Não são poucos os sujeitos que apontam suas certezas advindas de
informações da grande mídia (ou de livros de auto-ajuda de fundo
hegeliano) como se essas tivessem fundamento no real conhecimento das
coisas. Deve-se considerar que há um verdadeiro abismo entre informação e
conhecimento, sendo a primeira totalmente dependente do saber (formal
ou informal) para ser interpretada em um contexto social e, portanto,
ideológico. Hoje, como são raras as pessoas que leem, ou, melhor, que
sabem o que leem, não se faz mediação entre um e outro, prevalecendo a
informação que é mais rápida e fácil de digerir. Essa mistura perigosa
atrelada à formação centrada na super-especialidade formata o que
chamamos de analfabetos sociopolíticos, sejam eles engenheiros, médicos,
advogados, economistas, filósofos, dentistas, geógrafos e toda uma leva
de doutores, sendo que, tal separação (entre saber e informação),
torna-se evidente em cinco minutos de conversa nas universidades, nos
botecos, em eventos sociais.
Ao divorciar informação de conhecimento há, paralelamente, o falso
distanciamento entre teoria e prática, algo em voga na atualidade e que
pode ser ouvido (e defendido) nos mais diversos meios. Mas isso tem um
proponente: o neopositivismo. E um propósito: promover a teoria pela e
para a prática operacional-empresarial, ao mesmo tempo em que se defende
e compartilha a noção de que a essência das coisas corresponde com as
informações que delas se têm. Por esse discurso, os ramos das ciências
humanas e sociais que não tiverem aplicação para o mercado devem ser
abatidos e sepultados bem longe do território universitário ou da vida
social.
Mas o que seria o neopositivismo? Grosso modo é um referencial ou
caminho analítico que não faz distinção entre aparência e essência dos
fatos, além de dirigir o olhar e as energias à descrição e comparação
das coisas amparadas por dados estatísticos, tudo para a “ordem e o
progresso”. Trata-se, enfim, de uma ciência e, ao mesmo tempo, de uma
ideologia, que busca confirmar e afinar a evolução produtiva para o
capital independentemente das condições humanas, ou como se essas
pudessem ser por ele contempladas.
Para os que seguem seus parâmetros, as anomalias e as disfunções do
sistema político poderiam ser resolvidas pura e simplesmente pela troca
de partidos no poder, pelas formas otimizadas de gestão e/ou pelo
enquadramento carcerário de sujeitos envolvidos em corrupção. E, ao
apontarem que o conteúdo dos fatos políticos, econômicos, sociais,
científicos, equivale ao que deles se pode descrever, tudo o que estaria
para além disso seria mera teoria ou, então, apenas um componente
ideológico (de esquerda). É disso que se vale a grande mídia,
chancelando a mais pura lógica formal, ou seja, aquela maneira de
proceder e/ou encarar as coisas por elas mesmas, naturalizando ou
desconhecendo a prática social capitalista como relação histórica e
social dominante.
Ora, em se tratando das ciências humanas e sociais, evidenciamos que
toda teoria produzida a fim de explicar o funcionamento da sociedade é
nula ou pode ser jogada no lixo se não reproduzir o que se passa no
mundo prático-real, no sentido de situar as possibilidades e limites
circunstanciais de intervenção e mudança, inclusive no campo político.
Ao se escolher um caminho que efetivamente pode elucidar tais práticas
sociais, sempre a partir de leituras e vivências que nos permitam a
obtenção de uma bagagem sociocultural para fazer a crítica ou analisar
as coisas, é possível ultrapassar as descrições centradas nos efeitos
(característicos da ideologia neopositivista) e revelar as práticas em
suas causas, denunciando, paralelamente, o caráter seletivo da grande
mídia.
