intermediado por Colette Lafia, em novembro de 2015
Tive a grande alegria de conhecer Jonathan Montaldo há doze anos no
Centro Santa Sabina em San Rafael, Califórnia, quando ele conduziu um
retiro baseado nos ensinamentos de Thomas Merton. No transcurso dos
anos, cultivamos nossa amizade, e sou grata pela conexão entre nossas
vidas e caminhadas. Quando eu estava escrevendo
Seeking Surrender,
texto centrado em minha amizade com o Irmão René da Abadia de
Gethsemani, em Kentucky, Jonathan incentivou e apoiou meu projeto.
Jonathan Montaldo é um dos principais eruditos especializados em Thomas
Merton. Editou numerosos volumes de escritos de Merton e é ex-diretor do
Centro Thomas Merton da Universidade Bellarmine, em Kentucky, que
contém o maior dos arquivos da obra de Merton. O ano de 2015 foi
movimentado para ele e seus colegas, que contribuíram em diferentes
locais para celebrar o centenário de Merton (1915 -2015). Você
encontrará mais informações sobre seu trabalho e seus livros em
www.MonksWorks.com.
Jonathan fez setenta anos no dia 4 de outubro deste ano em que
comemoramos o centenário de Merton. Disse-me que sente estar entrando em
seus “setenta sagrados”, e a jovialidade deste comentário me fez querer
saber mais. Pedi uma entrevista por escrito e uma conversa sobre sua
vida e seu trabalho como acadêmico dedicado a Merton. Enviei-lhe minhas
perguntas por e-mail. Ele acabara de pregar um retiro em Assis, na
Itália, em 4 de novembro, após o qual escreveu as respostas em Roma
enquanto esperava o voo para a Suécia, onde faria quatro apresentações
durante um Simpósio Merton patrocinado pela Comunidade Ecumênica de Bjärka-Saby, monásticos que são principalmente Pentecostais.
Esse evento na Suécia (ele vai conviver com sua comunidade monástica
diferente durante três semanas) encerrará as atividades de Jonathan nos
festejos do ano do centenário de Merton, durante o qual este foi
“elevado” ao reconhecimento pelo Papa Francisco em discurso perante o
Congresso dos Estados Unidos em 24 de setembro. O Papa o descreve como
“um homem de oração, um pensador que desafiou as certezas de seu tempo e
abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi também um
homem de diálogo, um promotor da paz entre os povos e as religiões.” A
seguir comparou-se com Merton como “construtor de pontes” por meio do
diálogo para ajudar a superar diferenças históricas entre as pessoas e
suas tradições religiosas.
De todos os seus projetos relacionados a Merton, quais são os seus favoritos — aqueles de que mais se orgulha?
Leio Merton desde meus treze anos de idade, interesse que foi
despertado pela entrada de um primo mais velho na vida monástica
Trapista-Cisterciense na Abadia de São José em Spencer, Massachusetts.
Peguei sua autobiografia, A Montanha Dos Sete Patamares, na mesa de
cabeceira do meu tio Bert e meu coração foi “fisgado”. Lembro-me de ler,
a seguir, um livro de fotografias de monges que viviam no mosteiro
francês de Pierre-qui-Vire, do século XII, cuja Introdução Merton escrevera. Esse livro, Silence in Heaven
(Silêncio no Céu), apresentava a visão de Merton sobre a vida monástica
da maneira mais romântica, com fotos profissionais e artísticas dos
monges, inclusive os muito jovens. Ao ver meninos poucos anos mais
velhos do que eu envergando suas cogulas brancas na Missa, com a luz das
velas do altar brilhando em seus rostos, ouvi um “chamado” e quis estar
naquela foto. Teria sido um prato cheio para um junguiano,
especialmente se eu continuasse a falar sobre o que as palavras de
Merton e aquelas lindas imagens despertaram em mim – uma dimensão da
minha alma que nunca perdi ao longo de minha sinuosa jornada pela vida.
“De algum modo profundo que eu mesmo não posso compreender, continuo
sendo — aos quase setenta anos – aquele menino piedoso que queria amar a
Deus em uma comunidade monástica.”
