segunda-feira, 21 de março de 2016

Ensaio sobre a prática das práticas

 
Não são poucos os sujeitos que apontam suas certezas advindas de informações da grande mídia (ou de livros de auto-ajuda de fundo hegeliano) como se essas tivessem fundamento no real conhecimento das coisas. Deve-se considerar que há um verdadeiro abismo entre informação e conhecimento, sendo a primeira totalmente dependente do saber (formal ou informal) para ser interpretada em um contexto social e, portanto, ideológico. Hoje, como são raras as pessoas que leem, ou, melhor, que sabem o que leem, não se faz mediação entre um e outro, prevalecendo a informação que é mais rápida e fácil de digerir. Essa mistura perigosa atrelada à formação centrada na super-especialidade formata o que chamamos de analfabetos sociopolíticos, sejam eles engenheiros, médicos, advogados, economistas, filósofos, dentistas, geógrafos e toda uma leva de doutores, sendo que, tal separação (entre saber e informação), torna-se evidente em cinco minutos de conversa nas universidades, nos botecos, em eventos sociais.

Ao divorciar informação de conhecimento há, paralelamente, o falso distanciamento entre teoria e prática, algo em voga na atualidade e que pode ser ouvido (e defendido) nos mais diversos meios. Mas isso tem um proponente: o neopositivismo. E um propósito: promover a teoria pela e para a prática operacional-empresarial, ao mesmo tempo em que se defende e compartilha a noção de que a essência das coisas corresponde com as informações que delas se têm. Por esse discurso, os ramos das ciências humanas e sociais que não tiverem aplicação para o mercado devem ser abatidos e sepultados bem longe do território universitário ou da vida social.

Mas o que seria o neopositivismo? Grosso modo é um referencial ou caminho analítico que não faz distinção entre aparência e essência dos fatos, além de dirigir o olhar e as energias à descrição e comparação das coisas amparadas por dados estatísticos, tudo para a “ordem e o progresso”. Trata-se, enfim, de uma ciência e, ao mesmo tempo, de uma ideologia, que busca confirmar e afinar a evolução produtiva para o capital independentemente das condições humanas, ou como se essas pudessem ser por ele contempladas.

Para os que seguem seus parâmetros, as anomalias e as disfunções do sistema político poderiam ser resolvidas pura e simplesmente pela troca de partidos no poder, pelas formas otimizadas de gestão e/ou pelo enquadramento carcerário de sujeitos envolvidos em corrupção. E, ao apontarem que o conteúdo dos fatos políticos, econômicos, sociais, científicos, equivale ao que deles se pode descrever, tudo o que estaria para além disso seria mera teoria ou, então, apenas um componente ideológico (de esquerda). É disso que se vale a grande mídia, chancelando a mais pura lógica formal, ou seja, aquela maneira de proceder e/ou encarar as coisas por elas mesmas, naturalizando ou desconhecendo a prática social capitalista como relação histórica e social dominante.

Ora, em se tratando das ciências humanas e sociais, evidenciamos que toda teoria produzida a fim de explicar o funcionamento da sociedade é nula ou pode ser jogada no lixo se não reproduzir o que se passa no mundo prático-real, no sentido de situar as possibilidades e limites circunstanciais de intervenção e mudança, inclusive no campo político. Ao se escolher um caminho que efetivamente pode elucidar tais práticas sociais, sempre a partir de leituras e vivências que nos permitam a obtenção de uma bagagem sociocultural para fazer a crítica ou analisar as coisas, é possível ultrapassar as descrições centradas nos efeitos (característicos da ideologia neopositivista) e revelar as práticas em suas causas, denunciando, paralelamente, o caráter seletivo da grande mídia.