Trata-se de uma obviedade que a explicação das causas ou das
múltiplas relações que formatam as coisas que lidamos no nosso cotidiano
e, portanto, que tem ligação direta com nossas vidas (o Estado e a
manutenção sacrossanta da dívida pública em detrimento de ações sociais
diante do governo dos bancos; os tributos proporcionalmente mais altos
para os mais pobres; as unidades produtivas de bens e serviços e seus
expedientes juridicamente resguardados para o alargamento do capital; o
poder da mídia na manutenção do status quo ou de mudanças
quantitativas como se fosse qualitativas, a educação para o mercado e
não para a sociedade, a partidarização da esfera jurídica e assim por
diante) é um componente de ameaça à “ordem e ao progresso”, daí essa
teoria (efetivamente comprometida com a reprodução ideal da prática
social) ser enquadrada como desprovida de prática ou posicionada como
ideológica. Ou seja, para o neopositivismo, ou a teoria está submetida,
como diria Paulo Freire, à “malvadez da ética do mercado”, ou não teria
qualquer outra serventia.
Assim, não são poucas as pessoas que, desprovidas de tempo liberado
(o que é cada vez mais comum com as estratégias de gestão para a
intensificação e extensão do trabalho) ou preguiçosas diante da atenção à
tela da TV e/ou do celular (e, para essas, não há perdão) veem todas as
coisas de forma fragmentada ou pelas lentes embaçadas do
neopositivismo, entendendo que o poder de mudança está no indivíduo e
não no coletivo, mas, principalmente, passando ao largo do fato de que
esse coletivo é constituído por uma teia de relações sociais que geram
variados desdobramentos independentemente de nossas vontades
individuais. O fato é que quanto mais se coisificava e se coisfica as
relações humanas (com aquela noção burguesa e reacionária de que a
ciência é importante tão somente para o mercado, por exemplo), mais
perdemos o comando sobre elas, pois o capital é racional para si, mas
não o é à condição humana. O exemplo de Eagleton (1997, p.82) pode ser
aqui colocado: “os homens e as mulheres fazem produtos que depois
escapam a seu controle e determinam suas condições de existência. Uma
flutuação na bolsa de valores pode significar desemprego para milhares”.
Essa ordem de coisas ou nosso meio social com sua hierarquização
produtiva e de intercâmbios desiguais é que precisa ser compreendido. E é
justamente essa prática social que o cientista tem o compromisso
intelectual e ético de explicar e explicitar, ao mesmo tempo em que
desmistifica a ideologia neopositivista. Por quê? Pois essa é a mãe de
todas as práticas, afinal, a possibilidade ou não em se adotar certas
práticas, condutas e tecnologias está atrelada às relações sociais de
produção, as quais precisam ser constantemente desvendadas. Por qual
razão tecnologias amplamente disponíveis são engavetadas, como, por
exemplo, a produção de automóveis, edificações, maquinários a partir da
reciclagem do aço, o que ocasionaria a expressiva diminuição da
atividade de mineração, a qual, diga-se de passagem, carrega consigo o
sentido da provisoriedade, da improvisação e da precariedade, sendo
esses adjetivos mediados pelas variadas instâncias da exploração (dos
sujeitos e dos recursos) em espaços marcados com sangue, míseros
salários e pó? Respondo: ao conhecer as práticas sociais, explicam-se as
possibilidades e limites das práticas tecnológicas para além da falsa
noção do fragmento. Aqui, desmascara-se a “dita vontade política” ou a
ideia de que “o dinheiro faz dinheiro”, demonstrando que tais
posicionamentos retiram de cena o tecido social entre estrutura do
Estado e poder de classe, e entre dinheiro e dinheiro acrescido, seja
com lucros ou rendas (possíveis não pela ação do empreendedor, mas,
fundamentalmente, pelo trabalho social).
O fato a ser ressaltado é que as teorias seletivas ou as pregações
das pessoas informadas a partir delas, se fazem referência à produção (a
geração de empregos, ao consumo), passam ao largo das questões práticas
reais, ou seja, como, onde e em benefício de quem
as coisas (produtos e serviços) são postas. E, nessa mesma linha, se
fazem alusão ao Estado, passam longe de apontar as mediações do capital
na forma política, assim como no mundo do trabalho. Enfim, mediação na
forma social capitalista (envolvendo política, capital, Estado,
trabalho, empresa, ideologia, desigualdade, pobreza, cultura, dentre
outras categorias) é a palavra de ordem contra o neopositivismo e deve
ser o centro de nossas averiguações. Do contrário, ao se deixar levar
por essa ideologia de fácil assimilação, mas perigosa, das duas, uma: ou
se toma uma posição consciente de adequação aos seus limites e, daí, é
preciso verificar se existem meios de defender suas argumentações (mas,
não raras vezes, o meio encontrado é a violência ou xingamentos, comuns,
inclusive, na grande mídia); ou fatalmente tornar-se massa de manobra
que vai às ruas sem saber os reais motivos que o levaram a sair da
frente da TV.