Depois de entrar na vida religiosa aos dezessete, após cinco anos de
estudo para ser Jesuíta na província de Nova Orleans, saí relutantemente
da Companhia de Jesus, pois eu era imaturo demais para perceber que
devia haver um modo íntegro e correto de ser ao mesmo tempo gay e padre
Jesuíta. Renunciei aos meus votos em 8 de dezembro de 1967, aos 22 anos,
na esperança de crescer. Distanciei-me de uma vocação que amava e para a
qual de fato era chamado (entendo isto agora), dando à minha tentativa
imatura a designação de “imaculada concepção errada”.
Convocado quando estava na pós-graduação, alistei-me na Marinha mas fui para Da Nang, Vietnã, servir em Freedom Hill,
um dos dois caras da Marinha em uma base de Fuzileiros Navais.
Evitávamos problemas e nos escondíamos nas sombras, sabendo que era mais
fácil morrermos no fogo cruzado dos fuzileiros do que feridos pelos
norte-vietnamitas. Fiquei estacionado na Virginia, e depois, por
gloriosos dois anos e meio, em Nápoles, na Itália, antes de receber o
título de Mestre em Teologia e Literatura da Emory University com uma tese sobre Merton: “Toward the Only Real City in America: Paradise and Utopia in the Autobiography of Thomas Merton”
(Rumo à Única Cidade Real nos Estados Unidos: Paraíso e Utopia na
Autobiografia de Thomas Merton). Eu estava com vinte e nove anos e
datilografava cartões de biblioteca para poder comer enquanto estudava,
então decidi não fazer doutorado, mas conseguir um emprego que
assegurasse minha sobrevivência. Isto foi em 1974.
Em 1986 – poupando-lhe os detalhes da minha vida errática – alguns
amigos por fim se deram conta de que eu estava sem rumo e insistiram
para que eu participasse de uma firma com eles, o que me proporcionou,
sete anos depois, uma ótima situação financeira. A seguir, tomei um ano
sabático cuidando de tarefas leves na firma e assumi um projeto para
Robert Daggy no Centro Thomas Merton de Bellarmine, em Louisville.
Em Nova Jersey, onde estava morando, usei fotocópias e uma máquina de
escrever para reproduzir em fac-símile quatro dos cadernos de trabalho
de Merton, que quase ninguém conseguia ler (havia cinquenta e um desses
“cadernos de leitura” só no acervo de Bellarmine). Adicionei notas de
rodapé e bibliografias dos livros que ele estava lendo e entreguei tudo a
Bob Daggy – que se encantou.
O Irmão Patrick Hart, meu amigo desde a época da pesquisa que fiz em
Gethsemani para minha tese, em 1974, também ficou impressionado. Quando
foi nomeado Editor Geral dos diários completos de Merton, que seriam
publicados pela editora HarperSanFrancisco em sete volumes, perguntou se eu estava interessado em editar o segundo volume, que se tornou Entering the Silence: Becoming a Monk and a Writer
(A entrada no silêncio: tornar-se monge e escritor). Morri de medo e
disse “Mas é claro!”. Assim começou meu caminho como servidor do legado
de Merton até agora. Todo Natal escrevo ao Irmão Patrick um cartão
expressando, uma vez mais, que ele é o pai da minha vocação madura e
verdadeira. Ele me tirou do nada e me levou a trabalhar no que, visto
retrospectivamente, pareço ter nascido para realizar.
“Cheguei aos setenta anos no mês passado e sinto que
preciso abandonar aos poucos a balsa que os textos de Merton me deram
para eu atravessar o rio da minha vida.”
Escrevi sobre Merton em ensaios e introduções a minhas edições de
seus livros, mas, de certo modo, nunca falei com minha própria voz,
escrevendo muito cedo que sabia que os editores devem apagar-se atrás de
seus autores.
Mais de uma vez me perguntaram onde termina Merton e começo eu. Com
certeza me identifico demais com a caminhada de Merton em busca de Deus
na vida monástica, mas nunca quis conhece-lo pessoalmente em Gethsemani.
Alguns amigos meus, sim, mas não os invejei. Não me interessava apertar
a mão de Merton.
“Mesmo no Centro Merton, quando peguei em minhas próprias mãos seus
diários pessoais, não foi Merton que me trouxe lágrimas aos olhos, mas
seus textos, através dos quais encontrei um lugar onde viver, evoluir e
ter meu ser. O coração falou ao coração, mas só nos textos, nas
palavras, nos gestos que ele me comunicou sobre um caminho em direção a
um tipo de vida com o qual eu sonhava quando era menino.”
