Juremir Machado da Silva*
Estamos vivendo uma metamorfose da cultura. Alguns dos seus
aspectos, porém, já eram visíveis no século XIX. Eis o principal: tudo é
mercadoria. A lógica que determina os movimentos de toda natureza é a
mercantil. Seguem três recortes sobre o passado, o presente e o futuro
baseados nas percepções da arte. Antes que ela desapareça,
Capitais sociais
Quem não sofreu com os livros de José de Alencar na escola? O homem
podia fazer frases altamente poéticas e construir enredos totalmente
artificiais. Foi um político conservador que teve seus piores momentos
falando de escravidão. Como escreveu muito, não deixou de acertar
algumas vezes. Em certas passagens, superando sua visão de mundo
elitista, antecipou conceitos sociológicos que ainda vendem bem. Por
exemplo, o conceito de “capital social” explorado pelo sociólogo francês
Pierre Bourdieu.
No romance Senhora, um personagem faz uma síntese
irretocável da dinâmica social: “Queria que me dissessem os senhores
moralistas o que é esta vida senão uma quitanda? Desde que nasce um
pobre diabo até que o leva a breca não faz outra coisa senão comprar e
vender. Para nascer é preciso dinheiro e para morrer ainda mais
dinheiro”.
O mundo é mercado. Tudo na vida é mercadoria. Cada um precisa ter
dinheiro e seus complementos: prestígio, fama, poder, relações, beleza
ou influência.
Quem tem mais, de modo geral, é mais “empoderado”. Uma conclusão do personagem poderia ser uma das teses de A sociedade do espetáculo,
livro do francês Guy Debord, escrito em 1967, ou do próprio Bourdieu em
suas teses sobre a “economia das trocas simbólicas” ou materiais: “Os
ricos alugam seus capitais; os pobres alugam-se a si; enquanto não se
vendem de uma vez, salvo o direito do estelionato”. Essa tirada é citada
pelo professor gaúcho José Hildebrando Dacanal em seu livro Romances brasileiros, um alentado volume sobre as grandes obras e os autores da literatura “verde-amarela” canonizados.
A mercantilização da existência converteu-se num valor
inquestionável. Moeda forte. Tudo deve ser privatizado. A morte, como se
sabe, é altamente rentável e não poderia cair nas mãos do Estado.
Ninguém vira cinzas em poucos minutos sem pagar por um serviço
eficiente. José de Alencar roçou alguns dos temas mais explorados por
pensadores, como o já citado Debord, do século XX. Em A Pata da Gazela,
fustiga o reino das aparências. Quem sobreviveu a esse livro, contudo,
merece um lugar de destaque no paraíso dos leitores contumazes.
Sob o guarda-chuva do realismo/naturalismo o pessoal do século XIX
escreveu paradoxalmente algumas das histórias mais inverossímeis de que
se tem notícia. No meio dessas narrativas mais ou menos folhetinescas
sempre se recolhe alguma sacada genial, fruto da observação do contexto,
como se o escritor, por um instante, não se contivesse e deixasse
escapar um centavo de verdade. Salvo se for apenas uma erro de revisão,
um descuido.
Quando tudo é mercadoria, todos têm preço? Há diferença entre preço e
valor? Entretenimento tem preço e cultura tem valor? A quitanda virou
mercado, que se transformou em supermercado, que se converteu em
shopping… Só não prospera o que não gera receita. O drama do pobre de
hoje é não encontrar a quem se alugar. Em breve, cada país pagará uma
renda mínima a todo cidadão para que ele seja consumidor e sobreviva.
Quem precisará comprar ou alugar um pobre se as máquinas fazem melhor o
serviço e não se organizam contra seus donos?
*
A teoria dos objetos inanimados
Paul Auster, em Homem no escuro (2008), criou um personagem
bastante curioso: um crítico literário aposentado, com os movimentos
limitados por causa de um acidente de carro, que passa boa parte do seu
tempo vendo filmes em companhia da neta, Katya, cujos movimentos estão
bastante reduzidos depois que o namorado foi morto na guerra. Vivem com
eles também a filha do critico, Miriam, sozinha há cinco anos. Katya
abandonou a escola de cinema. Para passar o tempo e driblar a falta de
sono, o crítico inventa história que não saem da sua cabeça.