O que pretendemos enfatizar é que os analfabetos sociopolíticos (os
quais geralmente se autointitulam doutos-analistas após assistir a Globo
News “Painel” com William Waack ou ler a revista Veja) são aqueles que
veem o distanciamento entre teoria e prática e, portanto, entendem o
mundo como meras relações funcionais livres de mediações com a formação
social neocapitalista. São pessoas que, por não procurar saber a prática
social real, reproduzem achismos midiáticos e veem o nascimento de
“outro Estado” depois das operações da “Lava Jato”, sendo que os
resultados práticos disso não passam de doutrinações infindáveis quanto à
possibilidade de haver ética na política; equidade nos processos de
acumulação; e harmonia social a partir do bom equacionamento do Estado.
Conhecer a prática “mãe de todas” não é compreender tudo, mas se não a
apreendermos, anulamos nosso conhecimento de mundo e, daí, pela força
das boas ideias e da auto-ajuda, tudo seria possível, independentemente
dos marcos regulatórios do capitalismo e limites impositivos e
antidemocráticos do capital. Finalizo aqui minhas poucas observações com
algumas passagens de pensadores comprometidos em explicar a prática das
práticas:
Todas as formas de consciência de classe são ideológicas, mas algumas, por assim dizer, são mais ideológicas que outras. O que é especificamente ideológico na burguesia é sua incapacidade de compreender a estrutura da formação social como um todo por causa dos efeitos nefastos da reificação. A reificação fragmenta e desloca nossa experiência social, de modo que, sob sua influência, esquecemos que a sociedade é um processo coletivo e passamos a vê-la meramente como este ou aquele objeto ou instituição isolados (EAGLETON, 1997, p. 91).
O Estado é um derivado necessário da própria reprodução capitalista; essas relações ensejam sua constituição ou sua formação. Sendo estranho a cada burguês e a cada trabalhador explorado, individualmente tomados, é, ao mesmo tempo, elemento necessário de sua constituição e da reprodução de suas relações sociais […]. Nessa rede de relações na qual se condensa o Estado, é no capital que reside a chave de sua existência. Por isso, não é partindo das características do aparato estatal em si que se descobrirá a sua eventual utilização ou não pela burguesia. Pelo contrário, é pela estrutura da reprodução do capital que se entende o lócus desse aparato político específico e relativamente alheado das classes que se chama hodiernamente Estado (MASCARO, 2013, p.19).
A crise da nossa ordem social nunca foi tão grande quanto hoje. Sua solução é inconcebível sem a intervenção sustentada da política revolucionária numa escala adequada. A ordem dominante não é capaz de gerir seus interesses, nas condições de uma crise estrutural que se aprofunda, sem adotar medidas cada vez mais autoritárias e repressivas contra as forças opostas às tendências destrutivas em curso de desenvolvimento, e sem o engajamento de suas potências imperialistas hoje ocupadas em aventuras militares genocidas. Seria a maior das ilusões imaginar que uma ordem política e socioeconômica desse tipo fosse reformável, no interesse do trabalho, quando resistiu com firmeza à instituição de todas as mudanças significativas propostas pelo movimento reformista no curso de sua longa história, pois hoje a margem de ajustes acomodatícios se estreita diante da incontrolável inter-relação global das contradições e antagonismos do capital (MÉSZÁROS, 2010, p.48).
A questão de saber se cabe ao pensar humano uma verdade objetiva – não é uma questão de teoria, mas sim uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensar […] (MARX, segunda tese sobre Feuerbach).
Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que levam a teoria ao misticismo, encontram sua solução na práxis humana e no ato de compreender essa práxis (MARX, oitava tese sobre Feuerbach).----------------------------
*RODRIGO MEIRA MARTONI é Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor efetivo do Curso de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1460183081425094
Fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/03/19/ensaio-sobre-a-pratica-das-praticas/
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