Em reunião recente da Sociedade Merton Britânica em Oakham, perguntaram
aos quatro oradores da plenária por que se interessavam por Thomas
Merton. Na minha vez, eu disse que Merton fora como uma balsa para mim,
mas, como ensinou Buda, uma vez que você junta diferentes materiais e
improvisa uma balsa para atravessar um rio sem ponte nem ferry,
depois você tem de largar a balsa e continuar caminhando com seus
próprios pés. Ao dizer isto, chorei diante daquela multidão
majoritariamente britânica – só posso imaginar seu horror por essa
demonstração de impropriedade.
Desde 2012, quando a formulei em público, repeti esta intuição muitas
vezes até um amigo cansar e me dizer: “Olha, cara, você ainda está se
aferrando à sua balsa Merton, só que está se dando conta de que você e a
sua balsa estão indo em direção a uma catarata. Curta o raio da queda e
cale a boca.”
Então, olhando retrospectivamente – por fim respondo à sua pergunta -,
meu trabalho favorito é o projeto que o Irmão Patrick empreendeu para
dar ao editor uma “antologia” que combinava em um só os sete volumes dos
diários de Merton. Produzimos um livro de sete capítulos, cada um
correspondente a um volume, que foi altamente editado, o que assinalei
de forma transparente para o leitor na introdução. Foi o projeto mais
prazeroso que já empreendi. Fiz meu próprio caminho através dos bosques
dos diários de Merton para produzir
Merton na intimidade: Sua vida em seus diários.
Embora eu depois apresente os escritos de Merton sob muitos aspectos – volumes como
Dialogues
with Silence: His Prayers and Drawings, A Year with Thomas Merton, e
Choosing to Love the World: Notes on Contemplation (
Diálogos com o Silêncio: Suas Orações e Desenhos,
Um ano com Thomas Merton e Escolher Amar o Mundo: Notas sobre
Contemplação) -, sou grato ao Irmão Patrick sobretudo por ter-me
permitido produzir com ele minha apresentação “íntima” de quem era
Merton à luz de minha própria leitura e de minha perspectiva pessoal de
vida sobre quem ele era.
Ao longo desse caminho, houve momentos em que você se achou consumido demais com Merton e se perdendo a si mesmo?
A resposta breve é nunca. Nunca me canso de ler e falar sobre os
valores que descobri ao ouvir a “voz” de Merton. O texto dele foi meu
mentor, e em seus textos descobri consolação duradoura por ter feito
muita besteira na minha caminhada para ser um ser humano mais profundo e
mais inclusivo. Seus textos foram espelhos para mim.
À medida que Merton revela com arte suas lutas, fui sentindo que minhas
próprias lutas para tornar-me um ser humano mais profundo e amplo, viver
de forma expansiva com mais coragem, honestidade e alegria, são a
verdadeira substância para a elaboração da vida “espiritual”.
Merton me ensinou que sempre serei um noviço, todos os dia recomeçando, e
que, faça eu o que fizer para cuidar da minha vida interior e servir ao
próximo, sempre terei de me ajoelhar e esperar pela misericórdia que,
como sei por experiência própria (e pela de Merton, de que seu texto
está impregnado), nunca posso proporcionar a mim mesmo. Ao escrever esta
resposta, estou pensando no final do Diário de um Pároco de Aldeia, de
Bernanos, que termina com o reconhecimento pelo sacerdote de que ele
deve contentar-se com quem realmente é: “Estou reconciliado com minha
pobre, pobre casca. Tudo é graça.”
Você gostaria de compartilhar algum pensamento sobre como viver a caminhada espiritual?
Não. Os pensamentos que comuniquei por escrito sobre “a vida
espiritual” destinam-se a compartilhar a maneira como vejo a teologia
vivida por Merton e manifestada por seus escritos, todos eles – diários,
reflexões espirituais, cartas, poemas, manifestos políticos, apelos à
justiça social e à não-violência.
Mas se você me pedisse para ser totalmente franco, eu diria que foram
seus escritos autobiográficos que mais me ensinaram. Quanto mais a fala
de Merton é pessoal, mais se torna universal. Eu o entendo e me entendo
quando ele deixa de lado a pose de monge santo e conta ao seu leitor
como é para ele.
