na poluição do ar e das águas, na
devastação do meio ambiente e no desaparecimento de não poucas espécies de fauna
e flora. Convém não esquecer que cada espécie que desaparece torna o ser humano
mais pobre.
E irracional, ainda, em termos
trabalhistas e culturais. O mesmo critério do lucro a qualquer preço comanda o
uso da força de trabalho e do patrimônio artístico da humanidade, fruto das
gerações passadas. Tudo isso, evidentemente, compromete a saúde do tecido
social, político e cultural.
É verdade que a ciência aplicada trouxe
benefícios incalculáveis. Basta pensar na revolução dos meios de comunicação,
culminando com a informática, na expansão da rede de transportes que hoje corta
todo o planeta, no enriquecimento da culinária, no conforto pessoal e familiar,
nos avanços da medicina que melhora a qualidade de vida e a prolonga... Mas
grande parte desses benefícios são distribuídos de forma desigual.
A serviço de empresas privadas e
interesses transnacionais, com inusitada frequência os cientistas se vendem a
quem paga melhor. E quem paga escolhe o cardápio. Daí as contradições no
interior da pesquisa científica: em lugar de eliminar, por exemplo, a pobreza e
a miséria, a subnutrição e a fome de milhões de pessoas; em lugar de combater
as doenças contagiosas, especialmente nas regiões abandonadas; em lugar de
trabalhar para que todos tenham acesso à água potável, aos alimentos sadios e a
um vestuário adequado... muitas vezes a ciência se perde em projetos
mirabolantes e bem mais lucrativos.
Irmã gêmea da ciência (e como ela filha
da razão), a tecnologia segue-lhe de perto os passos. Se, por um lado, ciência
e tecnologia são responsáveis pelos benefícios do progresso, por outro, são
igualmente responsáveis por sua acumulação escandalosa nas mãos de poucos
privilegiados.
Mais grave ainda: ao invés de
empenhar-se pela superação do sofrimento em todo o globo terrestre, muitas
vezes e de forma inusitada, a tecnologia põe-se a serviço da indústria bélica.
Diz o ditado popular que "a guerra faz o jeep”. E, de fato, uma série de
avanços tecnológicos se deve à barbaridade de criar gigantescas "máquinas
de matar” – como o são os exércitos e as armas de última geração.
Aqui também, ao mesmo tempo que se
desenvolvem projetos faraônicos, gastando milhões e bilhões de dólares em
fantasias públicas ou privadas, a sede e a fome, a doença e o abandono seguem
dizimando enorme quantidade de crianças pobres e indefesas.
Verifica-se um abismo profundo e praticamente insuperável
entre, de um lado, os debates e decisões nos corredores dos três poderes –
legislativo, judiciário e executivo – e, de outro, as necessidades básicas e
urgentes particularmente da população de baixa renda
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Quanto ao progresso, basta reportar-nos
à Constituição Pastoral Gaudum et Spes (1965), do Concílio Ecumênico Vaticano
II, por uma parte, e, por outra, à Carta Encíclica Populorum Progressio(1967),
do então Papa Paulo VI. Ambas denunciam a discrepância entre o crescimento
econômico, cada vez mais acelerado, e o desenvolvimento humano, sempre mais
problemático e desigual.Ou seja, o progresso científico e tecnológico, embora
guiados pela razão humana (ou precisamente por isso!), sofre de um vício
intrínseco e incurável: concentra, ao mesmo tempo, a riqueza e exclusão social.
Tendo como motor o lucro e a acumulação
de capital, provoca crescente desequilíbrio socioecônomico. Contraditória e
paradoxalmente, a maior capacidade de produção e de produtividade cria
"ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, como
lembrava outro Papa, São João Paulo II, em sua visita ao México. Um dos
subtítulos da Populorum Progressio – "O desenvolvimento é o novo nome da
paz” – aponta a direção justa do progresso. Este deve ser integral, isto é,
direcionado "ao homem todo e a todos os homens”.
Por fim, a democracia! E aqui o
pessimismo se faz sentir de forma bem mais pesada e amarga. Basta um olhar
veloz, a voo de pássaro, pelo países que se dizem orientados pelos critérios da
democracia para dar-se conta que esta se encontra gravemente enferma.
Poucas instituições modernas acumulam
sobre si mesmas tanta desconfiança, desencanto e, no fim da linha, aberta
hostilidade. Democracia hoje é claramente campo minado: corrupção crônica,
promiscuidade, corporativismo, tráfico de influência pública, enriquecimento
ilícito, desvío e/ou uso incorreto de verbas, sede de poder, privilégios e
benesses, balcão de negócios, compra e venda de votos/eleitores, monopólio dos
meios de comunicação social... constituem, entre outras, as bombas ocultas sob
o terreno movediço e escorregadio do sistema democrático. E isso de uma forma
tão generalizada que, a partir do lado de fora (e, talvez, mais ainda do lado
de dentro), torna-se indistinta e nebulosa a linha divisória entre os partidos,
os posicionamentos políticos, bem como a direita e a esquerda.
Tais instâncias, com efeito, mais do
que bases para uma ação coordenada, se convertem em escadas para a ascensão de
um e de outro. Escadas que podem ser feitas, desfeitas e refeitas, de acordo
com interesses escusos ou circunstâncias oportunistas.
"Nem todos os políticos são
iguais”, dizem vozes na surdina. E é verdade, há excelentes e notórias exceções! O problema, porém, não está neste ou naquele candidato, deputado,
senador, prefeito, governador ou presidente. O problema está nos mecanismos de
um sistema que, desde séculos, promove e encobre atitudes viciadas, seja
durante a candidatura, seja durante o mandato. E, ao mesmo tempo, permite a
defesa promíscua e corporativista do "aliado” de partido ou de coalizão,
bem como sua "fritura” ou linchamento político implacável e irreversível.
Pior ainda é a relação com os
eleitores. Proximidade interesseira e arrogante indiferença se alternam,
segundo o período da candidatura ou do exercício do mandato. Além disso, uma
vez mais, as leis do mercado ditam as regras e subordinam a política econômica
aos próprios jogos especulativos.
Verifica-se um abismo profundo e
praticamente insuperável entre, de um lado, os debates e decisões nos
corredores dos três poderes – legislativo, judiciário e executivo – e, de
outro, as necessidade básicas e urgentes particularmente da população de baixa
renda. A democracia agita as ondas superficiais e visíveis no cenário do teatro
político, com a constante troca de atores e máscaras, mas é incapaz de tomar as
rédeas das correntes subterrâneas e invisíveis da economia, em espacial do
cassino internacional do capital financeiro.
Os cinco conceitos iniciais revelam
toda a ambiguidade da trajetória moderna e democrática. Chaves e janelas que,
respectivamente, se enferrujam ou se obscurecem com o passar da história. O que
leva ao discurso da "ética na política”, bem como ao retorno do sagrado ou
de Deus. Mas este só age dentro das coordenadas da história, em comunhão com a
ação humana.
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*Assessor das Pastorais Sociais
Fonte: http://www.arquidiocesebh.org.br/site/opiniao_e_noticias.php?id_opiniao_e_noticias=12535
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