Nem o juiz Carlos Alexandre é o juiz Sérgio Moro, nem o Correio da Manhã
ou a TVI são a Rede Globo, mas as estruturas profundas do caso José
Sócrates e da Operação Lava-Jato revelam algumas semelhanças
inquietantes.
Quando, há quase trinta anos, iniciei os estudos sobre o sistema
judicial em vários países, a administração da justiça era a dimensão
institucional do Estado com menos visibilidade pública. A grande exceção
eram os EUA, devido ao papel fulcral do Tribunal Supremo nas definições
das mais decisivas políticas públicas. Sendo o único órgão de soberania
não eleito, tendo um carácter reativo (não podendo, em geral,
mobilizar-se por iniciativa própria) e dependendo de outras instituições
do Estado para fazer aplicar as suas decisões (serviços prisionais,
administração pública), os tribunais tinham uma função relativamente
modesta na vida orgânica da separação de poderes instaurada pelo
liberalismo político moderno, e tanto assim que a função judicial era
considerada apolítica. Contribuía também para isso o facto de os
tribunais só se ocuparem de conflitos individuais e não coletivos. Pouco
se sabia como funcionava o sistema judicial, as características dos
cidadãos que a ele recorriam e para que objetivos o faziam. Tudo mudou
desde então até aos nossos dias. Contribuíram para isso, entre outros
fatores, a crise da representação política que atingiu os órgãos de
soberania eleitos, a maior consciência dos direitos por parte dos
cidadãos e o facto de as elites políticas, confrontadas com alguns
impasses políticos em temas controversos, terem começado a ver o recurso
seletivo aos tribunais como uma forma de descarregarem o peso político
de certas decisões. Por todas estas razões, surgiu um novo tipo de
ativismo judiciário que ficou conhecido por judicialização da política e
que inevitavelmente conduziu à politização da justiça.
A grande
visibilidade pública dos tribunais nas últimas décadas resultou, em boa
medida, dos casos judiciais que envolveram membros das elites políticas e
económicas. O grande divisor de águas foi o conjunto de processos
criminais que atingiu quase toda a classe política e boa parte da elite
económica da Itália conhecido por Operação Mãos Limpas. Iniciado em
Milão em abril de 1992, consistiu em investigações e prisões de
ministros, dirigentes partidários, membros do parlamento (em certo
momento estavam a ser investigados cerca de um terço dos deputados),
empresários, funcionários públicos, jornalistas, membros dos serviços
secretos acusados de crimes de suborno, corrupção, abuso de poder,
fraude, falência fraudulenta, contabilidade falsa, financiamento
político ilícito. Dois anos mais tarde tinham sido presas 633 pessoas em
Nápoles, 623 em Milão e 444 em Roma. Por ter atingido toda a classe
política com responsabilidades de governação no passado recente, o
processo Mãos Limpas abalou os fundamentos do regime político italiano e
esteve na origem da emergência, anos mais tarde, do "fenómeno"
Berlusconi. O caso mais recente e talvez o mais dramático de todos os
que conheço é a Operação Lava-Jato no Brasil.
Iniciada em março de
2014, esta operação judicial e policial de combate à corrupção, em que
estão envolvidos mais de uma centena de políticos, empresários e
gestores, tem-se vindo a transformar a pouco e pouco no centro da vida
política brasileira. Ao entrar na sua 24ª fase, com a implicação do
ex-presidente Lula da Silva e com o modo como foi executada, está a
provocar uma crise política de proporções semelhantes à que antecedeu o
golpe de Estado que em 1964 instaurou a uma odiosa ditadura militar que
duraria até 1985. O sistema judicial, que tem a seu cargo a defesa e
garantia da ordem jurídica, está transformado num perigoso fator de
desordem jurídica. Medidas judiciais flagrantemente ilegais e
inconstitucionais, a seletividade grosseira do zelo persecutório, a
promiscuidade aberrante com os média ao serviços das elites políticas
conservadoras, o hiper-ativismo judicial aparentemente anárquico,
traduzido, por exemplo, em 27 providência cautelares visando o mesmo ato
político (a nomeação ministerial do Lula), tudo isto conforma uma
situação de caos judicial que acentua a insegurança jurídica, aprofunda a
polarização social e política e põe a própria democracia brasileira à
beira do caos. Com a ordem jurídica transformada em desordem jurídica,
com a democracia sequestrada pelo órgão de soberania que não é eleito, a
vida política e social brasileira transforma-se num potencial campo de
despojos à mercê de aventureiros e abutres políticos.
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* É Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Fonte: https://www.publico.pt/mundo/noticia/os-perigos-da-desordem-juridica-1727197
Imagem da Internet: Boaventura de Sousa Santos no 6.° Fórum Mundial de Juízes. Porto Alegre, 2010.
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