Leonardo Boff*
Face ao desamparo que grassa no Brasil e na humanidade atual faz-se
urgente resgatar o sentido libertador da utopia. Na verdade, vivemos no
olho de uma crise da ordem política e do tipo de democracia que temos,
mais ainda, de uma crise civilizacional de proporções planetárias.
Toda crise oferece chances de transformação bem como de riscos e de
fracassos. Na crise, medo e esperança, expressões de raiva e de
violência real ou simbólica se mesclam com conclamçãoes à tolerância e
ao diálogo, especialmente neste momento crítico da sociedade nacional e,
no plano internacional, devido aos 40 focos de guerra e ao fato de que
já estamos dentro do aquecimento global.
Precisamos de esperança. Ela se expressa na linguagem das utopias.
Estas por sua natureza, nunca vão se realizar totalmente. Mas elas nos
mantém caminhando. Bem disse o irlandês Oscar Wilde: ”Um mapa do mundo
que não inclua a utopia não é digno de ser olhado, pois ignora o único
território em que a humanidade sempre atraca, partindo em seguida, para
uma terra ainda melhor”. Entre nós acertadamente observou o poeta Mário
Quintana: “Se as coisas são inatingíveis…ora!/Não é motivo para não
querê-las/Que tristes os caminhos e se não fora/ A mágica presença das
estrelas”.
A utopia não se opõe à realidade, antes pertence à ela, porque esta não é feita apenas por aquilo que é dado, mas por aquilo que é potencial
e que pode um dia se transformar em dado. A utopia nasce deste
transfundo de virtualidades presentes na história, na sociedade e em
cada pessoa.
O filósofo Ernst Bloch cunhou a expressão principio-esperança.
Por princípio-esperança que é mais que a virtude da esperança, ele
entende o inesgotável potencial da exitência humana e da história que
permite dizer não a qualquer realidade concreta, às limitações
espácio-temporais, aos modelos políticos e às barreiras que cerceiam o
viver, o saber, o querer e o amar.
O ser humano diz não porque primeiro disse sim : sim
à vida, ao sentido, à uma sociedade com menos corrupção e mais justa,
aos sonhos e à plenitude ansiada. Embora realisticamente não entreveja a
total plenitude no horizonte das concretizações históricas, nem por
isso ele deixa de ansiar por ela com uma esperança jamais arrefecida.
Jó, quase nas vascas da morte, podia gritar a Deus:”mesmo que Tu me
mates, ainda assim espero em Ti”. O paraíso terrenal narrado no Gênesis
2-3 é um texto de esperança. Não se trata do relato de um passado
perdido e do qual guardamos saudades, mas é antes uma promessa, uma
esperança de futuro ao encontro do qual estamos caminhando. Como
comentava Bloch: “o verdadeiro Gênese não está no começo mas no fim”. Só
no termo do processo da evolução serão verdadeiras as palavras das
Escrituras: ”E Deus viu que tudo era bom e muito bom”. Enquanto evoluímos nem tudo é bom, só perfectível.
O essencial do Cristianismo não reside em afirmar a encarnação de
Deus. Outras religiões também o fizeram. Mas é afirmar que a utopia
(aquilo que não tem lugar) virou eutopia (um lugar bom). Em alguém, não
apenas a morte foi vencida, o que seria muito, mas ocorreu algo maior:
todas virtualidades escondidas no ser humano, explodiram e implodiram.
Jesus de Nazaré é o “Adão novíssimo” na expressão de São Paulo, o homem
abscôndito agora revelado. Mas ele é apenas o primeiro dentre muitos
irmãos e irmãs; nós seguiremos a ele, completa São Paulo. Portanto, o
nosso futuro é a transfiguração da vida em plenitude e não o pó cósmico.
Anunciar tal esperança no atual contexto sombrio do Brasil e do mundo
não é irrelevante. Transforma a eventual tragédia da política, da Terra
e da Humanidade devido à dissolução social e às ameaças sociais e
ecológicas, numa crise purificadora.
Vamos fazer uma travessia perigosa, mas a vida será garantida e o Brasil bem como o Planeta ainda se regenerarão e encontrarão um caminho que nos abra um futuro esperançador.
Os grupos portadores de sentido, as filosofias, os partidos com
propostas sociais bem fundadas e principalmente as religiões e as
Igrejas cristãs devem proclamar de cima dos telhados semelhante
esperança.
Para os cristãos, a grama não cresceu sobre a sepultura de Jesus. A
partir da crise da sexta-feira da crucificação, a vida triunfou. Por
isso a tragédia não pode escrever o último capítulo da história nem do
Brasil nem da Mãe Terra. Este o escreverá a vida em seu esplendor solar.
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*Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor e escreveu A nossa ressurreição na morte, Vozes 2008.
Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2016/03/11/o-resgate-da-utopia-no-contexto-atual/
Imagem da Internet
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