Os escritos autobiográficos de Merton, que ele chamou de sua “arte da
confissão e testemunho”, foram para mim – e para centenas de milhares de
outros leitores que se descobriram em sua revelação – a grande balsa,
veículo para um “caminho” a ser percorrido ao avançar na escuridão e na
alegria de estar vivos e despertos enquanto passamos pela total
catástrofe de sermos humanos. Seu escrito autobiográfico é um testamento
de sua transparência compassiva para com o leitor. “Você está bem
atolado, leitor, e eu também, mas são muitas as possibilidades de
contemplação criativa e de ação quando você permanece na estrada que
leva à alegria.”
Você acabou de fazer setenta anos. O que é mais importante para você agora?
Sempre concluo meus retiros da mesma maneira. Digo em voz alta que,
“se há uma coisa que aprendi com Thomas Merton, é que se pode escrever e
falar lindamente sobre a vida espiritual sem de fato viver uma linda
vida espiritual. Então eu lhes peço (às vezes minha voz treme, mas
costumo ficar firme ao fazer este apelo) que, ao sair daqui, rezem por
mim para que alguém como eu, que ousa apresentar “ideias” sobre a vida
espiritual em público, não acabe ele mesmo se perdendo.”
Se eu puder, agora quero por fim manter-me sobre meus próprios pés e,
nas palavras de Mary Oliver, “deixar meu corpo brando amar o que ele
ama”.
Passei décadas olhando com preconceito a vida religiosa
institucionalizada, desdenhando a própria ideia da busca de Deus e da
santidade. Percebo (só tive essa “epifania” semana passada em Assis) que
esse era meu mecanismo de defesa para me distanciar de minha desilusão
duradoura comigo mesmo por ter sido incapaz, devido a tantas fissuras na
minha personalidade, de viver a vida que vislumbrei para mim mesmo ao
ler Silence in Heaven.
Sim, sempre quis ser monge, mas minha personalidade não o
possibilitou. De fato, penso que as velhas formas de vida monástica
institucionalizada (há experimentos por toda parte) estão em vias de
extinção. A Abadia de Gethsemani um dia será uma comunidade monástica
verdadeiramente experimental aberta ao mundo, ou se tornará uma
“Trapistalândia”, uma espécie de parque temático onde (jovens) atores
contratados cantam em coro sete vezes por dia. E, todo dia às duas da
tarde, o visitante pode assistir a um funeral Trapista enquanto um
manequim vestindo hábito cisterciense é baixado à cova, mas sem que se
espalhe a camada de terra no final, pois no dia seguinte haverá outra
encenação. Isto não quer dizer que a vida Trapista norte-americana desde
meados do século XIX tenha sido em vão. Muitos homens e mulheres foram
salvos pela Regra de São Bento, em particular pelo carisma Cisterciense.
Mas, a meu ver, ultrapassamos um ponto de inflexão. Os veteranos estão
quase todos lá, e os que conheço são seres humanos profundamente
expansivos, compassivos e alegres. São cheios de generosidade, motivados
por um apreço por sua própria humanidade e a de todos os demais. Os
tempos, contudo, não favorecem a continuidade exatamente da mesma
maneira no caso dos que estão chegando agora. Eles vão encontrar seus
próprios caminhos, alguns deles sem dúvida formais, mas de maneiras que
serão diferentes do tipo de vida monástica que Merton amava, a qual,
contudo, sabia e previa que deveria acabar sendo proveitosamente
transformada.
Pessoalmente, estou aprendendo a morrer bem. Estou me treinando para
quando chegar a hora, e quem sabe se será em breve, talvez esta noite.
Eu gostaria de, se estiver consciente, morrer com lágrimas de gratidão
por todas as bênçãos que recebi através de tantos que me amaram apesar
de mim mesmo e, mais milagrosamente, me amaram apesar de si mesmos.
Quero morrer, se estiver consciente, dizendo a quem estiver segurando
minha mão, mesmo se for um profissional de enfermaria desconhecido – que
seja gay, por favor, mas, em todo caso, prefiro uma enfermeira -, que
não fique triste. Ultimamente, tenho dito a mim mesmo repetidas vezes,
ao me treinar, que tudo foi graça. Espero que, ao sucumbir, toda a minha
vida e as pessoas que dela fizeram parte passem diante dos meus olhos,
como ocorre com os afogados. E, nas palavras de Mary Oliver, dou-me
conta com gratidão de que “fiz mais do que passar pelo mundo a passeio”.
Jonathan Montaldo
6 de novembro de 2015
Roma, Itália
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Fonte: http://merton.org.br/dialogos-com-jonathan-montaldo.html