Cria um personagem que se descobre dentro de um buraco, de onde é
tirado para se descobrir numa guerra. Logo no começo do romance, o
crítico literário apresenta o que parece ser a diferença radical entre
ler e ver um filme: “Fugir para dentro de um filme não é como fugir para
dentro de um livro. Os livros nos obrigam a lhes dar algo em troca, ao
passo que podemos ver um filme – e até gostar dele – num estado de
passividade mecânica”.
Katya expõe a sua “teoria dos objetos inanimados”. Segundo ela, são
eles que definem a grandeza do cinema: “Objetos inanimados como forma de
expressar emoções humanas”. Ela dá três exemplos tirados de filmes de
Vittorio de Sica, Ladrões de bicicleta, Jean Renoir, A Grande ilusão, e
Satyajit Ray, O Mundo de Apu. Descreve a abertura de Ladrões de
bicicleta. Um marido chega em casa, mergulhado em problemas – precisa
tirar a bicicleta do penhor para trabalhar no emprego que arranjou – e
nem nota que a mulher se esfalfa com dois baldes de água.
Katya resume sua teoria: “Objetos inanimados, emoções humanas”. A
mulher vende a trouxa de roupas de cama. A cena acontece numa loja de
penhores, “uma espécie de armazém para objetos abandonados”, onde a
teoria de Katya encontrará o seu ponto máximo: “No início, as
prateleiras não parecem muito altas, mas a câmera recua e, à medida que o
homem começa a subir, vemos que as prateleiras continuam sem parar até o
teto, e todas as prateleiras e todos os cantinhos estão entupidos de
trouxas idênticas àquela que o homem está guardando agora, e de uma hora
para outra parece que todas as famílias de Roma venderam suas roupas de
cama”.
As trouxas de roupa penhoradas como metáfora de uma sociedade
arruinada. No segundo exemplo, extraído de Renoir, o personagem de Jean
Gabin despede-se da mulher alemã que ama e prepara-se para atravessar a
fronteira da Suíça junto com o parceiro Dalio. Os homens partem e a
mulher fica com a filha pequena e a louça suja do jantar. Aqueles pratos
se “transformaram no sinal da sua ausência, no sofrimento solitário das
mulheres quando os homens partem para a guerra, e, um por um, sem dizer
palavra, ela recolhe os pratos e limpa a mesa”.
O terceiro exemplo parece mais sutil. O indiano Apu casa praticamente
por acaso com uma moça que mal conhece. O noivo escolhido para a jovem
era um estúpido. Desesperada, a família, na busca de uma solução,
convence Apu a substituí-lo. As cenas que interessam se passam em
Calcutá, para onde, contra sua vontade, Apu levou a esposa. A primeira
imagem é simplesmente devastadora: o homem mora num lugar pobre e sujo. A
janela do quarto é coberta com um pedaço de estopa. Na cena seguinte,
uma manhã, a estopa já foi trocada por um tecido xadrez limpo (objeto
1). Em seguida, a câmera mostra um jarro de flores (objeto 2). Em
seguida, quando a mulher se levanta, não consegue andar e percebe que
seu sári (objeto 3) está amarrado às roupas por marido. Por fim,
enquanto ela prepara o café, Apu rola preguiçosamente na cama, como um
marido satisfeito, e depara-se com um grampo de cabelos entre os dois
travesseiros” (objeto 4).
Katya conclui: “Esse é o ponto culminante. Ele segura o grampo de
cabelos e o examina, e, quando a gente observa os olhos de Apu, a
ternura e a adoração naqueles olhos, a gente fica sabendo, fora de
qualquer dúvida, que ele está loucamente apaixonado por ela, que ela é a
mulher da sua vida. E Ray faz isso acontecer sem usar uma única palavra
de diálogo”. O que há por trás dos objetos inanimados de Kátia? Uma
teoria. No livro de Paul Auster, contudo, é bastante possível que os
verdadeiros objetos inanimados não sejam as trouxas de roupa de cama
penhoradas nem os pratos sujos e o grampo de cabelo da mulher de Apu,
mas pai, filha e neta paralisados em casa. Ou avô e neta imobilizados no
sofá vendo filmes para esquecer tragédias pessoais. A “teoria dos
objetos inanimados” de Auster é uma boneca russa: esconde outras dentro
dela. Exprime a ideia de que cinema é imagem e deve dizer com imagens
todo um imaginário intricado.