Trata-se de uma obviedade que a explicação das causas ou das múltiplas relações que formatam as coisas que lidamos no nosso cotidiano e, portanto, que tem ligação direta com nossas vidas (o Estado e a manutenção sacrossanta da dívida pública em detrimento de ações sociais diante do governo dos bancos; os tributos proporcionalmente mais altos para os mais pobres; as unidades produtivas de bens e serviços e seus expedientes juridicamente resguardados para o alargamento do capital; o poder da mídia na manutenção do status quo ou de mudanças quantitativas como se fosse qualitativas, a educação para o mercado e não para a sociedade, a partidarização da esfera jurídica e assim por diante) é um componente de ameaça à “ordem e ao progresso”, daí essa teoria (efetivamente comprometida com a reprodução ideal da prática social) ser enquadrada como desprovida de prática ou posicionada como ideológica. Ou seja, para o neopositivismo, ou a teoria está submetida, como diria Paulo Freire, à “malvadez da ética do mercado”, ou não teria qualquer outra serventia.

Assim, não são poucas as pessoas que, desprovidas de tempo liberado (o que é cada vez mais comum com as estratégias de gestão para a intensificação e extensão do trabalho) ou preguiçosas diante da atenção à tela da TV e/ou do celular (e, para essas, não há perdão) veem todas as coisas de forma fragmentada ou pelas lentes embaçadas do neopositivismo, entendendo que o poder de mudança está no indivíduo e não no coletivo, mas, principalmente, passando ao largo do fato de que esse coletivo é constituído por uma teia de relações sociais que geram variados desdobramentos independentemente de nossas vontades individuais. O fato é que quanto mais se coisificava e se coisfica as relações humanas (com aquela noção burguesa e reacionária de que a ciência é importante tão somente para o mercado, por exemplo), mais perdemos o comando sobre elas, pois o capital é racional para si, mas não o é à condição humana. O exemplo de Eagleton (1997, p.82) pode ser aqui colocado: “os homens e as mulheres fazem produtos que depois escapam a seu controle e determinam suas condições de existência. Uma flutuação na bolsa de valores pode significar desemprego para milhares”.

Essa ordem de coisas ou nosso meio social com sua hierarquização produtiva e de intercâmbios desiguais é que precisa ser compreendido. E é justamente essa prática social que o cientista tem o compromisso intelectual e ético de explicar e explicitar, ao mesmo tempo em que desmistifica a ideologia neopositivista. Por quê? Pois essa é a mãe de todas as práticas, afinal, a possibilidade ou não em se adotar certas práticas, condutas e tecnologias está atrelada às relações sociais de produção, as quais precisam ser constantemente desvendadas. Por qual razão tecnologias amplamente disponíveis são engavetadas, como, por exemplo, a produção de automóveis, edificações, maquinários a partir da reciclagem do aço, o que ocasionaria a expressiva diminuição da atividade de mineração, a qual, diga-se de passagem, carrega consigo o sentido da provisoriedade, da improvisação e da precariedade, sendo esses adjetivos mediados pelas variadas instâncias da exploração (dos sujeitos e dos recursos) em espaços marcados com sangue, míseros salários e pó? Respondo: ao conhecer as práticas sociais, explicam-se as possibilidades e limites das práticas tecnológicas para além da falsa noção do fragmento. Aqui, desmascara-se a “dita vontade política” ou a ideia de que “o dinheiro faz dinheiro”, demonstrando que tais posicionamentos retiram de cena o tecido social entre estrutura do Estado e poder de classe, e entre dinheiro e dinheiro acrescido, seja com lucros ou rendas (possíveis não pela ação do empreendedor, mas, fundamentalmente, pelo trabalho social).

O fato a ser ressaltado é que as teorias seletivas ou as pregações das pessoas informadas a partir delas, se fazem referência à produção (a geração de empregos, ao consumo), passam ao largo das questões práticas reais, ou seja, como, onde e em benefício de quem as coisas (produtos e serviços) são postas. E, nessa mesma linha, se fazem alusão ao Estado, passam longe de apontar as mediações do capital na forma política, assim como no mundo do trabalho. Enfim, mediação na forma social capitalista (envolvendo política, capital, Estado, trabalho, empresa, ideologia, desigualdade, pobreza, cultura, dentre outras categorias) é a palavra de ordem contra o neopositivismo e deve ser o centro de nossas averiguações. Do contrário, ao se deixar levar por essa ideologia de fácil assimilação, mas perigosa, das duas, uma: ou se toma uma posição consciente de adequação aos seus limites e, daí, é preciso verificar se existem meios de defender suas argumentações (mas, não raras vezes, o meio encontrado é a violência ou xingamentos, comuns, inclusive, na grande mídia); ou fatalmente tornar-se massa de manobra que vai às ruas sem saber os reais motivos que o levaram a sair da frente da TV.

