Marcelo Coelho*
Na matemática, todos concordam, impera a exatidão. Mas os números enganam muito. Dou um exemplo.
Saiu no domingo passado (28) uma edição comemorando os 95 anos da Folha. Com certeza, 95 anos são uma enormidade de tempo.
Faço as contas, entretanto, e vejo que estou no jornal há 32 anos. Ou seja, um terço da longa existência da Folha eu vivi aqui dentro. E um terço não é pouco, acho eu; está longe de corresponder a uma fração desprezível de todo o processo.
Só que eu também sinto que 32 anos correspondem a um período
relativamente curto. Entrei no jornal já bem grandinho, mas não estou
(acho) gagá.
Por outro lado, resisto à frase que todo sujeito de mais idade vive repetindo: "Passou num instante! Parece que foi ontem!".
Não, não parece. Acho que somos vítimas de uma espécie de ilusão de
ótica nesse caso. Pega-se um fato marcante —o primeiro dia de um filho
na escola, a morte de Tancredo Neves, uma viagem à Argentina— e aquilo
aparece na memória com muita nitidez.
A exatidão da lembrança produz o sentimento de proximidade temporal.
Qualquer vida se resume em dez ou vinte fatos marcantes, mais o que pode
ressurgir no acaso de uma fotografia, de um objeto esquecido na gaveta,
de um reencontro pessoal.
Claro que, recuperado em alguns "flashes" de memória, tudo se passa com a
rapidez daqueles desenhos animados caseiros, que fazemos com um
bloquinho de papel.
O que nos espanta, quando pensamos na velocidade com que o tempo passa
é, na verdade, a velocidade, a força, o impacto com que reaparecem essas
memórias pontuais.
Boa notícia, portanto: se você reclama da curta duração da própria vida, é sinal de que sua memória ainda não foi para a cucuia.
Mas talvez boa parte dela já tenha ido. Por azar ou por sorte, minhas
lembranças se acumulam mais do lado negativo do que do positivo. Ou
seja, lembro mais das coisas ruins que das coisas boas.
E as coisas ruins ou chatas possuem uma duração diferente. Que minutos,
que horas intermináveis de espera até que um bebê adormeça ou pare de
chorar, por exemplo! Isso muita gente esquece, até porque nada
acontecia, só o tédio, a angústia e o cansaço.
A vida passou rápido? Sorte a sua de não se lembrar de tanta coisa
infinitamente igual e cansativa. As discussões econômicas durante o
governo Sarney, semana após semana; as incontáveis tardes de sábado
fazendo lição para os padres do colégio; os longos recreios depois do
almoço nauseante, esperando a aula de educação física; as horas à
cabeceira de um doente; as estradas, os voos de avião...
Passou depressa? É apenas a preguiça de lembrar. Uma noite de descanso,
um filme no cinema, uma pizza, e pronto. Acaba rápido a sensação das
horas longas e vazias. Passa num minuto a impressão do tempo que não
passa.
Fez-se a mágica: enterramos, à força de fatos novos, um passado de
proporções descomunais. Porque vivemos sempre para a frente, a duração
das coisas desaparece, mas essa duração, afinal, é a própria vida.
É como se uma pessoa, ao ver um mapa, se admirasse: "Como São Paulo é perto do Polo Norte!".
Vê apenas o contorno de uma linha minúscula separando a área branca de
uma superfície azul. Aproxime-se: verá extensões de gelo impossíveis de
percorrer num dia, numa semana, num mês. Verá as geleiras que se movem
imperceptivelmente, até que de repente desabam. Tem ainda diante de si
os icebergs que, por sua vez, são apenas a parte emersa de seu
inconsciente, vivendo também.
Proust falava dos pequenos eventos que desencadeiam, magicamente, o
poder que temos de reconstruir "o edifício imenso da lembrança". Da vida
"realmente vivida", acrescenta, temos pouquíssima ideia; passamos por
ela sem perceber, preocupados com alguma coisa desimportante, esquecidos
de nossas próprias sensações e pensamentos.
O livro de Proust ensina muito no que se refere a apreciar tudo o que a
vida oferece a cada instante. É um antídoto contra a chateação e o
vazio; para ele, aliás, não existe vazio.
Só que a memória, por definição, ignora o vazio, a não vida, que tantas
vezes sentimos e de que continuamos sempre a fugir. Passou rápido? Nem
um pouco. Cuidado. Você deve estar dormindo no volante.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2016/03/1745232-nao-parece-que-foi-ontem.shtml
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