A teoria de Auster sobre os filmes esconde possivelmente uma teoria sobre os personagens do seu livros.
Esconde também uma teoria sobre o papel da teoria.
A função dela no livro não é de mostrar o autor do livro defendendo
uma tese e fazendo do seu romance um romance de tese, mas fazer os
personagens terem uma leitura do mundo, uma visão de mundo, algo para
dizer.
*
Melhor romance
Nas férias universitárias, releio pedaços de
grandes livros e me faço perguntas irrespondíveis: qual o melhor romance
brasileiro de todos os tempos? É um jogo que doutos levam a sério.
Fazem listas, cânones e definições categóricas. Não fujo ao desafio.
Provoco o leitor: Dom Casmurro? Grande Sertão: veredas? O Tempo e o
Vento? A pergunta pode ser ampliada para facilitar ou complicar: qual o
melhor livro brasileiro de todos os tempos? Os Sertões? Casa Grande
& Senzala? Grande Sertão? Dom Casmurro? A trilogia O Tempo e o
Vento? Macunaíma?
Essas obras são clássicas. E são belas e profundas. Quantas são lidas
ainda? Quantas são lidas por prazer? Quantas são folheadas por
obrigação escolar? Outra maneira de colocar o desafio é esta: quem é o
maior autor brasileiro de todos os tempos? Machado de Assis? Euclides da
Cunha? Guimarães Rosa? Erico Verissimo? Gilberto Freire? Mario de
Andrade? É possível que a melhor obra não pertença ao melhor autor?
Pode-se dizer que Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de
todos os tempos, mas que Grande Sertão é o melhor romance?
Há lugar nessas especulações para Jorge Amado e Lima Barreto? Triste
Fim de Policarpo Quaresma tem direito a ser citado entre as obras-primas
da literatura brasileira? O que é uma obra-prima? Aquela que nos
revela? Aquela que traz à tona o que somos e não vemos? Aquela que cria
personagens mais reais do que nós mesmos? Na última página da minha
surrada edição de Grande Sertão anotei 25 aspectos que me embasbacaram.
Alguns deles: singularização, efeito de linguagem, ruptura,
especificidade dos personagens, estranhamento, vertigem.
No futuro próximo, esses livros e autores serão pouco lidos e suas
obras não passarão de documentos históricos. Quem lê hoje Virgílio,
Ovídio e Horácio? Sei que este meu veredicto é entendido como pessimismo
ou até como um absurdo. Que posso fazer? Estamos vivendo o fim da uma
época. Somos a última geração do livro. A obra escrita impressa ou
digital não desaparecerá. Ficará como um vestígio de outros tempos.
Entraremos em definitivo na era da imagem. O livro foi uma tecnologia do
imaginário que teve o seu tempo. O romance viveu o seu apogeu no século
XIX. O século XX já foi o da sua desconstrução.
Precisamos aproveitar intensamente o tempo que nos resta. Grande
autores ainda surgirão. Algum no Brasil terá a dimensão de Machado de
Assis, Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Lima Barreto, Jorge Amado,
Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Jorge Amado ou Mario de Andrade? Não
terá por que a fonte da genialidade estranhamente secado? Ou por ter o
modelo se esgotado? Ou por ter a sensibilidade se deslocado para outros
suportes e formas?
Ainda surgirá no mundo um poeta tão admirado em vida como Pablo
Neruda? Haverá no Brasil um novo Drummond? No Rio Grande do Sul, um novo
Quintana? Ou a poesia como expressão mais ampla morreu? A internet
facilita a divulgação da poesia. É um paraíso para poetas. Responda,
leitor: quem foi o melhor de todos? E o releia feliz.
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* Jornalista. Escritor.Cronista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/02/9516/a-ultima-geracao-do-livro/
Imagem da Internet
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