sábado, 12 de março de 2016

NÓS e ELES

 Eliana Cardoso*
 

Tempos de crise, coração. A cada dia mais se agrava a polarização entre petistas e não petistas. Dizem que é preciso unificar o país. Em torno de quem? Além do impeachment da presidente não se vislumbra a possibilidade de consenso para aprovação de uma agenda. Nem mesmo de uma agenda baseada na ética minimalista de Hobbes, segundo a qual a prioridade seria evitar o conflito e a violência entre as partes. Afinal, essa agenda mínima pode ter implicações indesejáveis se, para evitarmos conflitos, for preciso abdicar de valores mais importantes.

Alguns economistas - ou serei apenas eu? - vinculam o sucesso duradouro de uma sociedade à conduta ética de seus membros. Benefícios no longo prazo acontecem quando se dá prioridade à conduta ética e à colaboração antes da maximização dos benefícios ditados pelo autointeresse. A dificuldade reside na definição do comportamento ético.

A psicologia positiva parece acreditar que tem a resposta. Martin Seligman - professor da Universidade da Pensilvânia, autor de livros de autoajuda e famoso por sua teoria do desamparo aprendido (condição psicológica na qual o indivíduo, diante de circunstâncias adversas, não reage mesmo podendo mudar a situação) - está difundindo estudos de colega que dividem o processo de decisões morais em dois: um intuitivo e outro racional. A moralidade superficial consiste de intuições irrefletidas e rápidas. A profunda deriva de escolhas pesadas considerando o valor da honestidade e dos ideais.

Jonathan Haidt, professor de psicologia social na New York University e autor de "The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion" (Vintage) nega que a razão tenha qualquer papel na motivação dos julgamentos morais a não ser criar justificativas a posteriori para intuições. Os cérebros de diferentes pessoas operam com intuições. Os cérebros de diferentes pessoas operam com intuições diversas, levando, portanto, à adoção de ideologias variadas. Isso dificulta a cooperação entre as pessoas e origina a polarização política observada, por exemplo, nas disputas eleitorais entre republicanos e democratas nos Estados Unidos e entre coxinhas e acarajés no Brasil.

Haidt identifica seis pares básicos de intuições morais que fundamentam os sistemas morais:
a compaixão (contra a maldade),
a justiça (contra a fraude),
a lealdade (contra a traição),
a autoridade (contra a subversão),
a santidade (contra a degradação)
e a liberdade (contra a opressão). 

Ele acredita que os conservadores se valem de cada um desses diferentes fundamentos morais, enquanto os progressistas são motivados principalmente pela compaixão. As confrontações surgiriam daí. Ao propor a conciliação entre conservadores e progressistas, Haidt implicitamente pressupõe que a norma da cooperação deve prevalecer sobre os valores que dividem os antagonistas.

Outros psicólogos criticam Haidt pelo seu ceticismo em relação ao papel da razão. O psicólogo de Harvard Steven Pinker argumenta que as formas racionais e deliberadas de avaliação devem ter precedência sobre as poderosas intuições afetivas. Por formas racionais de avaliação ele quer dizer a avaliação feita através da permuta de perspectivas entre os antagonistas para que eles possam aproveitar as oportunidades oferecidas por jogos de soma positiva. Ele acredita que deveríamos buscar a implementação de políticas e leis que se tornem uma segunda natureza a guiar nosso comportamento. Isso parece bonito. Psicólogos da mesma persuasão acreditam que podem empregar os seus conhecimentos para discriminar entre os nossos instintos emocionais enganosos e nossas visões morais mais elevadas. Entretanto, a sugestão de que a perícia em psicologia, uma ciência natural descritiva, por si só, poderia qualificar alguém para determinar o que é moralmente certo e errado não passa de falácia. Os padrões morais normativos antecedem qualquer investigação psicológica.

