A desembargadora
Kenarik Boujikian fala à Ponte sobre o julgamento, nesta quarta-feira
(27/01), da instauração de um processo contra ela na Justiça de SP por
determinar a soltura de detidos que já haviam cumprido pena
O
Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo irá julgar nesta
quarta-feira, 27/01, a instauração de um processo administrativo contra a
juíza Kenarik Boujikian por esta determinar a soltura de presos
provisórios que já haviam cumprido a pena estipulada em suas sentenças.
De acordo com a representação, Boujikian teria desrespeitado o princípio
da colegialidade, segundo o qual as decisões devem ser tomadas por no
mínimo três desembargadores. De acordo com ela e com um parecer do jurista Mauricio Zanoide, porém, em alguns casos cabe a decisão individual, que pode, posteriormente, ser mantida ou alterada pelos demais magistrados.
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Para
a juíza, a questão de fundo é a Justiça neoliberal “que, segundo o
[jurista francês] Antoine Garapon, tem critérios próprios, dentre eles a
chamada ‘segurança’, pronta a homogeneizar os processos judiciais, a
prestação jurisdicional, na área criminal, dirigidos a um grupo
determinado que precisa de controle pela via punitiva”. Nos últimos
dias, a magistrada recebeu o apoio de juristas e organizações que trabalham com a questão carcerária, como o ITTC e a Pastoral Carcerária.
Juíza
desde janeiro de 1989, Kenarik Boujikian atua há bastante tempo na área
criminal. Integra a Associação Juízes para a Democracia (AJD), da qual
já foi presidenta. Veja a entrevista a seguir:
O que é o processo que a senhora pode sofrer?
Kenarik Boujikian – É um processo administrativo,
que é instaurado por decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça
de São Paulo, composto por 25 desembargadores, dos quais a metade é
formada pelos mais antigos e outro tanto eleito, por voto exclusivo dos
desembargadores. Poucos tribunais permitem que os juízes votem (como o
Tribunal Regional do Trabalho da 16 ª Região). O processo é instaurado
quando um magistrado é acusado de cometer uma falta funcional, uma
falta disciplinar. No caso, a falta funcional é que eu não teria
obedecido o principio da colegialidade e não agi com prudência nos
casos em que determinei a expedição de alvará de soltura.
De
regra, as decisões dos processos que estão no Tribunal devem ser feitas
por três desembargadores, no mínimo. Há normas que permitem que algumas
decisões sejam realizadas individualmente. Eu decidi em alguns casos
monocraticamente, ou seja, sozinha, em um primeiro momento. Eram casos
permitidos, pois são cautelares, e, para mim, não só permitido, como
devido, nos termos da Constituição Federal, pois se trata da liberdade,
bem mais elevado. Todos os casos foram levados para julgamento para o
colegiado, que pôde manter ou alterar a minha decisão.
Se o
processo administrativo for instaurado, após seu andamento natural
existirá outra decisão por este mesmo órgão, que pode absolver ou
condenar e aplicar uma sanção, por eu ter decidido dessa forma.
Quais foram os casos em questão?
Todos
os processos que chegam no Tribunal são sorteados e encaminhados para
análise de um desembargador relator. Nesses casos, eu era relatora e, no
momento em que verifiquei que o tempo de prisão do indivíduo tinha
alcançado a pena fixada pelo juiz na sentença, determinei a expedição de
alvará de soltura clausulado e registrei no processo que assim o fazia
por cautela, já que não havia informação nos autos de eventual soltura.
“Clausulado” quer dizer que o individuo não poderia ser solto se tivesse
outro processo que tivesse prisão determinada, o que é uma praxe. Fiz
isso de ofício, sem que houvesse um pedido, e penso que esse meu agir
foi um agir prudente. Não acho que seria possível verificar essa
situação e ficar de braços cruzados, fingir que não vi.
Por que existem casos em que o tempo de prisão ultrapassa o determinado pela sentença do juiz?
A
prisão cautelar (como flagrante e preventiva) é prisão sem pena
definitiva. Na realidade, no dia a dia, é tudo igual. Mesmo
estabelecimento, mesma superlotação, mesmo caos, mesmas regras, mesmo
dia de visita, mesma falta de trabalho, mesma comida, mesmos horários
para banho, comida, dormir, mesmo tudo. A prisão cautelar tem um
limite, que é o que o próprio Poder Judiciário definiu, ou seja, o tempo
da prisão cautelar não pode passar da pena que foi fixada pelo juiz na
sentença, independente do que vier a acontecer. Essa pena pode, em
tese, ser diminuída, alterada por outro tipo de pena, aumentada, ou pode
não existir mais em caso de absolvição pelo Tribunal. De qualquer
sorte, penso que ninguém pode permanecer além desse teto. O dr. Mauricio Zanoide, professor da USP, ofertou parecer que trata de forma minudente de todas essas questões de direito.