O que pretendemos enfatizar é que os analfabetos sociopolíticos (os quais geralmente se autointitulam doutos-analistas após assistir a Globo News “Painel” com William Waack ou ler a revista Veja) são aqueles que veem o distanciamento entre teoria e prática e, portanto, entendem o mundo como meras relações funcionais livres de mediações com a formação social neocapitalista. São pessoas que, por não procurar saber a prática social real, reproduzem achismos midiáticos e veem o nascimento de “outro Estado” depois das operações da “Lava Jato”, sendo que os resultados práticos disso não passam de doutrinações infindáveis quanto à possibilidade de haver ética na política; equidade nos processos de acumulação; e harmonia social a partir do bom equacionamento do Estado. Conhecer a prática “mãe de todas” não é compreender tudo, mas se não a apreendermos, anulamos nosso conhecimento de mundo e, daí, pela força das boas ideias e da auto-ajuda, tudo seria possível, independentemente dos marcos regulatórios do capitalismo e limites impositivos e antidemocráticos do capital. Finalizo aqui minhas poucas observações com algumas passagens de pensadores comprometidos em explicar a prática das práticas:
Todas as formas de consciência de classe são ideológicas, mas algumas, por assim dizer, são mais ideológicas que outras. O que é especificamente ideológico na burguesia é sua incapacidade de compreender a estrutura da formação social como um todo por causa dos efeitos nefastos da reificação. A reificação fragmenta e desloca nossa experiência social, de modo que, sob sua influência, esquecemos que a sociedade é um processo coletivo e passamos a vê-la meramente como este ou aquele objeto ou instituição isolados (EAGLETON, 1997, p. 91).
O Estado é um derivado necessário da própria reprodução capitalista; essas relações ensejam sua constituição ou sua formação. Sendo estranho a cada burguês e a cada trabalhador explorado, individualmente tomados, é, ao mesmo tempo, elemento necessário de sua constituição e da reprodução de suas relações sociais […]. Nessa rede de relações na qual se condensa o Estado, é no capital que reside a chave de sua existência. Por isso, não é partindo das características do aparato estatal em si que se descobrirá a sua eventual utilização ou não pela burguesia. Pelo contrário, é pela estrutura da reprodução do capital que se entende o lócus desse aparato político específico e relativamente alheado das classes que se chama hodiernamente Estado (MASCARO, 2013, p.19).

A crise da nossa ordem social nunca foi tão grande quanto hoje. Sua solução é inconcebível sem a intervenção sustentada da política revolucionária numa escala adequada. A ordem dominante não é capaz de gerir seus interesses, nas condições de uma crise estrutural que se aprofunda, sem adotar medidas cada vez mais autoritárias e repressivas contra as forças opostas às tendências destrutivas em curso de desenvolvimento, e sem o engajamento de suas potências imperialistas hoje ocupadas em aventuras militares genocidas. Seria a maior das ilusões imaginar que uma ordem política e socioeconômica desse tipo fosse reformável, no interesse do trabalho, quando resistiu com firmeza à instituição de todas as mudanças significativas propostas pelo movimento reformista no curso de sua longa história, pois hoje a margem de ajustes acomodatícios se estreita diante da incontrolável inter-relação global das contradições e antagonismos do capital (MÉSZÁROS, 2010, p.48).

A questão de saber se cabe ao pensar humano uma verdade objetiva – não é uma questão de teoria, mas sim uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensar […] (MARX, segunda tese sobre Feuerbach).

Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que levam a teoria ao misticismo, encontram sua solução na práxis humana e no ato de compreender essa práxis (MARX, oitava tese sobre Feuerbach).
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*RODRIGO MEIRA MARTONI é Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor efetivo do Curso de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1460183081425094
Fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/03/19/ensaio-sobre-a-pratica-das-praticas/
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