Seja nas colocações de Haidt, seja nas de Pinker, a norma da cooperação parece ser a baliza a partir da qual a psicologia positiva decide qual das intuições morais deve prevalecer, separando os comportamentos bons e maus de acordo com o critério de boa adaptação à norma social de cooperação.
Entretanto, mesmo aqueles que buscam um acordo pragmático precisam de uma filosofia moral explícita e coerente, uma bússola a fornecer a direção, quando sentimos que não podemos confiar no estômago. Temos de perguntar se a regra moral mínima da cooperação empregada por psicólogos é suficiente para fornecer uma bússola moral confiável. Ensinar as pessoas a substituir suas intuições morais só seria uma boa ideia se servir a bons fins. Esses fins devem ser determinados por deliberações morais que antecedem o conhecimento psicológico.
Estamos pois, coração, diante de problemas cabeludos. A religião determinava o certo e o errado, impondo o consenso que legitimava a autoridade política do governante e mantinha a estabilidade doméstica, antes do aparecimento do Estado moderno e secular. E agora? Como fazer que indivíduos, cujos cérebros estão equipados para abraçar diferentes ideologias, evitem a polarização e compartilhem normas e valores numa sociedade democrática? De onde virão os valores autônomos em relação ao poder do Estado?
Aqui chegamos a Nietzsche e a seu ceticismo. Tamsin Shaw, no livro "Nietzsche's Political Skepticism" (e-book) constata que Nietzsche frustra os teóricos da ciência política, pois se abstém de articular uma teoria política, apesar de seus poderosos insights. Shaw acredita que Nietzsche age assim por causa de seu profundo ceticismo em relação à legitimidade da autoridade no Estado moderno. Tendo confirmado a morte de Deus, ele se preocupa com a inabilidade humana de chegar a uma forma política baseada em normas consensuais.

Para governar, o Estado moderno requer legitimidade baseada no consenso em torno de normas. O Estado poderia usar a força para manufaturar o consenso, sem se incomodar com a convergência em torno de normas desejáveis e compartilhadas por todos. Mas não teria legitimidade. Nietzsche duvida que a sociedade secularizada possa gerar consenso suficiente. Falta-lhe um mecanismo confiável para impor restrições normativas ao poder do Estado. Nietzsche não quer abrir mão do poder político estável nem de uma fonte normativa do poder que seja independente dele. Ambos são necessários, mas Nietzsche não vê como possam ser compatíveis. Daí seu ceticismo político.
O ceticismo de Nietzsche se prolonga no deslumbramento estético proporcionado pelo filme de Béla Tarr, "O Cavalo de Turim", em exibição em São Paulo. As palavras que abrem o filme contam que no dia 3 de janeiro de 1889 Friedrich Nietzsche saiu da casa de número 6 na via Carlo Alberto em Turim. Ali perto, o condutor de um cabriolé tinha problemas com um cavalo teimoso, que se recusava a sair do lugar. O condutor o chicoteava. Nietzsche pôs fim à cena brutal e, jogando os braços em volta do pescoço do cavalo, soluçou.
Levado de volta para casa, Nietzsche permaneceu imóvel e em silêncio por dois dias. Depois murmurou: "Mãe, eu sou estúpido". E, demente, passou os dez anos seguintes aos cuidados de sua mãe e irmãs.

"Não sabemos o que aconteceu com o cavalo", diz o apresentador, e o filme retoma a narrativa com uma descrição minuciosa da vida do cavalo, do condutor do cabriolé e de sua filha. Eles vivem isolados numa área inóspita. A rotina diária avança e um texto branco na tela preta serve de transição entre os dias. Pai e filha lutam contra a natureza hostil e indiferente. Tentam arrear o cavalo. A câmara não mostra nem onde eles querem ir nem por que razão. Vemos a rotina diária e a pobreza. O cavalo para de comer, a água seca, a luz se extingue. A tela fica preta, o destino indeterminado.
Béla Tarr deixou de filmar. Seu ceticismo parece tão avassalador quanto o de Nietzsche. Mas você e eu, coração, somos gente comum, querendo recuperar a esperança e um destino melhor para o Brasil.
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* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail: eliana.anastasia@gmail.com
Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/4475546/nos-e-eles
Imagem da Internet

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