O
desembargador que fez a representação mencionou 11 processos, mas meus
advogados, dr. Igor Sant’Anna Tamasauskas e dr. Pierpaolo Bottini,
esclareceram ao desembargador corregedor que foram 50 processos, nessas
mesmas circunstâncias. O que não quer dizer, necessariamente, que
estivessem ainda presos, pois era possível que tivessem sido soltos e
essa informação ainda não estivesse nos autos.
Para
mim, isso só vem a demonstrar a necessidade de repensar o sistema
processual das prisões provisórias, que são, verdadeiramente, uma
antecipação de cumprimento de pena. Temos uma população de cerca de 630
mil presos, com um crescimento bárbaro de mulheres encarceradas por
crimes não violentos. Do total, cerca de 40% são presos provisórios. Por
esses dias, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal
Federal, destacou a cultura do encarceramento e está propondo nova
legislação que afetaria essa situação. O STF, em recente decisão,
reconheceu o caos do sistema prisional e seu estado de coisa
inconstitucional.
Existem
mecanismos, alguns adotados aqui mesmo no Tribunal de Justiça de São
Paulo, posteriormente acolhidos pelo Conselho Nacional de Justiça, que
incluem a chamada execução criminal provisória, mas todo o sistema pode
falhar e a cautela acaba sendo algo prudente. Sempre digo, melhor a mais
do que a menos.
Como a senhora vê a ameaça de ser processada?
No
aspecto pessoal, posso dizer que é bastante desgastante, mas a comunhão
de ideias e princípios com tantas pessoas que demostraram solidariedade,
faz toda a diferença, razão pela qual estou aguardando serena e
tranquila a decisão. Por outro lado, vejo este momento de forma
enriquecedora, como uma oportunidade de repensar a necessidade de o
Brasil aprimorar o sistema de garantia da independência judicial. A
nossa Constituição Federal, normas regionais e internacionais, no âmbito
da Organização dos Estados Americanos e da ONU, estabelecem essa
garantia, pois é necessário blindar o juiz de pressões externas e
internas. A independência não é um privilégio dos juízes, mas um direito
dos cidadãos para o correto funcionamento do Estado Democrático de
Direito. Para mim, todos os juízes estão obrigados a manter e defender
sua independência no exercício da função jurisdicional, como um dever
ético. O juiz não é o destinatário da independência judicial, mas tem
obrigação de ser seu primeiro guardião.
Ser
julgada pelo conteúdo das minhas decisões fere até a Lei Orgânica da
Magistratura, que é a última lei da ditadura, pois até ela determina que
um juiz não pode ser processado pelo conteúdo das suas decisões, salvo
se por improbidade. Espero que algo de positivo reste dessa história.
Por que há tanta contrariedade em relação à sua decisão?
A
questão de fundo, que não sei o quanto se encontra no plano da
consciência, deve ter relação com a Justiça neoliberal, que, segundo
Antoine Garapon [jurista francês], tem critérios próprios, dentre eles a
chamada “segurança”, pronta a homogeneizar os processos judiciais, a
prestação jurisdicional, na área criminal, dirigidos a um grupo
determinado que precisa de controle pela via punitiva.
Em
termos de direito penal, com essa cultura arraigada no cotidiano dos
fóruns, qualquer pensamento dentro do marco punitivo que não seja
daquela maioria momentânea soa como alerta contra alguém que coloca em
perigo a “segurança”, ainda que a posição possa estar na mesma linha de
decisões do STF, por exemplo. Penso que se for uma mulher a fazer esse
rompimento, as questões passam a ter maior gravidade, pois não podemos
esquecer que o mundo penal ainda é dos homens e as relações são
permeadas pelas relações de poder. Isso me faz martelar o que disse
Florizelle O’Connor [advogada de direitos humanos jamaicana] em estudo
para a ONU sobre o encarceramento de mulheres: precisamos rever nosso
conceito de crime, castigo e justiça.
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Reportagem Por Igor Ojeda e Tatiana Merlino
Fonte: http://ponte.org/nao-poderia-fingir-que-nao-vi-diz-juiza-que-pode-sofrer-processo-por-soltar-presos-provisorios/ - acesso 12/03/2016
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