Márcio Tavares D'Amaral*
O medo que me toma todo é o da humilhação da vida. Não pode ser. A serenidade é o único antídoto que conheço
Serenidade é
uma palavra pacífica. Originalmente aplicava-se ao tempo. Dizia-se de
um dia de sol esperançoso, tranquilo e claro. Um dia claro permite ver. E
a visão deixa tranquilos os corações que se assustavam na névoa. Depois
essa qualidade deslizou para as pessoas. Há pessoas serenas. Calmas no
coração. Claras na inteligência. Há as que trazem vulcões, mas lutam em
busca de uma boa luz. E conseguem. A serenidade assinala pessoas que
levam na testa a marca delicada de Deus. Precisamos de pessoas assim. A
névoa está baixa. O céu enfarruscou-se. As pessoas não se veem, e têm
medo. O medo se engravida de ódio. Os serenos não odeiam.
Quando, no século XIX, Nietzsche buscou a causa do que julgava ser a decadência da humanidade, procurou uma origem grande, cuja perda levou ao fundo do poço do que ele chamou “o último homem’’, o que ‘‘deseja morrer’’, carregado com todos os valores que amesquinham a vida. E encontrou essa alta origem na experiência trágica dos antigos gregos. O gosto da superabundância da força, do transbordamento criador. A “grande saúde’’. E atribuiu essa desmesura ao deus Dionísio, o Baco dos romanos, o do vinho, da ebriedade, do prazer. Da bacanal, palavra que já teve um sentido sagrado. Para que a enormidade dessa potência não trouxesse no seu cortejo a morte, descobriu que os antigos e sábios gregos estabeleceram um equilíbrio entre a força dionisíaca e Apolo, o deus da precisão, da clareza de limites. Apolo é o sol. Dionísio é noturno. Apolo traz o dia. É calmo e tranquilo. E claro.
A humanidade, diz Nietzsche, liquidou Dionísio. Apolo reina sozinho. E o excesso de claridade nos cegou para a potência da vida. Tornamo-nos submissos a valores que ele ironicamente chamava de “superiores’’. Superiores à vida, como é possível?? E assim vivemos na decadência até o homem que perdeu tudo de vital, e deseja morrer. Culpa de Sócrates, acusou Nietzsche. Se Atenas não o tivesse condenado a uma morte política, Nietzsche o estrangularia pessoalmente com suas mãos dionisíacas. E traria a ebriedade e a demasia de volta. Ele odiava a razão socrática. E a perdeu. Enlouqueceu mansamente. Uma loucura serena foi seu mais tremendo gesto dionisíaco.
Gosto dessa interpretação nietzschiana da História. Sobretudo porque no final dela a grande força represada salta do fundo do poço e restabelece a vida na sua potência pura. Vejo beleza nesse pensamento. Esperança. Mas estou entre as pessoas que, não tendo recebido o dom da serenidade no berço, procuram-na diariamente debaixo das pedras, por perto das gentes, na linha móvel do horizonte. Levo o dionisíaco e o apolíneo para os meus alunos. Sorrio com eles. E eles para mim. O sorriso é o sinal da serenidade. Começa na boca e nos olhos. E desce ao coração. A serenidade, quando não se tem, conquista-se. Mas o trabalho de encontrá-la sem perder a paixão é grande. Não quero ser um monge contemplativo. Quero ser uma delicadeza e um riso. Não é óbvio. Não é fácil. Por isso tantos desistem. Nem começam a tentar.
Mas é preciso. No nosso país, o tempo está fechado. Escuro, sem claridade no céu e clareza nas almas. Tão intranquilo. Fala-se muito, nestes dias, na “tempestade perfeita’’, a que arranca raízes e arrasa montanhas. Quem deseja a tempestade perfeita? A quem beneficia? Haverá mesmo os que se alegrem com a destruição? A classe dos cavadores de escombros. Os herdeiros dos destroços. Haveria alegria em recolher cadáveres? Não creio. Firmemente não creio. A destruição, simplesmente, destrói. Nada de bom vem dela. Mas, parece, vivemos a tempestade perfeita. Há quem prefira o céu quando não há horizonte. Parece. E é triste.
Debaixo do céu sem calma e claridade não há pessoas serenas. Há gente com medo. O medo é insuportável. Procuram-se então os culpados pelo medo. E da atribuição de culpa nasce o ódio. Debaixo do céu sem calma florescem pessoas que temem e odeiam. Noturnamente, como cogumelos doentes. E não pode ser assim. Não foi para o ódio que viemos. Nem para o medo. Viemos para a luz. E a alegria, potência maior da vida. Estamos perdendo a alegria. Corremos o risco de perder a vida. O que temos de absolutamente sagrado. O chão onde deviam crescer, à luz do sol, serenamente, a amizade e o amor. A compaixão. A fraternidade. Quando não formos mais capazes disso, ainda saberemos chorar sobre a vida desperdiçada? Ainda nos lembraremos dela?
Não sei se a serenidade se partilha. Mas nesse momento de tanta escuridão, é só o que tenho para oferecer. É coisa pequena. No tempo do ódio talvez pouca gente a veja. Mas ainda assim a ofereço. Com imensíssima humildade. O medo que me toma todo é o da humilhação da vida. Não pode ser. A serenidade é o único antídoto que conheço. Tenho esperança de que alguém queira pegar. E encontre nela alguma alegria.
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* Jornalista.
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/serenidade-18915094 - 19/03/2016
Imagem da Internet
Quando, no século XIX, Nietzsche buscou a causa do que julgava ser a decadência da humanidade, procurou uma origem grande, cuja perda levou ao fundo do poço do que ele chamou “o último homem’’, o que ‘‘deseja morrer’’, carregado com todos os valores que amesquinham a vida. E encontrou essa alta origem na experiência trágica dos antigos gregos. O gosto da superabundância da força, do transbordamento criador. A “grande saúde’’. E atribuiu essa desmesura ao deus Dionísio, o Baco dos romanos, o do vinho, da ebriedade, do prazer. Da bacanal, palavra que já teve um sentido sagrado. Para que a enormidade dessa potência não trouxesse no seu cortejo a morte, descobriu que os antigos e sábios gregos estabeleceram um equilíbrio entre a força dionisíaca e Apolo, o deus da precisão, da clareza de limites. Apolo é o sol. Dionísio é noturno. Apolo traz o dia. É calmo e tranquilo. E claro.
A humanidade, diz Nietzsche, liquidou Dionísio. Apolo reina sozinho. E o excesso de claridade nos cegou para a potência da vida. Tornamo-nos submissos a valores que ele ironicamente chamava de “superiores’’. Superiores à vida, como é possível?? E assim vivemos na decadência até o homem que perdeu tudo de vital, e deseja morrer. Culpa de Sócrates, acusou Nietzsche. Se Atenas não o tivesse condenado a uma morte política, Nietzsche o estrangularia pessoalmente com suas mãos dionisíacas. E traria a ebriedade e a demasia de volta. Ele odiava a razão socrática. E a perdeu. Enlouqueceu mansamente. Uma loucura serena foi seu mais tremendo gesto dionisíaco.
Gosto dessa interpretação nietzschiana da História. Sobretudo porque no final dela a grande força represada salta do fundo do poço e restabelece a vida na sua potência pura. Vejo beleza nesse pensamento. Esperança. Mas estou entre as pessoas que, não tendo recebido o dom da serenidade no berço, procuram-na diariamente debaixo das pedras, por perto das gentes, na linha móvel do horizonte. Levo o dionisíaco e o apolíneo para os meus alunos. Sorrio com eles. E eles para mim. O sorriso é o sinal da serenidade. Começa na boca e nos olhos. E desce ao coração. A serenidade, quando não se tem, conquista-se. Mas o trabalho de encontrá-la sem perder a paixão é grande. Não quero ser um monge contemplativo. Quero ser uma delicadeza e um riso. Não é óbvio. Não é fácil. Por isso tantos desistem. Nem começam a tentar.
Mas é preciso. No nosso país, o tempo está fechado. Escuro, sem claridade no céu e clareza nas almas. Tão intranquilo. Fala-se muito, nestes dias, na “tempestade perfeita’’, a que arranca raízes e arrasa montanhas. Quem deseja a tempestade perfeita? A quem beneficia? Haverá mesmo os que se alegrem com a destruição? A classe dos cavadores de escombros. Os herdeiros dos destroços. Haveria alegria em recolher cadáveres? Não creio. Firmemente não creio. A destruição, simplesmente, destrói. Nada de bom vem dela. Mas, parece, vivemos a tempestade perfeita. Há quem prefira o céu quando não há horizonte. Parece. E é triste.
Debaixo do céu sem calma e claridade não há pessoas serenas. Há gente com medo. O medo é insuportável. Procuram-se então os culpados pelo medo. E da atribuição de culpa nasce o ódio. Debaixo do céu sem calma florescem pessoas que temem e odeiam. Noturnamente, como cogumelos doentes. E não pode ser assim. Não foi para o ódio que viemos. Nem para o medo. Viemos para a luz. E a alegria, potência maior da vida. Estamos perdendo a alegria. Corremos o risco de perder a vida. O que temos de absolutamente sagrado. O chão onde deviam crescer, à luz do sol, serenamente, a amizade e o amor. A compaixão. A fraternidade. Quando não formos mais capazes disso, ainda saberemos chorar sobre a vida desperdiçada? Ainda nos lembraremos dela?
Não sei se a serenidade se partilha. Mas nesse momento de tanta escuridão, é só o que tenho para oferecer. É coisa pequena. No tempo do ódio talvez pouca gente a veja. Mas ainda assim a ofereço. Com imensíssima humildade. O medo que me toma todo é o da humilhação da vida. Não pode ser. A serenidade é o único antídoto que conheço. Tenho esperança de que alguém queira pegar. E encontre nela alguma alegria.
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* Jornalista.
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/serenidade-18915094 - 19/03/2016
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